Sula Peace, uma megera? Questões de amizade e sexo em “Sula”, de Toni Morrison

Toni Morrison, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993 e autora de Sula

Se você ainda não conhece, Sula (1973) é um romance de Toni Morrison, recentemente trazido para o público brasileiro pela TAG Curadoria – por indicação da grande Conceição Evaristo!
O romance acompanha a fundação do Fundão, uma comunidade negra situada em Medallion (cidade ficcional em Ohio, nos Estados Unidos), marcada pela camaradagem tanto quanto pela violência, a luta pela sobrevivência e a solidão daquelas pessoas.
Ali começa a história da família Peace, que acompanha as vidas de quatro mulheres cujos caminhos são entrelaçados uns aos outros: as três gerações da família Peace – Eva, Hannah e Sula – e a melhor amiga de Sula, Nel Wright.

Capa da primeira edição de Sula

Criada numa casa movimentada e abarrotada de gente, Sula cresce num profundo isolamento, cuja única exceção é a presença reconfortante da amiga, Nel. Unha e carne, as duas chegam à vida adulta compartilhando as mais duras experiências, enfrentando a violência dentro da própria comunidade, as desavenças familiares e as mortes que estão sempre acontecendo ao seu redor.

Porém, depois de adultas, seus caminhos divergem: enquanto Nel se casa, tem filhos e se torna uma mulher de família, Sula sai de Medallion para fazer faculdade e conhecer o mundo, e assim como a mãe, Hannah, não se apega a nada nem a ninguém.

Dez anos depois de sua partida, Sula retorna à cidade natal, onde sua presença se torna um estorvo cada vez maior, dadas a sua arrogância e seu desprezo pelos laços matrimoniais. Exercendo intensamente o potencial de sua liberdade, Sula destrói os laços mais caros de sua existência, cujo destino é uma solidão cada vez mais acentuada.

A cidade, então, transforma Sula em uma Geni (vocês sabem, a Geni do Chico: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni”), fazendo com que a protagonista seja alvo de uma série de superstições e fofocas maliciosas: nem sempre falsas, quase nunca verdadeiras. Rejeitada pela comunidade, sua única companhia são os parceiros com quem se deita, frequentemente casados ou comprometidos – o que, logicamente, não contribuía muito para a sua popularidade entre as mulheres locais.

“Ela ia para a cama com homens na maior frequência possível. Era o único lugar onde achava o que procurava: sofrimento e a capacidade de sentir profunda tristeza.”

Sula, então, assume o papel da megera perversa: achincalhada pelas mulheres e temida pelas crianças; amada apenas pelos homens, mas somente enquanto dura a paixão de seus corpos. Nem família, nem amigos, nem amores – ninguém capaz de compreender sua forma perigosa de existir e de pensar. Por isso mesmo, Sula é uma eterna estranha, que por escolha própria se exila do pacto social e da vida em comunidade.

“Você monta no pônei e a gente raspa a bosta”?

Morrison, em seu brilhantismo de escrita, não nos autoriza a crer que sua protagonista seja apenas uma vilã implacável, uma destruidora de lares perversa e maquiavélica. Atentando para seus momentos íntimo de sensibilidade e introspecção, somos convidados a perceber o que os moradores de Medallion não poderiam jamais vislumbrar: que Sula, a despeito de seu comportamento antissocial e desagradável, não age por má-fé ou para causar intriga – Sula enxerga o mundo de uma forma diferente da que os outros o veem, de menos posse e mais liberdade.

Afinal, o desejo de Sula não é de “roubar” maridos e competir com as outras mulheres; ele passa pela defesa de uma moral que não seja pautada na exclusividade do acordo sexual, mas numa política de amizade que seja capaz de superar até mesmo a possessividade e o ciúme dos laços monogâmicos. De certo modo, o que Sula põe à prova é o limite das relações de companheirismo, evidenciando as contradições que estão no fundo das regras e acordos da vida em sociedade no que tange ao domínio do sexual.

“Depois que todas as velhas tiverem se deitado com os adolescentes; quando todas as meninas jovens tiverem dormido com os tios bêbados; depois que todos os homens negros treparem com todos os brancos; quando todas as mulheres brancas beijarem todas as negras; quando os guardas tiverem estuprado todos os presos e depois que todas as putas fizerem amor com as avós; depois que todas as bichas tiverem comido a mãe; quando Lindbherg dormir com a Bessie Smith e a Norma Shearer fizer aquilo com o Stepin Fetchit; depois que todos os cachorros tiverem fodido com todos os gatos e todo cata-vento em todo celeiro voar pelos ares para montar nos porcos… então vai sobrar algum amor por mim. E sei muito bem qual vai ser a sensação.”

A escritora Conceição Evaristo foi a curadora que indicou Sula para a TAG, em fevereiro de 2021

Sula pode não ser nenhum anjo, mas certamente também não é a bruxa má que tentam pintar a seu respeito. Se sua filosofia de vida nos é tão estranha quanto era para a população do Fundão – criando todo esse alvoroço –, é que também nós vivemos sob a égide das relações monogâmicas, românticas e idealizadas, associando o amor à exclusividade sexual de maneira muito imediata, numa construção que mal se questiona, e que se pretende passar por natural. Quem sabe não possamos caminhar para novos acordos e possibilidades de arranjos, em que para cada par (ou conjunto, que seja) a lealdade tenha seu próprio significado? Afinal, se para alguns a fidelidade é um ponto fundamental para investir em um relacionamento, para outros há valores mais importantes, como a liberdade e a honestidade, por exemplo. Que cada um saiba do seu desejo e faça o melhor que puder com ele, sem que isso precise se aplicar a todo mundo por igual. Até porque nós não somos todos iguais, e nem precisamos ser.

Resenha – Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk

Na premiação de 2018, o comitê do Prêmio Nobel de Literatura decidiu entregar a distinção à polonesa Olga Tokarczuk (e a Peter Handke), autora de uma vasta obra literária na qual se encontra o romance Sobre os ossos dos mortos, que chegou ao Brasil em 2019 pela editora Todavia, traduzido por Olga Baginska-Shinzato. Hoje, vamos falar um pouquinho sobre esse encanto de livro!

O romance, com cerca de 250 páginas, é narrado pela protagonista Janina Dusheiko, uma engenheira e professora aposentada que se dedica a ajudar os animais e protegê-los contra os caçadores do seu pequeno vilarejo, na fronteira entre a Polônia e a República Tcheca, enquanto realiza suas investigações sobre os mistérios da astrologia e ajuda seu amigo Dísio a traduzir os versos de Blake.

No momento em que a história começa, somente Janina e outros dois moradores, Esquisito e Pé Grande, estão no Lufcug, o vilarejo, pois a maioria de seus habitantes vai para a cidade quando chega o inverno, deixando a região praticamente deserta — com apenas três das sete casas que compõem a paisagem habitadas. E logo no primeiro capítulo, Esquisito bate à porte de Janina, em plena madrugada, para ajudar a arrumar o corpo de Pé Grande, que acabava de morrer.

Pé Grande, caçador inveterado, morrera num suposto acidente, engasgado com um osso que perfurara sua garganta, após haver matado e esquartejado uma corça que viera para a região há pouco tempo. Após ter trocado sua roupa e o deixado mais apresentável, Janina procura a data de nascimento de Pé Grande para observar a posição dos astros em relação à sua data de morte. Ela está segura de que, assim como haveria algumas relações entre o mapa astral de uma pessoa e os eventos de sua vida, a data e a causa da morte também poderiam ser encontrados nos planetas. Sua sensibilidade, exibida em doses homeopáticas ao longo de toda a narrativa, inclui uma perspectiva melancólica sobre o universo, a vida e a solidão. Em uma dessas passagens, ela pensa:

Fico comovida ao ver imagens de satélite e da curvatura da Terra. É verdade, então, que vivemos na superfície de um globo, expostos ao olhar dos planetas, abandonados num enorme vazio, onde, após a queda, a luz se aglutinou em pequenos fragmentos e arrebentou? É verdade. Deveríamos ser recordados disso todos os dias, porque nos esquecemos.

Quando a polícia finalmente chega, na manhã seguinte, começam as investigações sobre a morte de Pé Grande, que, ao contrário do que Janina e Esquisito haviam pensado, talvez não se tratasse de um acidente — e, sim, de um assassinato. Mas quem poderia tê-lo cometido?

Janina concebe uma teoria, na qual ninguém acredita, de que os animais resolveram se vingar de todos os anos de maus tratos, armadilhas, púlpitos de caça e crueldades dos seres humanos. Talvez agora eles estivessem, enfim, reagindo à nossa desumanidade. Janina, que é vegetariana e protetora dos animais, expressa seus pensamentos a respeito dessa relação, entre seres humanos e outros animais, em diversos momentos, urgindo a todos — vizinhos, caçadores, policiais — que deixem os animais em paz:

— Os animais mostram a verdade sobre um país — eu disse. — A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa.

Outras mortes de seres humanos cruéis com animais voltam a acontecer, aumentando o clima de suspense que assombra a história. E outros assassinatos de animais continuam a ocorrer, sem que ninguém, além de Janina, lhes dê a devida importância. Seus apelos, constantemente ignorados, fazem com que as pessoas ao redor acreditem que ela se importa mais com os animais que com os seres humanos (alô, especistas! deixem disso!), o que a coloca na condição de suspeita. Quem mais teria tantos motivos para querer essas pessoas fora do seu caminho?

Novos personagens vão se juntando à narrativa: o entomólogo, “Boros”, a moça do brechó, “Boas Novas”, o velho dono do Poodle que frequenta o brechó, e os outros vizinhos que de vez em quando aparecem na narrativa. Há também alguns momentos em que a narradora tem sonhos (visões?) com a mãe e a avó já falecidas, mas sem grande impacto no curso da história. Assim, a lista de personagens suspeitos aumenta, criando novas conexões ligadas também ao cenário dos assassinatos e ao clima de mistério.

Uma coisa interessante na escolha desses nomes — que, como devem ter notado, são apelidos — é pensar na estratégia usada muito sagazmente pela autora, para facilitar talvez a vida de seu público internacional, que teria dificuldades de guardar os nomes em polonês como o de Esquisito: Świerszczyński.

Principais impressões

Num tom de thriller e relato existencial, o romance nos deixa com a pulga atrás da orelha, em meio a visões de mundo que talvez, para muitos, sejam a porta de entrada para o debate entre o bem estar animal, a ética e a nossa própria humanidade, que vem sendo anestesiada pela nossa apatia e falta de compaixão, como profere a narradora em um de seus discursos:

O ato de se matar se tornou impune. E por ser impune, ninguém o percebe mais. E já que ninguém percebe, não existe. Quando passam pelas vitrines dos açougues onde grandes pedaços vermelhos de corpos esquartejados estão pendurados em exposição, acham que aquilo é o quê? Não refletem sobre isso, não é? Ou quando pedem um espetinho ou um bife, o que recebem, então? Nada disso assusta mais. O assassinato passou a ser considerado algo normal, virou uma atividade banal. Todos o cometem. Assim seria o mundo se os campos de concentração se tornassem algo normal. Ninguém veria nada de errado neles.

Além de ser muito envolvente, como se espera de um suspense escrito por uma vencedora do Prêmio Nobel, o livro abre oportunidades para que o leitor reflita sobre seus hábitos, sobre a ideologia carnista e nossa condição durante esse breve trajeto que é a vida. Além disso, as epígrafes e referências aos Provérbios do Inferno (de onde vem o título do livro!), Augúrios da Inocência e O Viajante Mental, que estão no corpo do romance direta ou indiretamente, abrem o diálogo intertexual com a obra de William Blake, cujos versos fazem parte do seu repertório cultural e ideológico. Um dos versos que mais me chama a atenção, presente na epígrafe do capítulo 7, parece estabelecer a comunicação em linha direta com a aposta do romance, se fosse possível resumi-lo em uma frase: um cavalo maltratado no caminho clama ao céu pedindo sangue humano.

Os únicos pontos negativos que, para mim, cabe apontar, são: (a) a construção da imagem da mulher vegetariana e amante dos animais como mística e esotérica, que pode fazer com que se tenha a impressão de que o tratamento ético dos animais é uma questão de crença, como a astrologia e as religiões, e não um ponto de vista muito racional e repleto de argumentos sólidos a seu favor, e (b) a escolha da personagem pelo vegetarianismo e não pelo veganismo, fazendo diversas menções a leite, ovos e queijos de seu consumo, o que é inconsistente com a visão de mundo de defesa dos direitos e liberdades dos animais. De qualquer forma, me parece que o livro pode ser muito útil nessa luta, que precisa — fora do mundo literário — urgentemente ser vencida.

Nota

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