Resenha – “Lolita”, de Vladmir Nabokov

Resenha do livro "Lolita", de Vladmir Nabokov, escrita por Mariana Makluf.

Entre a obsessão, a paixão e o crime

“Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta. Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita.”

Um leitor que nada ouviu falar sobre a obra Lolita pode, lendo essa sentença, se comover e se preparar para a leitura de uma história de amor. E digo sentença porque não se trata de um romance, mas da história de um crime. O livro Lolita, de Vladmir Nabokov, foi publicado pela primeira vez em 1955, e provocou um verdadeiro escândalo na época, sendo proibido e apreendido em diversos países, como Inglaterra e França. A história de “amor” entre Lolita e Humbert Humbert é contada por ele (Humbert) de forma poética, enquanto ele se prepara para seu julgamento final, e tem a tendência de chocar e nausear quem se arrisca a encarar uma realidade tão marcante nos dias de hoje. Trata-se não de uma história de amor, mas de abuso sexual, psicológico, de chantagens e de cárcere cometidos por um homem de 40 anos contra uma criança de 12 anos.

O abuso sexual infantil é um problema óbvio. No Brasil, percebeu-se um aumento expressivo no número de denúncias durante o período de isolamento social, sendo que, de janeiro a maio, foram registrados 6091 casos, sendo que 96% destes ocorreram dentro da casa das vítimas (dados divulgados pelo Extra Classe, em maio de 2021). A Terapia do Esquema, uma das grandes abordagens em crescimento na Psicologia, aponta para o alto nível de influencia que eventos traumáticos vivenciados na infância apresentam sobre a saúde mental dos indivíduos ao longo de toda a vida, sendo o abuso sexual e a negligencia os maiores indicadores de transtornos mentais que se apresentam na clínica. Portanto, acredito que Lolita, apesar do desconforto que causa, é uma obra importante para que possamos sair da nosso lugar de “tudo está bem no mundo”, iniciando um debate sobre a necessidade real de se discutir o tema da pedofilia nos diversos cenários sociais (inclusive, por favor, NAS ESCOLAS!).

“Ali estava uma criança solitária, inteiramente desamparada, com quem um adulto vigoroso, malcheiroso, tinha tido, naquela manhã, por três vezes, porfiadas relações.”

Clique na imagem.

Pois bem, como dito anteriormente, Lolita conta a história de abuso que se deu entre Lolita (Dolores, Lô), e Humbert Humbert (H.H), homem de cerca de 40 anos que sente atração por Ninfetas: “Em um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem garotas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas ‘nínfica’ (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets”. Tudo começa quando H.H, mudando-se para os EUA, se hospedando na casa de Charlote, mãe de Lolita, e lá permanecendo apenas devido a uma forte atração por Lo. Por “obra do destino”, Charlote acaba falecendo, e Humbert vê uma oportunidade para enfim vivenciar sua tão desejada história de amor. Durante alguns anos, portanto, H. H e Lolita embarcam em uma viagem de carro pelos Estados Unidos, vivendo uma relação muitas vezes denominada pela própria Lolita como “incesto, crime”, e por Humbert como “amor, paixão”. É óbvio, ao leitor e ao narrador, que Lolita não é feliz, mas se sujeita à situação por medo: medo de ser abandonada (ela, que já não tem ninguém) e de se ver trancafiada em reformatório ou internatos.

“No hotel, ficamos em quartos separados, mas no meio da noite ela vinha soluçando para o meu, e fazíamos a coisa muito suavemente. Como os senhores veem, ela não tinha, absolutamente, para onde ir.”

Principais impressões

Confesso que foi uma leitura muito difícil para mim. Foi algo lento, arrastado, e em diversos momentos me vi a ponto de desistir. A história em si é pesada, absurda, nauseante, e infelizmente apresenta muito da realidade. Me causou um incômodo que raramente me atinge em minhas leitura, e me tirou completamente da zona de conforto. Mas, para além da história em si, a forma narrativa é bem arrastada. Humbert se prende, em diversos momentos, em descrições detalhadas sobre os lugares pelos quais ele e Lolita passaram e sobre as pessoas com quem se encontraram. Para alguns, é uma verdadeira viagem pelos Estados Unidos, mas, para mim, foi maçante.

Apesar disso, foi interessante me ver na mente de um sujeito abusador e perceber como a situação impacta psicologicamente o autor do crime e sua vítima, Lolita, pensando principalmente em minha prática profissional (sou estudante de Psicologia). Os abusos físicos acontecem a todo momento, mas o que é de fato descrito no livro são os abusos psicológicos: o pavor que Humbert tem de perder Lolita (seja por ter seu crime descoberto ou pelo simples fato de saber que um dia Lô será adulta, e não mais sua ninfeta), as reações aversivas de Lolita às investidas dele e, por fim, a forma como ele mantém na memória a história que se passa entre eles. E isso, no fim das contas, foi o que me manteve na leitura: a vontade de compreender, clinicamente, o que se passa na cabeça de um abusador, e a curiosidade para saber que fim a vida de Lolita tem.

“Durante nossa singular e bestial coabitação, foi-se tornando claro à minha convencional Lolita que mesmo a mais miserável das vidas de família era preferível àquela paródia de incesto – que era, afinal de contas, o que de melhor eu poderia oferecer àquela criança abandonada.”

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