O conflito de gerações desencadeando o conflito interno
A obra Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev, foi publicado em 1862 e refletiu um dos acontecimentos históricos mais importantes da Rússia do século XIX: o fim da servidão dos camponeses pelos senhores de terras. Como em qualquer movimento de transição, os conflitos de ideias aparecem, geralmente entre uma nova geração e a geração anterior. Em Pais e Filhos, Turgueniev dá ao leitor uma pequena amostra de como ocorre esse choque, dentro de um ambiente familiar e dentro também de cada personagem apresentado.
A viagem do leitor começa no ano de 1859, com Nikolai Petrócitch aguardando ansiosamente a chegada de seu amado filho, Arkádi, que traz consigo seu amigo Bázarov, uma figura peculiar, intrigante, que exerce grande influencia sobre o colega. Essa influencia se faz presente ao longo da maior parte da narrativa, e pode ser vista desde o primeiro momento, quando Arkádi, apesar de seu imenso apreço pelo pai, se comporta de maneira mais fria, sem condizer com a imensa felicidade do reencontro entre pai e filho. Acontece que Bázarov é um niilista: no contexto da obra, um sujeito que recusa toda e qualquer tradição, que vive de acordo com princípios práticos e úteis, não se rendendo a sentimentalismos que não servem para nada.
O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com bases na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito.
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Bázarov age, frente à geração anterior, como um sujeito frio, distante, extremamente irônico e de fato com certa arrogância. Arkádi, que tanto admira o amigo, se esforça para agir de maneira semelhante. E enquanto os dois jovens negam toda e qualquer opinião emitida pelos pais, estes, por sua vez, se mostram abertos e mais do que dispostos a conhecer as ideias da nova geração. Pensando nos dias atuais, tendemos a enxergar os mais velhos como pessoas rígidas e inflexíveis: em Turgueniev esses papéis são invertidos, e os mais velhos se mostram mais sábios na medida em que tentam se adaptar, mesmo sem compreender, aos novos tempos.
No íntimo, alegrou-se muito com o convite do amigo, mas julgou-se na obrigação de esconder seu sentimento. Afinal, era um niilista!
Porém, no decorrer dos acontecimentos, percebemos uma mudança nos personagens. O encanto que Arkádi sente com relação ao amigo vai aos poucos se desfazendo quando ele passa a enxergar de forma mais crítica suas atitudes para com os outros. Bázarov parece se obrigar, em alguns momentos, a reprimir seus sentimentos e impulsos (tão inúteis para o niilista), algo que não combina com o “verdadeiro eu” de Arkádi. Assim, ele não segue nem os ideais do pai, nem os do amigo, criando para si aquilo que considera importante para uma vida plena, sendo talvez o verdadeiro “novo homem” que o autor pretendia apresentar. O niilismo de Bázarov também não se sustenta frente as adversidades da vida, se rendendo em alguns momentos à tradição e punindo-se por isso.
Principais Impressões
Para além do que o nome Pais e Filhos pode sugerir, a obra me parece mais uma profunda descrição de conflitos interiores relacionados às respectivas gerações velhas e novas. A possibilidade de mudança, que permeia os personagens e suas relações, foi algo que o autor propôs com uma sensibilidade muito interessante. Os personagens, antes tão limitados às ideologias geracionais, vão ganhando autonomia por meio de aprendizados individuais e compartilhados.
Um ponto que permanece para mim como um conflito são meus próprios sentimentos com relação a Bázarov: apesar de me admirar com sua convicção sobre seus ideais, me peguei odiando-o em diversos momentos da leitura, em especial nos que se referem à relação do jovem com seus pais. Olhei para ele com raiva e com carinho ao longo de toda a leitura, e creio que esse seja o ponto que mais me encantou na obra: a forma como a natureza humana do personagem desperta a minha própria, se choca com meus princípios e desperta empatia. Pais e Filhos foi meu primeiro contato com Turgueniev, autor tão diferente dos outros russos que já li, mas igualmente genial e que, de fato, traz para nosso tempo algumas reflexões ainda muito pertinentes.
“… as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza “indiferente”; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita…”