Idade média em tecnicolor

Gabriel – autor e editor aqui do Duras Letras – me pediu uma lista, uma seleção, de três poemas medievais que me encantam. Eu adoro listas, acho que o desafio de encontrar alguma relação de equivalência entre números e textos tem valor por si mesmo. O norte, em suas próprias palavras, deveria ser o encantamento. O desafio ao qual eu me referi está em que a finitude implica escolhas e escolhas implicam em recusas. Isso é próprio da vida humana, infelizmente não é somente nos momentos em que temos que propor uma seleção de três poemas medievais demandados por nosso amigo Gabriel que acabamos tendo que fazer apostas. Com esse papo introdutório quero afirmar que a frustração decorrente das listas e seleções é que elas são um entrave objetivo para o nosso desejo de infinito.

Trovadorismo. Cantigas medievais.

Em um primeiro momento, minha ideia era buscar trechos de obras importantes, algum troubadour occitano com seus cantos sobre moças bonitas e passarinhos, me parece importante também terem goliardos, deboche e vinho para os leitores. A idade média também é, dizem, sobre coragem, tomem então o imperador da barba florida Carlos Magno acompanhada da sua espada joyeause, um objeto riquíssimo para a psicologia, dado o seu nome sugestivo. Mas, em um segundo momento, não me pareceu que o encantamento sugerido pelo Gabriel passa por aí. Muitas vezes uma certa ideia de cultura geral, a necessidade de divulgar, introduzir, ampliar, acaba sobrepondo o simples gozo da leitura. Nada contra a educação, nada contra o ensino de literatura, mas o texto pode ter como razão apenas o prazer, o Ocidente não precisa ser protegido das garras do prazer, nem tudo na vida é formação.

O meu encantamento anda muito voltado para os galegos, talvez mais por ofício, pesquiso sobre eles, do que algo súbito e apaixonado. Vou compartilhar com vocês o prazer em relação à três poemas, na verdade não são muito lá poemas, mas ao mesmo tempo são. No seu tempo, ou melhor, quando letra e voz coincidiram, lá pelos séculos XI, XII e XIII, eles eram canções, mas aqui, no presente em que escrevo, nós os lemos como poemas, dissociados de melodia. É louco pensar que nossa relação com esse objeto estético é bastante outra se comparada com os jogos de intenção de permearam sua composição. Nossa leitura é criativa, ela reinventa o texto aos olhos do nosso tempo. Penso que isso acaba tornado a idade média, a nossa idade média, dos contemporâneos, dos iphones, dos terroristas, do neofascismo e de um urgente ecosocialismo, uma idade média em tecnicolor.

O primeiro, não por acaso, foi o primeiro poema do trovadorismo galego-português que me convidou ao encantamento. Segue abaixo:

Ai ondas que eu vim veer,
se me saberedes dizer
por que tarda meu amigo sem mim?
Ai ondas que eu vim mirar,
se me saberedes contar
por que tarda meu amigo sem mim? (B 1284, N 7, V 890)

Desde então, Martim Codax ocupa um lugar muito intimo no meu imaginário. Gosto de pensar no Mar de Vigo, lugar geográfico, mas que na minha consciência é mais um lugar poético, enquanto um primeiro porto do meu imaginário amoroso. A posição do eu lírico, no caso um eu lírico feminino, saudosa do objeto de seu desejo, tal qual o gênero das cantigas de amigo demanda, combina uma simplicidade retórica com uma grande tensão. A partir da constituição do próprio mar enquanto interlocutor, um interlocutor que participa da cena a partir da sua própria mudez, a ideia da saudade assume uma formulação quase concreta, como se fosse algo possível de tocar.

O segundo poema é do rei e trovador Dom Dinis. Gosto muito desse poema pois ele aponta para outra possibilidade de tensão, penso aqui com meus botões que talvez o pulo do gato, quando o assunto é essa tradição poética, esteja na produção de uma poética do atrito entre o desejo e o impossível. Coloco o texto para vocês abaixo:

Senhor, dizem-vos por meu mal
que nom trobo com voss'amor,
mais ca m'hei de trobar sabor;
e nom mi valha Deus nem al
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar.
E essa que vos vai dizer
que trobo porque me pag'en
e nom por vós que quero bem,
mente; ca nom veja prazer,
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar.
E pero quem vos diz que nom
trobo por vós, que sempr'amei,
mais por gram sabor que m'end'hei,
mente; ca Deus nom mi perdom,
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar. (B 509, V 92)

A questão ou problema pelo qual o enamorado passa é no mínimo paradoxal. Ele é acusado de trobar sabor, ou seja, cantar/compor pelo simples prazer de produzir arte verbal, poesia. Tal acusação é séria, se pensarmos que o texto tem como destino declarar o amor, mas recebe a fama de quem na verdade só tem amor pelo próprio cantar. Tal amante não estaria, portanto, interessado de fato pela moça, mas sim utilizando ela como pretexto para a poesia. Ele se defende, afinal, verdadeiramente sente amor e prova, ironicamente, através da sua competência de poeta/trovador.

Por fim, mas não menos encantadora, voltamos para o mundo da cantiga de amigo. Não consigo negar, o que mais me interessa no medieval é o amor. A burguesia cortou a cabeça da nobreza, posição ao meu ver muito razoável, mas não conseguiu demolir esse monumento medieval, tudo bem, ele foi retocado, aburguesado, mas a raiz dos nossos sentires está lá, nas trovas, no impossível tão bem cantado.

– Cabelos, los meus cabelos,
el-rei m'enviou por elos,
[ai] madre, que lhis farei?
– Filha, dade-os a el-rei.
– Garcetas, las mias garcetas,
el-rei m'enviou por elas,
[ai] madre, que lhis farei?
– Filha, dade-as a el-rei. (B 1154, V 756)

Na cantiga acima, atribuída ao trovador João Zorro, o texto constrói-se a partir de uma relação dialógica, mãe e filha. O rei demandou que a jovem entregasse para ele seus cabelos, alegoria sensual voltada tanto para a construção de uma relação intima quanto para o próprio matrimónio, era próprio das mulheres solteiras portarem os cabelos soltos e das casadas o guardarem sob um véu.  Garcetas, significam tranças, gosto de pensar nesse texto, na centralidade dos cabelos, na descrição das tranças, enquanto uma elaboração da tensão anterior ao encontro, a ambiguidade da jovem frente ao rio que deve cruzar, o rio da virgindade, da inocência.

Outro ponto de tensão está na própria posição de quem ambiciona os cabelos: um rei. Não fica claro até que ponto cumprir com os seus desejos equivale a própria vontade da amiga. A fala da mãe pode ser tanto um incentivo quanto uma resignação. Nesse sentido, a trova desvela sobre o corpo do erotismo o corpo político do mundo medieval. A ambiguidade de uma época que eleva o feminino ao campo da adoração enquanto simultaneamente faz da execração das filhas de Eva uma tópica literária e uma prática rotineira.

Ficamos por aqui, espero que essas três trovas sejam prazerosas. Não propus uma tradução para elas por pensar que no jogo de semelhança e diferença entre os dizeres do galego-português e o do nosso português brasileiro continua havendo possibilidade de compreensão. Elas podem ser lidas na seguinte página

Nesse link vocês podem acessar o projeto Littera, da Universidade Nova de Lisboa. O site é incrível e tem um farto material acerca dessa época.


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