Assim como a Antiguidade Clássica, que deu à luz de Édipo à Odisseia, a modernidade também produziu sua mitologia, inserida e inspirada nos seus próprios temores e situações históricas. Este artigo se propõe a apresentar brevemente como mitos modernos quatro histórias de terror, horror e mistério: O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, e Drácula, de Bram Stoker.
O Médico e o Monstro
deixa no âmbito do não-dito um mal metafórico que se expõe através da figura do doppelgänger (o duplo), aquele que se vale de uma máscara da inocência para agir de maneira livre, mas monstruosa. O mito, pensado em seu contexto, sugere o trabalho sobre um medo que pairava pelo Império Britânico da Era Vitoriana, a terra em que “o sol nunca se põe”. Nesse período, em que a potência vem a conhecer o colonialismo, a industrialização e o avanço científico, surge um temor relativo ao próprio avanço do tempo: afinal, quanto é possível perder, e ainda permanecer humano?
O medo da modernidade e do quanto o contato com outros povos, de culturas completamente diferentes, “bárbaras”, influenciado também pelas novas ideias vindas do evolucionismo darwiniano, das correntes realista e naturalista, e do conflito de classes exposto por Marx, traz em sua sombra o receio de que essas novidades pudessem vir a corromper a suposta pureza dos ingleses, criando uma mal-estar social que aparece retratado nas figuras míticas de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, protagonistas de O Médico e o Monstro.
O Retrato de Dorian Gray
O segundo mito, clássico de Oscar Wilde, dá luz ao hedonismo de Lorde Henry, que influencia o jovem Dorian, levando-o a crer que no poder absoluto da beleza. Para que ele possa mantê-la, o retrato de Dorian envelhece em seu lugar, enquanto o homem comete diversos crimes e atrocidades.
O mito também sugere algumas das inquietações dos anos 1890, depois da revolucionária teoria freudiana sobre o inconsciente, onde, muito sucintamente, se alojam desejos e necessidades recalcados. À vista disso, muitos acreditavam que a libertação dessas paixões, escondidas nesse aparato orgânico, poderia gerar barbaridades terríveis.
Questionava-se, então e finalmente, a própria validade do conhecimento científico. Afinal, as conquistas científicas, como a descoberta do inconsciente, levariam a humanidade a uma evolução moral? À época, e ainda hoje, o avanço da ciência não necessariamente anda a par do avanço social, e certamente descobertas e invenções usadas sem senso de responsabilidade e ética podem conduzir a catástrofes históricas, como foi o caso do nazismo alemão ou do imperialismo europeu.
A Ilha do Dr. Moreau
A Ilha do Dr. Moreau, à sua vez, narra a história de um náufrago, Edward Prendick, que é deixado em uma ilha com o protagonista que dá título ao livro. Edward descobre, para seu espanto, que o médico fazia experimentos de vivissecção, mas fica a dúvida se tais experimentos transformavam animais em humanos ou o contrário. Questionado, o Dr. Moreau explica que seu intento é retirar cirurgicamente a “animalidade” dos bichos da ilha.
A dor e a crueldade apresentam-se como temas em pauta, assim como a responsabilidade moral e os efeitos da interferência humana na natureza. O Dr. Moreau busca um conhecimento que é proibido, e a um só tempo é condenado e admirado por essa busca. O receio do declínio do imperialismo branco, que era pensado como modelo de moralidade, e quais seriam as consequências desse declínio para a civilização, se insurgem como ideias fundadoras para a ficção, dando vazão a um medo que era, este sim, real.
Drácula
O último mito, provavelmente o mais famoso, é Drácula, um romance epistolar de dilemas psicológicos. Sendo um vampiro, o conde que nomeia o livro é, portanto, uma criatura perversa, que se alimenta de sangue e que é imortal. Para além da fantasia, a história critica a burguesia, sendo Drácula um aristocrata que se alimenta do sangue camponês. Ela traz também o conflito entre o romântico e o racional, representado pela disputa entre o que é lendário e a “ciência”, e discute tabus, como a animalidade do homem (shape-shifter), a disputa entre homem e Deus, que se instaura na condição e busca da imortalidade, e a própria paixão feminina, que era até então negada pela sociedade.
Fica claro que além de entretenimento, os mitos modernos, assim como os antigos, podem ser analisados como tentativas ficcionais de explicar costumes, crenças, medos e instituições sociais, os quais se tornam recuperáveis através da análise comparativa entre a condição literária e o passo da história.
P.S.
Este pequeno artigo foi inspirado em uma palestra ministrada pelo doutor e professor Júlio Jeha, da Faculdade de Letras da UFMG, no dia 13 de maio de 2016, para a disciplina de Introdução à Literatura Comparada. Jeha possui inúmeros trabalhos ligados à literatura de monstruosidade e as vastas relações que ela estabelece com o tempo moderno e mesmo o contemporâneo.
Por isso mesmo, se ficou interessado no tema, confira a obra Monstros e monstruosidades na literatura, desenvolvida por Júlio Jeha, e que traz uma análise muito mais aprofundada dos livros supracitados, além de outros que também fazem parte desse universo.