Qual o seu nível de leitura literária? Descubra e aprenda a aprimorá-lo!

Caros leitores e colegas amantes da literatura, o material que trago hoje para vocês foi criado com inspiração nos níveis de proficiência linguística do Quadro Comum Europeu de Referência para Línguas, que serviu de fonte para uma reflexão sobre nossas habilidades de leituras e como desenvolvê-las. Nesse sentido, esses níveis e categorias não são oficiais para esse assunto, embora possam ajudar com situações reais àqueles que buscam se aprimorar nos caminhos da leitura e da crítica literária.

Por essa razão, optamos por que cada um identifique seu próprio nível – com maior ou menor precisão – e escolha entre as muitas dicas desse post aquelas que melhor servirem aos seus objetivos, a partir dos seus próprios desafios e competências. Esperamos que sejam úteis! ♥ E aí, qual o seu nível no nosso Quadro (Incomum) de Referência para Literatura?

A1 – Iniciante

Meus primeiros passos na literatura!
Sou capaz de compreender textos mais simples e ligados ao meu dia a dia, como livros e crônicas que retratam o cotidiano, mas tenho dificuldades com a identificação dos elementos da narrativa e das figuras de linguagem como metáforas e metonímias.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Você muito provavelmente termina de ler um texto e não sabe bem o que dizer sobre ele, não é? Geralmente, quando é assim, é comum que a gente faça críticas “impressionistas” (quer dizer, da nossa impressão do texto) do tipo: Ah, gostei dessa parte! ou Não entendi o que ele quis dizer com isso aqui… Se você quer avançar, fuja dos comentários como “gostei” ou “não gostei”. Tente, antes, prestar atenção aos cinco elementos da narrativa (personagem, espaço, narrador, tempo e enredo – o famoso P.E.N.T.E.) e observar como diferentes autores trabalham seus textos.

Você pode se fazer certas perguntas para direcionar a observação: quem age e/ou sofre as ações da história? onde essa história se passa? quem está contando (é a própria pessoa que vivenciou ou é alguém externo)? quando isso acontece? qual acontecimento ou episódio está sendo narrado? Perceba que, quando começar a responder a essas perguntas naturalmente, você já estará apto para o próximo nível.

A2 – Intermediário

Entrei na roda!
Consigo identificar os elementos da narrativa sem grandes problemas, porém acho difícil reconhecer o uso de ironia e recursos intertextuais. Me dou bem com textos ligados ao meu cotidiano e com textos fantásticos, desde que a narrativa seja envolvente, mas ler textos clássicos é um grande desafio para mim.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Antes de começar a ler, faça uma busca rápida no Google para saber um pouco sobre o autor ou autora que você está prestes a enfrentar. Ele (ou ela) trabalha com alguma temática recorrente? Está ligado(a) a algum tipo de movimento ou escola literária? Quais são as principais características dessa escola? Quando o livro foi publicado, havia algum contexto específico que estivesse em relação com essa narrativa? Esse texto se refere, de algum modo, a outro texto ou autor? De que maneira? Tente manter tudo isso em mente quando tiver o livro em mãos! Se o autor com que você está trabalhando luta por um ideal socialista, por exemplo, suas figuras burguesas muito provavelmente serão ironizadas na forma de bonachões ou hipócritas. Se é feminista, as situações em que suas personagens mulheres se encontram provavelmente estão em relação com essa pauta social! Fique atento para a forma como esses autores constroem seus enredos: imagens repetitivas e palavras recorrentes podem indicar algo que não está explícito na superfície do texto.

B1 – InDEPENDENTE

Nadando de braçada!
Sei me virar bem com textos que usam e abusam de figuras de linguagem e consigo reconhecer recursos estilísticos como ironias, hipérboles, metáforas, alegorias, etc. Posso ler diversos gêneros literários e compreender tanto sua narrativa e seus elementos básicos quanto as escolhas estilísticas do(a) autor(a), mas não tenho conhecimento técnico para analisar uma obra.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Deixo avisado desde já que a maior parte das pessoas não ultrapassa esse nível, seja por acomodação, seja por falta de conhecimento. Daqui pra frente, nos estágios avançado e autônomo, é preciso estudar para conseguir estabelecer um nível de leitura menos diletante e mais profissional. Se você tem esse desejo, é muito importante que você comece a pesquisar sobre teoria literária e que leia muito sobre esse assunto, pois são várias as correntes críticas para analisar uma obra: o formalismo, o estruturalismo, o new criticism, os estudos culturais, o desconstrutivismo, a hermenêutica, a crítica decolonial… Se precisar de dicas para começar, eu sugiro o Iniciação à Literatura Brasileira, de Antonio Candido, o Literatura Comparada, da Tania Carvalhal, ou o Teoria da Literatura, de Roberto Acízelo de Souza. Se estiver se sentindo particularmente confiante, pode ir direto para O Rumor da Língua, de Roland Barthes.

(Aliás, já pensou em fazer Letras? Os bacharelados em estudos literários são uma ótima opção para quem ama trabalhar com literatura! ♡)

B2 – Avançado

Tudo não é interpretação!
Sou capaz de fazer uma análise estrutural da narrativa, bem fazer um close reading (leitura cerrada) ou uma análise comparativa de textos literariamente mais complexos. Contudo, não me sinto confortável com leituras que se guiem muito pelas experimentações com a linguagem, como fluxos de consciência, textos pós-modernos e certos tipos de poesia.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Procure cursos especializados ou disciplinas universitárias que se voltem para a leitura de textos como esses que te causam problemas. Valem os cursos de poesia pós-moderna, de leitura de James Joyce, de Virginia Woolf, Clarice Lispector ou Hilda Hilst. Existem muitas plataformas online e programas de extensão (normalmente, das universidades públicas) com esse tipo de curso. E quando encontrar muitas dificuldades, lembre-se de pesquisar os textos acadêmicos sobre o assunto. O Google Scholar é uma ótima ferramenta para encontrar esses materiais – e, muitos deles, gratuitamente!

C1 – Autônomo

O centro não é o centro!
Minhas habilidades de leitura me permitem apreciar um texto também pelo seu estilo de linguagem, para além da sua trama, e sou capaz de analisar um texto literário de diversas formas, a partir de perspectivas diferentes da teoria da literatura. No entanto, ainda dependo muito da crítica precedente para apoiar a minha própria crítica.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Desafie-se! Leia obras da literatura contemporânea e faça o esforço de refletir sobre elas a sério, como faria com um texto já consolidado pela crítica. Lembre-se: o trabalho da crítica não é de exclusão, mas sim de trazer para o público grandes autores e autoras à espera de ser descobertos. Se possível, escreva, compartilhe suas críticas, debata com colegas e continue construindo seu repertório. Quanto mais você trabalhar essa habilidade, melhor você será nela, e em algum momento poderá se sentir mais confiante para propor outras críticas – suas, originais – até para obras já canonizadas.

C2 – Fluente

The fall (bababadal!)
Leio por ofício, não só por prazer. Tenho uma grande bagagem literária e conhecimento teórico, reconheço estruturas e índices e sinto segurança para fazer uma crítica inédita de um texto literariamente complexo, seja ele clássico ou contemporâneo, e posso levar à baila críticas feitas por outros com argumentos sólidos. Além disso, presto muita atenção às escolhas lexicais do autor e verifico sempre que possível os usos feitos no texto original, quando em outro idioma. Posso ler até o Finnegans Wake, se quiser!

Você chegou no último estágio! Uau!
Se chegou até aqui, você já sabe muito bem e melhor que eu como avançar nesse caminho da leitura literária profissional. Agora, quem sabe você não pode levar suas leituras para outros espaços e ajudar novos leitores nessa estrada dos tijolos amarelos? ❤ Seguimos!

Entre Drummond e Borges

Carlos Drummond de Andrade e Jorge Luis Borges cresceram e criaram suas literaturas em contextos muito similares: embora nunca tenham chegado a se conhecer, os dois foram escritores a presenciar as grandes mudanças da modernidade, a vida da cidade, o conturbado começo do século XX e suas grandes marcas na história. Apesar de o primeiro ter se alçado principalmente como poeta, enquanto o segundo se destaca pelos seus contos, semelhanças relevantes permeiam a literatura desses dois nomes de peso da América do Sul. O texto a seguir apresenta algumas das ligações entre os autores, a partir dos aspectos fundamentais de suas obras.

Tão complexa é a realidade (…) que um narrador onisciente poderia redigir um número indefinido, e quase infinito, de biografias de um homem.

(Jorge Luis BORGES)

A partir dessa citação, é possível observar que na obra borgeana há toda uma apropriação da realidade que assume o pressuposto da multiplicidade e do momentâneo: as muitas camadas do real se sobrepõem e através do seu recorte de imagens e de seu consecutivo desvio se delineia um “caos de aparências” que atravessa a literatura do autor.

Nesse sentido, o argentino delimita um olhar sobre a realidade em que o objetivo não é a mímeses, mas o simulacro metafórico que prescinde de referentes extratextuais. Por essa mesma razão, os personagens borgeanos não são psicologizados, e a ênfase se dá sobre a trama, motivo pelo qual a brevidade se mostra um recurso estilístico recorrente, dialogando com a tradição literária (e não apenas a argentina) em vistas de questioná-la e não enfeitar a flor, propondo mesmo uma reflexão sobre o que significa criar uma literatura argentina – o que ultrapassa em muito a inserção de elementos da cor-local.

Ainda assim, a escrita borgeana se apropria, borra, e miniaturiza toda a tradição argentina do século XIX: parte do caráter popular de seus contos tem a clara influência da literatura gauchesca (marcas de oralidade, culto à coragem, à violência, etc.), como se percebe em Hombre de la esquina rosada, de Historia universal de la infamia, a título de exemplo.

Há também uma forte marca anti-intelectualista, no sentido de que a busca da verdade nas bibliotecas e nos livros não leva a lugar algum. Ela assume, por isso, um caráter populista, escolhendo buscar a verdade na vida do homem comum, ao mesmo tempo que busca a totalização no seu cosmopolitismo, na erudição e no manejo da cultura.

Também parte dessa busca a ideia de circunscrever a realidade através do olhar alheio, o que faz com que seus contos carreguem ares de transcrição de relatos de terceiros. Por isso mesmo, Borges se apropria do outro e distorce a realidade desse outro sem referente externo, até sobrar a imagem comunicada a partir de fragmentos coordenados de forma coerente, ainda que plural. O jogo borgeano é, portanto, o jogo das máscaras e dos contrastes, em que os personagens, a um só tempo, estão e não estão desmascarados, onde o rosto e a máscara se encontram num ponto de divergências.

O poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade

Por sua vez, Drummond se apropria da realidade amparando-se na ideia de registrá-la como se dela estivesse apartado, embora não o esteja de fato, e embora o faça através da estética modernista. A essa busca por limitar-se a registrar (fatos, acontecimentos, sentimentos), contrapõe-se o desejo de criar laços com o outro, motivo pelo qual se apropria das memórias do passado de todos: assim como Borges, revela um claro anseio pela totalização, que se espelha nas muitas menções à palavra “mundo” na sua poesia, como destaca Miguel Wisnik.

Insere-se, assim, o gosto por um cotidiano expandido, alargado, que, como Borges, guarda o traço popular na sua poética. Nesse sentido, livros com o A Rosa do Povo confeccionam uma espécie de epopeia do cotidiano, em que a busca por uma verdade recai inevitavelmente na verdade do homem simples, do qual o poeta se aproxima como uma alteridade, como no poema O Medo, que dialoga com seus próprios temores e sua subjetividade solitária, a exemplo de Consolo na praia.

Nesse aspecto, o eu e o mundo se aproximam, se distanciam, se contradizem e se complementam na medida em que o eu-poético questiona as possibilidades dessa coletividade e de se fazer poesia na cidade e no mundo moderno. Tal inquietude, por certo, permeia toda a construção literária do poeta itabirano: o cosmopolitismo drummondiano, à divergência do escritor porteño, passa pelo sentimento de não pertencer a nenhum lugar ou grupo (“Itabira tornou-se apenas um retrato na parede”), marca de sua profunda solidão e seu senso de dépaysement, como se coloca na incompletude do poeta na roça e no elevador:

Explicação

Meu verso é minha consolação
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre…
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
Mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, [preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola…
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de quaquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era…
no elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

(DRUMMOND, Explicação. In: Alguma Poesia – 1915. Grifo nosso)

Nesses termos, o poeta mineiro demonstra apreender a realidade na perspectiva do objeto que escapa, como se quebrasse a própria possibilidade do fazer poético na bênção e na maldição de fazer parte do mundo moderno. Assim, indivíduo e mundo se flexionam constantemente, dando pistas da posição desse eu-poético frente a esse novo mundo: deslocado, inadequado, anacrônico, que carrega desde seu primeiro verso a profecia gauche (“Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.), mas que se força a esse espaço fronteiriço na postura de reconhecer-se enquanto falta ou sobra, como inclusão excludente, fazendo que essa poesia se insurja contra a “grande máquina” que coisifica pessoas e relações, mas também contra as palavras, colocando-se como uma arte anárquica que subverte o seu sentido. Desse modo, é como se essa procura pela poesia não se afastasse da procura do mundo, em que Drummond se coloca como condenado: ainda bem.

Este texto foi concebido como trabalho final para a disciplina Borges e Drummond, ministrada pelo prof. Roberto Said da Faculdade de Letras da UFMG.

Sair da versão mobile