Lua Vespertina, da poeta mineira Marina Naves, é, antes de tudo, a história da vida de uma pessoa qualquer contada por meio da poesia. Seu protagonista se chama Azevedo, e seus caminhos são contados pelas páginas do livro desde a tenra infância – até o momento de sua morte. Eventos detalhados não são abordados, mas sim as impressões e sensações que se tem sobre elementos comuns à vida de qualquer ser humano: a curiosidade, o crescimento, o advento da maturidade, o amor, a melancolia, a tristeza e o medo. As fases da vida do protagonista acompanham as fases da Lua (começando, portanto, no nascimento – a Lua Nova – , e culminando na morte – a Lua Minguante).*
* Texto fornecido pela autora.
Agora, com vocês, quatro poemas de Lua Vespertina. 🌗🌘🌑🌒🌓
SÍSIFO
Hoje escrevi na lama um verso todo bucólico de pastorinhas. Falei do orvalho e da neblina, e das ovelhas brancas de algodão. Logo apareceu um desses gatos e nas letras pisou, todo incutido. Fiquei bravo, fui jogar bola, e o poeminha ficou todo sujo. É fácil não ser arrogante, e mais fácil ainda é se esquecer. Hoje lembrei enquanto dormia: sonhar é bom, em sonhos nada perco. Mas eu me acordo e tudo já se esvai, tal como versinhos no barro. Bom seria não fazer nada disso, igual a mamãe, o papai e o pastor.
HECATOMBE
(de cem suspiros)
“daí, suor me poreja de alto a baixo, então
tremuras me tomam toda, orvalhada fico, mais
que a relva, com pouco lassa, morta” (Safo)
Quisera Zéfiro, com seu carinho, beijar a relva macia com o mesmo encanto com que tu me beijas; quisera Penélope tecer linho com maior saudade e maior dor do que as minhas, quando o imo me aleijas Quiçá tampouco Apolo luminoso tanto amor não louvou, quando em jardim transformou o corpo&sangue derramado de Jacinto; não, nem sequer o Febo tamanho zelo conseguiu louvar Pois é maior do que qualquer colosso o que em minh’alma de campos sem fim eu carrego; e nem vinho libado, nem corpo ungido d’um herói mancebo, são tão benditos por mim em meu altar quanto tu.
OFÉLIA
(a uma donzela morta)
“Et qu’il a vu sur l’eau, couchée en ses longs voiles,
la blanche Ophélia flotter, comme un grand lys”
(A. Rimbaud)
Sua face, mais que o brilho da Aurora resplandece — e a tez pálida e gelada dorme em mimosos gypsos adornada, enquanto lhe nina a própria Flora! Fronte graciosa, ainda quente, ali ora e ostenta a Beleza que lhe foi dada! Voz meiga de anjo, pura, imaculada, estrela alguma me ofusca a senhora! O seu semblante morno dorme e cora, espero-a volver-me o olhar agitada! Espero-a; o tempo passa e ali demora… Não acorda! Esta víbora, vil espada corta-me a alma como cortou-lhe outrora; como a amarei morta, desanimada?
OBSESSÃO
“Mais les ténèbres sont elles-mêmes des toiles
où vivent, jaillissant de mon oeil par milliers,
des êtres disparus aux regards familiers”
(Charles Baudelaire)
Tudo que vivo era, que respirava no ar o seu perfume dissimulado, sentia na alma a traiçoeira clava de em si próprio amar mortal pecado. Um inferno inteiro transmutado em lábios róseos, luxúria e asco; eram seus negros olhos, seu desdém, o machado profano do carrasco. “Cruel esfinge dos austeros vitrais, teu corpo ‒- serva me, servabo te, suplica-lhe misericórdia entre ais…” “Isto é tudo que aqui se vê ou sente…” — replicara ao seu rosto nos cristais — “…sê tu vassalo da tua mente.”
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