A dramática normativa e a poesia em prosa de Baudelaire

XL – O espelho

Um homem horrendo entra e se observa no vidro.
“– Por que você se olha no espelho, se não se pode se ver nele senão com desprazer?”
O homem horrendo me responde: “– Senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos; portanto eu possuo o direito de me olhar; com prazer ou desprazer, isso só diz respeito à minha consciência.”
Em nome do bom senso, eu tinha sem dúvida razão; mas, do ponto de vista da lei, ele não estava errado.

(CHARLES BAUDELAIRE, Le spleen de Paris)

Não fosse o nome do autor denunciado em suas referência acima, talvez o leitor não desconfiasse que O espelho (traduzido por mim) se trata de um poema, incluído na antologia Le spleen de Paris (1869). Isso porque seu tom fabulesco, sua forma sem rima nem métrica, seu conteúdo pouco voltado às imagens clássicas da poesia tradicional – embora, na contramão, também fale da beleza –, ou sua formatação desprovida de estrofes e de versos saltados, não correspondem às expectativas que criamos acerca do que é e de como se faz um poema, mesmo para os mais experimentados. Pausa.

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Primavera de 1624. Em Darlane, o general Oxenstjerna recruta tropas para a campanha da Polônia. A vivandeira Anna Fierling, conhecida pelo apelido de Mãe Coragem, fica sem um de seus filhos.

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

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Já está durando dezessete anos a grande guerra religiosa. A Alemanha perdeu mais da metade dos seus habitantes. Violentas epidemias exterminaram os que sobrevivem à morte nas batalhas. Nas regiões outrora exuberantes campeia a fome. Lobos percorrem as cidades reduzidas a escombros. No outono de 1634, encontra-se Mãe Coragem na montanha alemã de Fichtel, longe da estrada por onde passa o exército sueco. Nesse ano, o inverno veio cedo e com rigor. Os negócios vão mal, o jeito é mendigar. (…)

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

Mãe Coragem e Seus Filhos (Mutter Courage und ihre Kinder), na célebre interpretação com Helene Weigel.

Entramos agora em outro campo: excertos da peça Mãe Coragem e Seus Filhos (1939), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Bastante distante em temáticas, estéticas ou proposições, e consideravelmente distantes no tempo, as obras de Brecht e de Baudelaire, como as trazidas aqui, possuem uma séria semelhança. Alguém se arrisca?

Assim como os poemas em prosa do poeta francês não se encaixam nos moldes da poesia tal como prescrito pelas “normas” dos gêneros, tampouco os trabalhos brechtianos podem ser entendidos por e simplesmente dramas.

Relembrando, os três grandes gêneros literários: a épica, a lírica e a dramática, (muito) reduzida e simplisticamente compreendidas como narração, poesia e teatro, respectivamente. Ora, e o que acontece nos casos dos autores trazidos? Para o alemão, o próprio nome do seu teatro o anuncia: o teatro épico. Para Baudelaire, a poesia é em prosa – uma poesia épica? Uma proesia? Brinco.

À parte seus distintos propósitos em uma e outra criações, tais autores se aproximam ao mesclar não os tipos textuais, mas os gêneros em si – que embora dificilmente obteriam alcançar uma pureza completa, se afastam ainda mais dessa medida quando pensamos exemplos como estes.

Por isso mesmo, se entendemos os gêneros como matrizes para a criação artística, é indispensável reconhecer a igual importância da sua subversão. O que Brecht cria nos trechos trazidos é inconcebível para a dramática normativa, que se fixa, de acordo com Peter Szondi, autor de Teoria do Drama Moderno, no pilar da ação inter-humana transcorrida no tempo presente, resumidamente. Tempo, contudo, é o que não se faz presente em Mãe Coragem e Seus Filhos, quando muitos anos se passam através dos saltos cronológicos entre um e outro episódios. Dialógica, tampouco é a forma encontrada em tais trechos, que denunciam a narrativa nas descrições e na ausência de enunciador, o que por sua vez impede o caráter inter-humano.

Ainda que sejam exemplos apenas dos princípios dos episódios (ou atos, ou capítulos) brechtianos, e que outras partes do texto se aproximem mais dos elementos que configuram o drama tradicional, tais recursos não são lançados ao azar, como se revela na auto-teorização feita em seu Pequeno órganon para o teatro. Pelo contrário, o teatro épico tem por objetivo alcançar o efeito de distanciamento que obrigue à reflexão, ao raciocínio crítico, e que por meio dessa estranheza seja capaz de despertar o espectador do sono da alienação.

O caso de Baudelaire talvez não seja tão engajado ou mesmo tão exemplar. Sua proposta, mais estética que propriamente política, influencia uma gama de escritores da sua sucessão, inclusive vocês-sabem-quem (abaixo). Ao abrir mão dos valores regentes da construção poética, o poeta subverte ainda mais o que por si só já é anárquico – a própria poesia. Cria, em consequência, a abertura para outros fazeres e pensares artísticos que não se pretendem regra de ouro.

Na realidade, o que Baudelaire faz, seu grande mérito, não é um “manifesto da poesia em prosa”: antes, é lançar sobre a tradição um olhar que a absorve sem por ela se deixar prender. O que em muito difere de Brecht, para quem o futuro do drama é o drama épico, motor das convulsões e revoluções sociais pela arte.

Fica do texto para o leitor a proposta de aguçar a visão para notar esses fenômenos, hoje ainda mais e sempre recorrentes, que movimentam a arte contemporânea não para uma, mas para todas as direções, expandindo-se… Até onde? De presente, um poema (um poema, sim, senhor) do nosso querido itabirano:

O OPERÁRIO DO MAR

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Sentimento do Mundo)

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