Para colher dos outros frutos
Desde 2018, quando decidi morar com minha companheira e noiva, estou em contato (imerso, eu diria) com o discurso vegetariano/vegano e também com os hábitos que o compõem. Talvez tenha sido daí que surgiu o interesse em ler o livro da sul-coreana Han Kang: A vegetariana, publicado pela editora Todavia, em 2020, que, desde o título, parece tocar na questão dos direitos dos animais.
Mas, ao contrário do que sugere esse título, não se trata de uma narrativa que tem como centro do debate a animalidade e o vegetarianismo, e ao invés de colher pêssegos no pessegueiro de Han Kang, colhi algumas maçãs. Esse é um ponto que me causou, ao mesmo tempo, certa decepção e certa alegria durante a leitura, e espero que, nessa resenha, eu consiga esclarecer o porquê.
Trama
A vegetariana conta a história, mas principalmente o enigma, das consecutivas decisões da personagem Yeonghye: uma artista gráfica que – aos olhos do marido Cheong e de seus familiares – é completamente normal, mediana e, de certa maneira, cumpridora de suas obrigações.
Tudo começa com a narração de Cheong, revelando que a esposa, depois de ter um sonho, decide se tornar vegetariana/vegana, repudiando qualquer coisa que esteja relacionada à exploração animal, da carne aos sapatos de couro. A decisão dela se transforma em um empecilho para a dinâmica familiar que tanto agradava o marido, e seus desdobramentos são um crescente que move a narrativa e se desdobra em novos capítulos.
No livro, teremos três deslocamentos de narrador, passando primeiro pelo marido, depois pelo cunhado de Yeonghye e finalmente por sua irmã mais velha. Cada um dos três precisa lidar com o mistério da personagem central, que, assim como o Bartleby, de Herman Melville, entra em um processo contínuo de recusas absurdas: não comer, não se lavar, não se vestir, não falar (e não viver, talvez?).
Pêssegos e maçãs
Han Kang não fez um romance amador ou de primeira viagem: A vegetariana é, na verdade, afiadíssimo, tanto na construção de paralelos cênicos internos, bem como na brincadeira com as vozes narrativas, que, ainda que próximas, nunca alcançam ou entendem as intenções da personagem central da trama. Além disso, a áspera crítica a uma política ditatorial contra o corpo e contra o indivíduo, procurando encontrar uma outra relação consigo e com o outro, não perde de vista a força literária e evita, na maior parte do tempo, o didatismo e a auto explicação tão comuns em romances contemporâneos.
Agora, um ponto que também acho importante comentar é a maneira como se articulam no texto, intencionalmente ou não, o carnismo e o machismo (bem como outras formas de violência). Ainda que não apareça como ponto central, a barbaridade humana contra os animais aparece no livro como um sinédoque da relação que um “homem normal” – como se auto intitulam Cheong e o pai de Yeonghye – estabelece com uma mulher, uma vegetariana. Mas também poderia ser com um estrangeiro, com um negro, um gay etc. O que quero dizer é Han Kang acaba demonstrando que sempre haverá, segundo nossa cultura excessivamente capitalista, um descompasso que resulta em violência contra o que é diferente, ainda que ela seja insistentemente mascarada.
Frutas podres
A primeira impressão que tive do livro foi extremamente negativa e me sinto até um pouco estranho já que, agora, mal consigo pensar em algo de que não gostei na trama e no estilo da autora. Acho que, fora minha decepção momentânea com o fato de o vegetarianismo não estar no centro do debate, apenas o terceiro capítulo (“Árvores em chamas”) me causou uma má impressão, já que, nele, frequentemente, as metáforas são explicadas e desmontadas pelo narrador e pelos olhos da irmã de Yeonghye.
Fora esse fruto estranho e um tanto azedo para meu paladar, não colhi nada que não fossem boas maçãs do pessegueiro plantado por Han Kang. Talvez fosse o caso de subir outra vez à escada e retomar a obra, à procura de outros frutos, mesmo daqueles que contêm as larvas, quase invisíveis, por baixo da casca.
semear
É sempre muito bom poder ler um livro que sai do nosso ciclo tradicional, da cultura ocidental/acidental, para enveredar rumo a essas literaturas diferentes e, diga-se de passagem, de muita qualidade. A vegetariana é, com toda certeza, uma das melhores obras que li neste ano de 2021, e me deixou motivado a procurar outros textos de Han Kang e de seus conterrâneos.
Aos que querem ler uma obra pequena, mas poderosa e impressionante, e aos que têm curiosidade pelo fato de se tratar de um texto para lá de estrangeiro: cedeis à vossa curiosidade. A leitura, se não indispensável em tempos como os nossos, é extremamente frutífera. Acredito que não haverá arrependimentos.