Quando se trata de poesia nonsense, o primeiro nome que vem à mente é, sem dúvida, Lewis Carroll, com os muitos poemas que recheiam tanto Alice no país das maravilhas como Alice através do espelho. Mas há outro grande e importante autor da poesia nonsense que, sobretudo fora da Inglaterra, por vezes é deixado de lado – ou você já conhece os limericks de Edward Lear?
Conterrâneo e contemporâneo a Carroll, Lear publicou o célebre A book of nonsense (algo como “Um livro de abobrinhas”) em 1846, cujo conteúdo era uma divertida poesia convivial que ganhou grande popularidade entre os ingleses da época, os quais brincavam de fazer versos de improviso e competir na maestria dessa habilidade.
Como os limericks seguem uma forma muito regular, tanto no que diz respeito ao ritmo e às rimas, como no conteúdo que cada verso deveria apresentar (como veremos daqui a pouco), o desafio era não somente criar versos engraçados e mordazes, mas também colocá-los dentro de uma “fôrma” como essa usada nos poemas de Lear.
Vejamos um exemplo de limerick:
Traduzidos muito ao pé da letra, os versos são assim:
"Havia um velho homem de Whitehaven,
Que dançava uma quadrilha com um corvo;
Mas eles disseram 'É absurdo
Encorajar esse pássaro!'
E esmagaram o velho homem de Whitehaven."
A tradução, nesse caso, não permite uma equivalência com o ritmo e com as rimas do original (mea culpa), mas possibilita, pelo menos, apresentar a sequência dos conteúdos que se pode esperar encontrar em um limerick:
- O primeiro verso introduz o protagonista: “Havia um(a) velho(a)/jovem fulano de tal lugar”;
- O segundo apresenta a situação inicial: “Que fazia (alguma coisa incomum, normalmente)”;
- O terceiro e quarto introduzem a ação;
- O verso final conclui e/ou comenta o que se sucedeu no fim da breve narrativa.
Como se pode notar, o limerick substitui o discurso coerente e articulado em privilégio da concisão, inclusive por ser uma grande aliada na obtenção do humor (como já havia dito Shakespeare, ‘Brevity is the soul of wit’, ou, “A brevidade é a alma do chiste”). Também é muito em função desse caráter inventivo e bem-humorado que o limerick se apoia em formas muito fixas: a novidade da informação, em rimas muitas vezes inusitadas ou disparatadas, contribui para a “não-sensidade” da historieta, e o desafio de rimas e manter a métrica enquanto se inventa uma narrativa coloca em posição desfavorável a linguagem lógica e coesa da vida cotidiana.
Tomemos mais um limerick como exemplo; neste, tentei fazer uma tradução (na verdade, transcriação) que preservasse mais da sonoridade original. Vejamos:
“Havia uma velha da França,
que ensinava a uns patinhos a dança;
Se ela diz ‘Tique-taque’
– eles fazem ‘Quack!’
Afligindo a velha da França.”
A partir desse poema, podemos exemplificar o esquema de métrica e rimas, que tende a obedecer o seguinte padrão: o primeiro, o segundo e o quinto versos, com três pés (ou três “batidas”); o terceiro e o quarto, mais curtos, com dois pés. Também as rimas aparecem assim: o primeiro, o segundo e o último rimando entre si (França/dança/França), enquanto o terceiro e o quarto possuem outro tipo de rima (Tique-taque/Quack), ou seja, seguindo a ordem AABBA.
Visualmente, podemos esquematizar o formato de um limerick desta forma:
— — — (A)
— — — (A)
♥ ♥ (B)
♥ ♥ (B)
— — — (A)
Quanto aos temas e situações apresentados nos poemas desse tipo, há uma grande recorrência de assuntos ligados à comida e aos animais: as inversões, aqui, são de mão única, uma vez que os humanos, nos limericks, se assemelham a animais (vale prestar atenção também às ilustrações de Lear, que era desenhista!), mas os animais não são antropomorfizados, embora façam coisas típicas de seres humanos (como dançar, nos dois exemplos anteriores).
Também verificamos nos limericks uma desproporção sempre inconsistente entre as ações iniciais e a reação popular: por pouca coisa, às vezes eles espancam, esmagam ou matam (!) uma pessoa; outras vezes, por mais grave que tenha sido seu crime, há uma resposta branda (até irrazoável) da parte ofendida, como no exemplo a seguir:
“Havia um velho de Chester,
a quem várias crianças atormentavam;
Elas jogaram grandes pedras,
que quebraram a maior parte de seus ossos,
E desagradaram o velho de Chester.”
No caso de velho de Chester, é de se espantar que a reação a tamanha violência por parte das crianças tenha sido um mero “desagrado”, enquanto que, no primeiro exemplo, a população esmagou o velho de Whitehaven simplesmente por ele dançar com um corvo (o que, pelo menos num primeiro momento, não apresenta mal algum).
Se há algo de constante, no entanto, com relação a esses comportamentos, é que a fuga da normalidade tende a ser muito mal recebida, de maneira a haver um embate entre o singular e o coletivo, em que o singular geralmente sai perdendo.
Só para não passar batido…
Não se sabe qual é a origem precisa do limerick, porém, a estimativa mais aceita é que tenha vindo da Irlanda (o que se especula pelo tipo de ritmo, comum da música folclórica irlandesa, e pelo nome, que remete ao Condado de Limerick, na região de Munster, ao sul do país).
Além disso, há a informação acerca de dois outros livros muito importantes nessa história – anônimos, History of sixteen wonderful old women (“História de dezesseis maravilhosas velhas”) e Anecdotes and adventures of fifteen gentlemen (“Anedotas e aventuras de quinze cavalheiros”) foram editados entre 1820 e 1822, e serviram de modelo aos limericks do próprio Lear. Por sorte, graças à digitalização e divulgação científica, hoje podemos acessar esses conteúdos sem grandes dificuldades, como este que trago logo abaixo:
“Veio uma senhora da França,
Que ensinava a crianças grandes a dança.
Mas eles eram tão duros,
[Que] ela os mandou para casa irritada;
A alegre senhora da França.”
Para bom entendedor, meia palavra basta – e para quem leu todos os exemplos até aqui, a referência é mais do que clara. Quack! 😉
Para quem acompanha a série The Crown, da Netflix, há na terceira temporada um episódio em que a princesa Margaret e o presidente Johnson iniciam uma disputa de limericks que ganha um caráter bastante pornográfico (como de fato passou a ocorrer, nos meios mais elevados). Assistindo à cena, dá pra perceber bem a estrutura que apontamos aqui – e rir um pouquinho da obscenidade da realeza! Rs.
E para fechar…
É bom lembrar que, por mais que seja uma tradição muito distante da nossa, também nós temos nossas brincadeiras, como os versos improvisados no formato do “Vampiro doidão” e de “Se a Perpétua cheirasse…”, repentes e jogos envolvendo sagacidade, inventividade e humor ácido. Dá até pra brincar de “limeriques” – mas não é bem essa a questão, né?
Para quem se interessou e quer saber mais sobre o tema, a recomendação é o livro que usei como referência para esse post, que é Rima e Solução (1996), de Myriam Ávila. Além disso, é possível encontrar Adeus, ponta do meu nariz (tradução de Marcos Maffei) e Conversando com varejeiras azuis e Viagem numa peneira (traduções de Dirce Waltrick do Amarante), também de Edward Lear, traduzidos para o português e a preços bem acessíveis – pelo menos, até a presente data. Do futuro, yo qué sé? O A book of nonsense, por outro lado, não é nada fácil de se achar em português (eu, pelo menos, não consegui), mas pelo menos em inglês é bem fácil de se encontrar (para quem se vira bem no inglês, uma opção com bom custo-benefício é o The complete nonsense of Edward Lear). Quem sabe algum tradutor bem animado não encontre por aqui um último estímulo que faltava? Rs. Não deixem de me avisar!
Aos queridos e queridas que chegaram até aqui, espero que tenham gostado e que esse material tenha sido fonte de um doce deleite. ♥