Nestes tempos de pandemia, de isolamento social, de fake news e de desconfiança com relação à mídia e a uma parcela da sociedade, vivemos uma fase em que a comunicação com o outro, com o diferente e com o ausente tem se revelado um problema, no sentido de ser cada vez mais difícil, apesar de mais urgente. Esta dificuldade é um dos temas que atravessa os fragmentos poéticos de Relatos de uma Odisseia Pandêmica, curta-metragem produzido com o apoio e financiamento do Fundo Estadual de Cultura de Minas Gerais, e que indico agora, aqui, no Duras Letras.
Se valendo de recursos como enquadramento da câmera do smartphone e áudios de WhatsApp, Relatos de uma Odisseia Pandêmica se aproxima de uma linguagem familiarizada, sem deixar de lado uma boa dose de experimentalismo estético. O uso de filtros de cor e a projeção de frases/versos nas paredes da casa, nas portas, nas janelas e no corpo do ator deslocam nossa experiência de espectador, criando uma visão distanciada do cotidiano que a câmera tradicional procura representar.
Além disso, o curta-metragem denuncia aquilo que há de teatralidade nas relações interpessoais digitais e na suposta banalidade da vida cotidiana em isolamento. Seguindo essa linha, o vídeo demonstra como o home office e o contato com o outro via internet tem uma boa dose de fingimento, um cenário que se constrói ao redor do caos. Também, a louça, a limpeza da casa ou mesmo o café da manhã solitário, depois de tanto tempo e de tanto se repetirem, se tornam de alguma maneira tarefas monstruosas. Fora que, ao contrário do belo canto das sereias, que alcança os ouvidos do herói Odisseu, a musicalidade ouvida (se é que é possível chamá-la assim) ressona um desespero agudo, pungente.
Para não me delongar mais, finalizo essa breve apresentação apontando para o que há de “Penelopeia” na produção de Relatos de uma Odisseia Pandêmica. Aos que não conhecem, Penélope é uma personagem da Odisseia, que espera ansiosamente o retorno de Odisseu, seu marido, da guerra de Troia. Enquanto ele não volta, ela sobrevive, entre pretendentes, banquetes indesejados e a incessante tarefa de costurar e descosturar um longo véu.
O que está sendo a pandemia se não essa luta cotidiana – entre as funções infinitas de trabalhar e descansar, de arrumar e bagunçar a casa, de sujar e lavar a louça, de montar e desmontar o espaço de trabalho, a cama, a mesa para o café etc. – esperando o retorno daquilo que partiu? Assim como Penélope e o filho Telêmaco, vivemos em um jogo com a expectativa, na espera de acabar a pandemia, que ia durar apenas alguns meses.
Assista abaixo Relatos de uma Odisseia Pandêmica
Relatos de uma Odisseia Pandêmica. Produção coletiva Classificação: 14 anos. Anselmo Bandeira - atuação, direção, idealização, co-criação e produção Vitória Fonseca - direção, co-criação, montagem e produção Guilherme Mello - textos e co-criação Alice Mesquita - figurino e colaboração artística Gabriel Ventura - mixagem de som e trilha sonora