Idade média em tecnicolor

Gabriel – autor e editor aqui do Duras Letras – me pediu uma lista, uma seleção, de três poemas medievais que me encantam. Eu adoro listas, acho que o desafio de encontrar alguma relação de equivalência entre números e textos tem valor por si mesmo. O norte, em suas próprias palavras, deveria ser o encantamento. O desafio ao qual eu me referi está em que a finitude implica escolhas e escolhas implicam em recusas. Isso é próprio da vida humana, infelizmente não é somente nos momentos em que temos que propor uma seleção de três poemas medievais demandados por nosso amigo Gabriel que acabamos tendo que fazer apostas. Com esse papo introdutório quero afirmar que a frustração decorrente das listas e seleções é que elas são um entrave objetivo para o nosso desejo de infinito.

Trovadorismo. Cantigas medievais.

Em um primeiro momento, minha ideia era buscar trechos de obras importantes, algum troubadour occitano com seus cantos sobre moças bonitas e passarinhos, me parece importante também terem goliardos, deboche e vinho para os leitores. A idade média também é, dizem, sobre coragem, tomem então o imperador da barba florida Carlos Magno acompanhada da sua espada joyeause, um objeto riquíssimo para a psicologia, dado o seu nome sugestivo. Mas, em um segundo momento, não me pareceu que o encantamento sugerido pelo Gabriel passa por aí. Muitas vezes uma certa ideia de cultura geral, a necessidade de divulgar, introduzir, ampliar, acaba sobrepondo o simples gozo da leitura. Nada contra a educação, nada contra o ensino de literatura, mas o texto pode ter como razão apenas o prazer, o Ocidente não precisa ser protegido das garras do prazer, nem tudo na vida é formação.

O meu encantamento anda muito voltado para os galegos, talvez mais por ofício, pesquiso sobre eles, do que algo súbito e apaixonado. Vou compartilhar com vocês o prazer em relação à três poemas, na verdade não são muito lá poemas, mas ao mesmo tempo são. No seu tempo, ou melhor, quando letra e voz coincidiram, lá pelos séculos XI, XII e XIII, eles eram canções, mas aqui, no presente em que escrevo, nós os lemos como poemas, dissociados de melodia. É louco pensar que nossa relação com esse objeto estético é bastante outra se comparada com os jogos de intenção de permearam sua composição. Nossa leitura é criativa, ela reinventa o texto aos olhos do nosso tempo. Penso que isso acaba tornado a idade média, a nossa idade média, dos contemporâneos, dos iphones, dos terroristas, do neofascismo e de um urgente ecosocialismo, uma idade média em tecnicolor.

O primeiro, não por acaso, foi o primeiro poema do trovadorismo galego-português que me convidou ao encantamento. Segue abaixo:

Ai ondas que eu vim veer,
se me saberedes dizer
por que tarda meu amigo sem mim?
Ai ondas que eu vim mirar,
se me saberedes contar
por que tarda meu amigo sem mim? (B 1284, N 7, V 890)

Desde então, Martim Codax ocupa um lugar muito intimo no meu imaginário. Gosto de pensar no Mar de Vigo, lugar geográfico, mas que na minha consciência é mais um lugar poético, enquanto um primeiro porto do meu imaginário amoroso. A posição do eu lírico, no caso um eu lírico feminino, saudosa do objeto de seu desejo, tal qual o gênero das cantigas de amigo demanda, combina uma simplicidade retórica com uma grande tensão. A partir da constituição do próprio mar enquanto interlocutor, um interlocutor que participa da cena a partir da sua própria mudez, a ideia da saudade assume uma formulação quase concreta, como se fosse algo possível de tocar.

O segundo poema é do rei e trovador Dom Dinis. Gosto muito desse poema pois ele aponta para outra possibilidade de tensão, penso aqui com meus botões que talvez o pulo do gato, quando o assunto é essa tradição poética, esteja na produção de uma poética do atrito entre o desejo e o impossível. Coloco o texto para vocês abaixo:

Senhor, dizem-vos por meu mal
que nom trobo com voss'amor,
mais ca m'hei de trobar sabor;
e nom mi valha Deus nem al
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar.
E essa que vos vai dizer
que trobo porque me pag'en
e nom por vós que quero bem,
mente; ca nom veja prazer,
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar.
E pero quem vos diz que nom
trobo por vós, que sempr'amei,
mais por gram sabor que m'end'hei,
mente; ca Deus nom mi perdom,
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar. (B 509, V 92)

A questão ou problema pelo qual o enamorado passa é no mínimo paradoxal. Ele é acusado de trobar sabor, ou seja, cantar/compor pelo simples prazer de produzir arte verbal, poesia. Tal acusação é séria, se pensarmos que o texto tem como destino declarar o amor, mas recebe a fama de quem na verdade só tem amor pelo próprio cantar. Tal amante não estaria, portanto, interessado de fato pela moça, mas sim utilizando ela como pretexto para a poesia. Ele se defende, afinal, verdadeiramente sente amor e prova, ironicamente, através da sua competência de poeta/trovador.

Por fim, mas não menos encantadora, voltamos para o mundo da cantiga de amigo. Não consigo negar, o que mais me interessa no medieval é o amor. A burguesia cortou a cabeça da nobreza, posição ao meu ver muito razoável, mas não conseguiu demolir esse monumento medieval, tudo bem, ele foi retocado, aburguesado, mas a raiz dos nossos sentires está lá, nas trovas, no impossível tão bem cantado.

– Cabelos, los meus cabelos,
el-rei m'enviou por elos,
[ai] madre, que lhis farei?
– Filha, dade-os a el-rei.
– Garcetas, las mias garcetas,
el-rei m'enviou por elas,
[ai] madre, que lhis farei?
– Filha, dade-as a el-rei. (B 1154, V 756)

Na cantiga acima, atribuída ao trovador João Zorro, o texto constrói-se a partir de uma relação dialógica, mãe e filha. O rei demandou que a jovem entregasse para ele seus cabelos, alegoria sensual voltada tanto para a construção de uma relação intima quanto para o próprio matrimónio, era próprio das mulheres solteiras portarem os cabelos soltos e das casadas o guardarem sob um véu.  Garcetas, significam tranças, gosto de pensar nesse texto, na centralidade dos cabelos, na descrição das tranças, enquanto uma elaboração da tensão anterior ao encontro, a ambiguidade da jovem frente ao rio que deve cruzar, o rio da virgindade, da inocência.

Outro ponto de tensão está na própria posição de quem ambiciona os cabelos: um rei. Não fica claro até que ponto cumprir com os seus desejos equivale a própria vontade da amiga. A fala da mãe pode ser tanto um incentivo quanto uma resignação. Nesse sentido, a trova desvela sobre o corpo do erotismo o corpo político do mundo medieval. A ambiguidade de uma época que eleva o feminino ao campo da adoração enquanto simultaneamente faz da execração das filhas de Eva uma tópica literária e uma prática rotineira.

Ficamos por aqui, espero que essas três trovas sejam prazerosas. Não propus uma tradução para elas por pensar que no jogo de semelhança e diferença entre os dizeres do galego-português e o do nosso português brasileiro continua havendo possibilidade de compreensão. Elas podem ser lidas na seguinte página

Nesse link vocês podem acessar o projeto Littera, da Universidade Nova de Lisboa. O site é incrível e tem um farto material acerca dessa época.


Quer conhecer outra dessas cantigas?

Angústia, das mitologias antigas à vida contemporânea: “Relatos de uma Odisseia Pandêmica”

Nestes tempos de pandemia, de isolamento social, de fake news e de desconfiança com relação à mídia e a uma parcela da sociedade, vivemos uma fase em que a comunicação com o outro, com o diferente e com o ausente tem se revelado um problema, no sentido de ser cada vez mais difícil, apesar de mais urgente. Esta dificuldade é um dos temas que atravessa os fragmentos poéticos de Relatos de uma Odisseia Pandêmica, curta-metragem produzido com o apoio e financiamento do Fundo Estadual de Cultura de Minas Gerais, e que indico agora, aqui, no Duras Letras.

Se valendo de recursos como enquadramento da câmera do smartphone e áudios de WhatsApp, Relatos de uma Odisseia Pandêmica se aproxima de uma linguagem familiarizada, sem deixar de lado uma boa dose de experimentalismo estético. O uso de filtros de cor e a projeção de frases/versos nas paredes da casa, nas portas, nas janelas e no corpo do ator deslocam nossa experiência de espectador, criando uma visão distanciada do cotidiano que a câmera tradicional procura representar.

Além disso, o curta-metragem denuncia aquilo que há de teatralidade nas relações interpessoais digitais e na suposta banalidade da vida cotidiana em isolamento. Seguindo essa linha, o vídeo demonstra como o home office e o contato com o outro via internet tem uma boa dose de fingimento, um cenário que se constrói ao redor do caos. Também, a louça, a limpeza da casa ou mesmo o café da manhã solitário, depois de tanto tempo e de tanto se repetirem, se tornam de alguma maneira tarefas monstruosas. Fora que, ao contrário do belo canto das sereias, que alcança os ouvidos do herói Odisseu, a musicalidade ouvida (se é que é possível chamá-la assim) ressona um desespero agudo, pungente.

Para não me delongar mais, finalizo essa breve apresentação apontando para o que há de “Penelopeia” na produção de Relatos de uma Odisseia Pandêmica. Aos que não conhecem, Penélope é uma personagem da Odisseia, que espera ansiosamente o retorno de Odisseu, seu marido, da guerra de Troia. Enquanto ele não volta, ela sobrevive, entre pretendentes, banquetes indesejados e a incessante tarefa de costurar e descosturar um longo véu.

O que está sendo a pandemia se não essa luta cotidiana – entre as funções infinitas de trabalhar e descansar, de arrumar e bagunçar a casa, de sujar e lavar a louça, de montar e desmontar o espaço de trabalho, a cama, a mesa para o café etc. – esperando o retorno daquilo que partiu? Assim como Penélope e o filho Telêmaco, vivemos em um jogo com a expectativa, na espera de acabar a pandemia, que ia durar apenas alguns meses.

Assista abaixo Relatos de uma Odisseia Pandêmica

https://youtube.com/watch?v=uQ_9PipMwgA%3Fcontrols%3D0
Relatos de uma Odisseia Pandêmica.

Produção coletiva
Classificação: 14 anos.

Anselmo Bandeira - atuação, direção, idealização, co-criação e produção
Vitória Fonseca - direção, co-criação, montagem e produção
Guilherme Mello - textos e co-criação
Alice Mesquita - figurino e colaboração artística
Gabriel Ventura - mixagem de som e trilha sonora

MAIS CONTEÚDO

O que é ficção científica? – Live do projeto “Em um mês, um conto”

No sábado passado, dia 17 de abril, nossa editora e autora Isadora Urbano participou de uma live que teve como objetivo principal definir (ou pelo menos tentar) o que é ficção científica. A live foi feita como parte da terceira edição do projeto Em um mês, um conto, criado por Paloma Bernardino e por Luca Creido (Lucas Nunes). Aos que não foram apresentados, Em um mês, um conto é uma iniciativa que busca fomentar a produção literária de autores independentes, conhecidos ou ainda desconhecidos. A ideia toda do projeto, como o próprio nome sugere, está ligada à confecção de uma narrativa autoral relativamente curta, que deve ser feita no período de um mês e que fará parte de uma antologia elaborada em conjunto pelos autores.

O tema da terceira edição é justamente ficção científica e, por isso, além de tentar responder à pergunta principal: o que é ficção científica, Isadora também discutiu o lugar que esse gênero ocupa na literatura e no mundo contemporâneo, depois de tantas conquistas espaciais e o sonho não tão recente de habitar o planeta vermelho, vizinho da Terra, Marte.

Sobre o Em Um mês, um conto

Em um mês, um conto é um projeto sem fins lucrativos e de caráter colaborativo que auxilia autores na elaboração, publicação e divulgação de contos autorais. Os escritores participantes são assessorados e integram grupos digitais para trocar experiências entre si e conversar sobre temas diversos ligados à literatura. A plataforma principal do grupo é o Instagram, pelo qual os organizadores promovem lives e outras atividades suplementares à escrita literária. Em um mês, um conto já está em sua terceira edição e já publicou uma antologia de contos de terror, originada das edições anteriores.


Gosta de ficção científica?
então confira também:

4 poemas inéditos de “Lua Vespertina”, de Marina Naves

Lua Vespertina, da poeta mineira Marina Naves, é, antes de tudo, a história da vida de uma pessoa qualquer contada por meio da poesia. Seu protagonista se chama Azevedo, e seus caminhos são contados pelas páginas do livro desde a tenra infância – até o momento de sua morte. Eventos detalhados não são abordados, mas sim as impressões e sensações que se tem sobre elementos comuns à vida de qualquer ser humano: a curiosidade, o crescimento, o advento da maturidade, o amor, a melancolia, a tristeza e o medo. As fases da vida do protagonista acompanham as fases da Lua (começando, portanto, no nascimento – a Lua Nova – , e culminando na morte – a Lua Minguante).*

* Texto fornecido pela autora.

Agora, com vocês, quatro poemas de Lua Vespertina. 🌗🌘🌑🌒🌓

SÍSIFO

Hoje escrevi na lama um verso
todo bucólico de pastorinhas.
Falei do orvalho e da neblina,
e das ovelhas brancas de algodão.

Logo apareceu um desses gatos
e nas letras pisou, todo incutido.
Fiquei bravo, fui jogar bola,
e o poeminha ficou todo sujo.

É fácil não ser arrogante,
e mais fácil ainda é se esquecer.
Hoje lembrei enquanto dormia:
sonhar é bom, em sonhos nada perco.

Mas eu me acordo e tudo já se esvai,
tal como versinhos no barro.
Bom seria não fazer nada disso,
igual a mamãe, o papai e o pastor.

HECATOMBE
(de cem suspiros)

“daí, suor me poreja de alto a baixo, então
tremuras me tomam toda, orvalhada fico, mais
que a relva, com pouco lassa, morta” (Safo)

Quisera Zéfiro, com seu carinho,
beijar a relva macia com o
mesmo encanto com que tu me beijas;

quisera Penélope tecer linho
com maior saudade e maior dor
do que as minhas, quando o imo me aleijas

Quiçá tampouco Apolo luminoso
tanto amor não louvou, quando em jardim
transformou o corpo&sangue derramado
de Jacinto; não, nem sequer o Febo
tamanho zelo conseguiu louvar

Pois é maior do que qualquer colosso
o que em minh’alma de campos sem fim
eu carrego; e nem vinho libado,
nem corpo ungido d’um herói mancebo,
são tão benditos por mim em meu altar

quanto tu.

OFÉLIA
(a uma donzela morta)

“Et qu’il a vu sur l’eau, couchée en ses longs voiles,
la blanche Ophélia flotter, comme un grand lys”
(A. Rimbaud)

Sua face, mais que o brilho da Aurora
resplandece — e a tez pálida e gelada
dorme em mimosos gypsos adornada,
enquanto lhe nina a própria Flora!

Fronte graciosa, ainda quente, ali ora
e ostenta a Beleza que lhe foi dada!
Voz meiga de anjo, pura, imaculada,
estrela alguma me ofusca a senhora!

O seu semblante morno dorme e cora,
espero-a volver-me o olhar agitada!
Espero-a; o tempo passa e ali demora…

Não acorda! Esta víbora, vil espada
corta-me a alma como cortou-lhe outrora;
como a amarei morta, desanimada?

OBSESSÃO

“Mais les ténèbres sont elles-mêmes des toiles
où vivent, jaillissant de mon oeil par milliers,
des êtres disparus aux regards familiers”
(Charles Baudelaire)

Tudo que vivo era, que respirava
no ar o seu perfume dissimulado,
sentia na alma a traiçoeira clava
de em si próprio amar mortal pecado.

Um inferno inteiro transmutado em
lábios róseos, luxúria e asco;
eram seus negros olhos, seu desdém,
o machado profano do carrasco.

“Cruel esfinge dos austeros vitrais,
teu corpo ‒- serva me, servabo te,
suplica-lhe misericórdia entre ais…”

“Isto é tudo que aqui se vê ou sente…”
— replicara ao seu rosto nos cristais —
“…sê tu vassalo da tua mente.”

O livro de Marina Naves está à pela editora Margem.
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Aproveite para ler também

“Eu não sei. Acho que viajo muito.” – Entrevista e poemas de Marina Naves

Conversamos hoje com a poeta Marina Naves, que está em vias de lançar seu primeiro livro de poemas, Voyager (editora Escaleras). Marina (21), é poeta, tradutora e pesquisadora. Seu caminho na poesia começou ainda na infância, quando passou a se interessar pelos poemas do seu avô, João Naves de Melo. Cecília Meireles também foi de grande importância para o seu despertar literário. Na adolescência, com a leitura de poetas ultrarromânticos, Marina começou a criar gosto pela rima e pela métrica. Já na Universidade Federal de Minas Gerais, onde se formou bacharela em Estudos Literários, a autora conheceu suas duas grandes inspirações: o irlandês W. B. Yeats e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Atualmente, Marina estuda e desenvolve pesquisa nas áreas de Literatura Portuguesa, Intertextualidade e Recepção dos Clássicos.

Isadora – Marina, obrigada por conversar com a gente hoje! Vamos começar com a criação: como é seu processo criativo? E como nasceu o Voyager?

Marina – O prazer em ter essa conversa é todo meu, Isadora! Sobre o meu processo criativo, gosto de dizer que tenho apreço em construir versos e estrofes a partir de imagens que me aparecem (às vezes claras, às vezes mais obscuras). A intertextualidade com outros autores também me ajuda bastante a me destravar de qualquer bloqueio criativo em que eu possa me encontrar em algum momento! Assim, posso partir para a segunda pergunta: Voyager nasceu do propósito de fazer uma espécie de “diário de viagens” que narrasse as jornadas que já fiz para diversos lugares. Mas, claro, tal conceito foi mudando e tornando-se mais abstrato, dando espaço para viagens mais estáticas e conceituais – que não nos tiram do lugar físico em que nos encontramos, mas que nos levam a pensar e conhecer novos horizontes.

Isadora – Muitos dos seus poemas trazem referências da cultura clássica, por meio de menções a personagens e mitos, por exemplo. Como você enxerga a sua relação com essa tradição e de que maneira seus poemas dialogam com ela?

Marina – Minha relação com os mitos clássicos é bem forte por diversos motivos. O primeiro deles, talvez, seja puro gosto. Tenho imensa curiosidade e afeição pela cultura greco-romana, o que até me levou a pesquisá-la com mais afinco enquanto estudante de Letras. Um segundo motivo para construir diálogos com a tradição em meus poemas, seria o fato de que eu acredito fortemente que os clássicos são inesgotáveis em tema e em forma. Podemos aproveitá-los para tratar de quase qualquer assunto. Os mitos gregos, por exemplo, até hoje podem ser abordados com temáticas reavivadas. Assim, eu diria que o arcabouço criativo que a tradição nos dispõe é algo tão valioso que não pode ser ignorado.

Isadora – Outro ponto que me chamou muita atenção na leitura de Voyager foi a presença marcante de alguns lugares que inspiram vários dos poemas do livro, como Montes Claros, Curitiba e Dublin, por exemplo. Como foi a escolha desses locais? O que são esses lugares para você?

Marina – Esses lugares foram escolhidos e receberam tanto destaque por causa de uma grande memória afetiva que tenho por eles: por exemplo, morei anos em Montes Claros, sonhei desde a infância em visitar a Irlanda… as imagens, ou lembranças, que eu tinha deles eram fortes e vívidas, então pensei em começar a escrita bruta do livro por esses lugares.

Isadora – E quanto à ordem dos poemas? Como foi essa curadoria?

Marina – A ordem dos poemas foi pensada para seguir uma trilha. A intenção é dar ao leitor a sensação de que está fazendo uma viagem dentro do próprio livro, seguindo pelo mundo greco-romano, depois por um ambiente de verão, depois pelo rio São Francisco e por aí vai. Tive também a ideia de fazer com que o livro terminasse num tom cíclico, como se a viagem pela vida não acabasse senão na morte.

Isadora – Obrigada, Marina! Gostaria de acrescentar alguma mensagem para os leitores de Voyager?

Marina – Eu que agradeço, Isadora! Acho que gostaria de falar mais algumas coisinhas sobre Voyager. Este pequeno livro de poemas trata de várias questões ligadas ao mundo das viagens (sejam estas introspectivas – ocorrendo no âmago de quem narra –, metalinguísticas – passando pela própria linguagem – ou concretas – ou seja, que ocorreram de fato). Os poemas selecionados para compor esta obra são reflexo de lembranças de viagens passadas, desejos de viagens vindouras e elucubrações que são, antes de tudo, viagens dentro da própria alma e da própria mente. Os poemas mais empíricos não deixam de trazer temas mais amplos, mesmo que tratando de eventos vividos por mim: tudo é construído tendo como base sensações e impressões.


Com vocês, três poemas de Voyager, por Marina Naves.

Dublin, 2014

“Dublin made me and no little town
with the country closing in on its streets”
(Donagh MacDonagh)

Por muitos anos sonhei conhecer-te,
ver em tuas vias fadas voarem…
sentir teu ar encantado e ancestral
invadir-me os poros, narinas virgens.

Mas tudo foi diferente. Contigo
aprendi algo do futuro também.
Nas tuas estradas de alvos casebres
caminhavam juntos cabras e carros.

Leprechauns escondidos em Dame Street
ouvem Brigid em igrejas cristãs;
eu também ouço, e ouço mais: Oisin

tocando sua harpa em Saint Stephen’s Green.
Há tradições nestas ruas — ocultas —
que não perecem com o andar dos anos.

Lua

Alvo corpo de Ártemis destemida,
minhas mãos buscam tua branca pedra.
Que minhas cinzas sejam em ti, vida —
expostas como as mentiras de Fedra.

Com um vestido pesado e robusto
(que me seja leve como o universo
— tão macio como o materno busto)
Quero visitar-te em sonhos imerso.

Em uma feliz cadeira de praia
quero descansar sobre tua carne,
observando a doce dança de Gaia.

Que teu irmão, Febo Apolo, não me encare;
que sua flecha-luz em mim não caia,
pois só no escuro brilha tua face.

Via-Láctea

“Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”
(Olavo Bilac)

O som das letrinhas dessa palavra
me lembra o amor: é leite na tigela
com cereal — e o cereal tem a cor
dos cabelinhos amarelos dela.

Ou pelo menos era isso que eu achava
quando tinha uns sete anos. Hoje apenas
me intrigam as estrelas; tão pesadas
mas tão macias — leves como penas.

Pensando bem, igualmente intrigantes
são as flores. Tão cedo nascem e
logo morrem. O que é melhor então

prometer a galáxia fria e eterna
ou as rubras rosas quentes e perenes?
Eu não sei. Acho que viajo muito.
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Leia ainda: posts de Marina Naves no Duras Letras!

6 romances essenciais da Literatura Brasileira

Aposto que, quando abriu este post, você já foi logo se adiantando:

– Devem ter colocado Dom Casmurro, Grande Sertão: veredas, Vidas Secas, Fogo morto, Um copo de cólera, Dois irmãos ou, sei lá, Iracema.

É claro que essas obras, graças ao fantástico domínio da linguagem, pela extrema importância e diálogo com nossa história e também por conta das narrativas apaixonantes que nos apresentam, frequentemente recebem lugar de destaque em qualquer lista de clássicos da literatura nacional e, de vez em quando, até internacional.

Contudo, se você veio apenas para confirmar suas suspeitas, procurando essa boa e velha lista de livros canônicos, não vai encontrá-la por aqui!

Na verdade, os livros que compõem a listagem que montamos a seguir também estão entre as GRANDES obras da literatura brasileira, tão brilhantes quanto as que foram supracitadas. Só que, diferente daquelas, essas outras guardam dois traços que as diferenciam: o primeiro é que não aparecerem com frequência em catálogos de indicação literária; em segundo lugar, são todas obras escritas por ESCRITORAS, características que tornam essa lista duas vezes mais instigante.

Vamos conferir?!

1) Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Começamos por Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, obra que conta a história de uma jovem que dá nome ao livro e que deseja viver livremente uma aventura de amor com Tancredo. Mas, ligados à uma sociedade marcada pelo atraso da escravidão e do patriarco, eles são impedidos de realizar essa união.

Pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.

Colocada à margem da literatura nacional de seu tempo por ser mulher e por ser negra, Maria Firmina dos Reis demonstra um grande interesse pelas questões ligadas à sociedade colonial brasileira, utilizando-se da forma literária para desconstruir os paradigmas de sua época, sustentada por uma estrutura falida, de uma realidade em constante, mas lenta, transformação.

É impressionante saber também como os problemas confrontados pela autora não se restringem apenas ao ambiente em que se passam suas história: alguns estudos demonstram que, por não estar alinhada com a temática nacionalista dos romantistas contemporâneos à ela, Maria Firmina foi constantemente silenciada, ficando a cargo de estudos mais recentes recolocá-la em sua merecida cadeira dentro do cânone nacional.

2) Parque Industrial, de Patrícia Galvão (Pagu)

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O segundo romance foi publicado por intermédio de Oswald de Andrade e sob o pseudônimo de Maria Lobo: Parque Industrial, de Pagu, tido como um dos primeiros romances proletários do Brasil. Nele, a autora reflete a condição dos operários da nova sociedade industrial paulista, das décadas de 1920 e 1930, colocando no centro do debate temas ligados ao amor, ao sexo e ao capital, e como os desejos das personagens são afetados pela realidade industrial precária.

Diferente da tradição corrente de sua época, que debatia principalmente os regionalismos brasileiros (com a aparição das principais obras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e outros), Pagu preservou bastante da veia modernista paulista e manteve a capital financeira do Brasil no centro da discussão literária e social nacional.

É uma leitura bem fluida que reafirma a importância do debate sobre classes sociais no Brasil, isso sem deixar de lado o estilo autêntico e forte da escritora paulista.

3) Água funda, de Ruth Guimarães

A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada.

Agora, vamos para o primeiro romance de Ruth Guimarães, publicado no mesmo ano de Sagarana, de Guimarães Rosa, 1949. Diferente da obra do autor mineiro, Água funda não traz um léxico inventado a partir da plasticidade do falar interiorano; na verdade, Ruth faz uma reconstrução etnográfica minuciosa da língua portuguesa falada na região em que se passa a história: no sul de Minas Gerais, na fazenda Olhos D’água.

Em uma narrativa que embaralha o tempo e as personagens, indo do período escravocrata até os anos 1930, o leitor percorre a história de Mãe de Ouro, Sinhá, Joca e outros personagens, todos eles marcados por discursos marginalizados pela História, como narrativas tradicionais, ditados e superstições populares.

4) Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles

Esta obra de Lygia Fagundes Telles é um pouco mais conhecida que suas antecessoras. Teve duas adaptações para a televisão, feitas pela Rede Globo, a primeira de 1981 e a segunda de 2018. É um dos livros mais emblemáticos e conhecidos de Lygia Fagundes Telles, no qual a autora explora temas sensíveis, em uma sociedade patriarcal e preconceituosa em vários sentidos.

No livro, o leitor acompanha duas facetas de Virgínia: a primeira, a de uma criança de infância difícil, de pais separados, e que não consegue se encaixar no grupo dos seus amigos Letícia, Afonso, Conrado, Otávia e Bruna, que, como os anões no jardim da casa de Natércio, não deixam espaço para que ela entre na roda, na ciranda. A segunda face é de uma Virgínia adulta e amadurecida, que, após passar por um colégio de freiras, retorna para a casa de Natércio e começa a descobrir que todo aquele mundo completo que não deixava espaço para ela tem lá seus graves problemas e contradições.

5) Quarto de Despejo, de Maria Carolina de Jesus

Quarto de Despejo é o típico livro que dispensa apresentações, pois possui uma circulação e influência no universo literário brasileiro que o coloca ao lado de clássicos como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. O livro de Maria Carolina de Jesus é um reprodução de seus diários, em que são narrados eventos de uma odisseia cotidiana das comunidades pobres de São Paulo, de maneira crua e precisa.

O relato, habitado pela relação entre o ficcional e o concreto, nos apresenta as angústias de uma vida marcada pela dor, pela fome e pelas transformações agressivas feitas nas favelas naquele momento. Além disso, o estilo diarístico e confessional de Carolina de Jesus fez o livro flutuar entre as mais diversas categorias literárias: indo da literatura de testemunho até a literatura das vozes subalternizadas.

6) Rakushisha, de Adriana Lisboa

Para terminar, elenco aqui um romance contemporâneo, escrito por Adriana Lisboa – autora que vem ganhando cada vez mais destaque na cena literária nacional e que se nos apresenta como uma leitora atenta das tradições literárias nacionais e internacionais – uma forte candidata ao cânone brasileiro.

Em Rakushisha, observamos o desenrolar da história de Haruki, desenhista carioca e descendente de japoneses, que, ao ser convidado por sua ex-parceira para ilustrar um livro de poemas do haicaista Matsuo Bashô, se vê obrigado a visitar o país pelo qual nunca se interessou, mas a que sempre esteve ligado: o Japão. Mas, talvez receoso em seguir sozinho nessa viagem, ele convidou subitamente a estranha Celina para acompanhá-lo, depois de se encontrarem pela primeira vez em um metrô qualquer, de um dia como qualquer outro.

A autora a partir disso nos conduz através da jornada dos dois personagens em terra estrangeira, recheando a narrativa com uma linguagem de lirismo agudo e preciso, na qual as vozes se embaralham e variam entre os protagonistas, que contracenam inclusive com o próprio poeta japonês Bashô.

Nesta noite
ninguém pode
deitar-se: lua cheia.

A presença desse livro nessa lista é também uma provocação, sendo ele um livro do novo milênio, ainda não entendido pela crítica como clássico da literatura brasileira. De toda forma, sua narrativa e linguagem tocam questões que sempre estiveram presentes em nosso universo literário, como a identidade nacional e o que a constitui; além disso, ele nos ajuda a entender questões de nosso próprio tempo – a solidão, a perda, a depressão –, sem deixar de lado uma qualidade própria aos clássicos da literatura.

Miso no oto

Com isso, terminamos nossa pequena lista, sabendo, é claro, que muitas autoras maravilhosas, também canônicas, ficaram de fora. Poderíamos acrescentar, por exemplo, Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Hilda Hilst, Maria Valéria Rezende, Ana Maria Gonçalves… nomes que não apareceram, mas que facilmente poderiam ser colocadas. Quem você acha que faltou?

Perdoadas as faltas, esperamos que a intenção principal deste post tenha se cumprido: conseguimos cutucar um pouco essa tradição tão difundida, de colocar apenas os escritores, e frequentemente os mesmos, nas listas de grandes romances da literatura brasileira?

Resenha – Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk

Na premiação de 2018, o comitê do Prêmio Nobel de Literatura decidiu entregar a distinção à polonesa Olga Tokarczuk (e a Peter Handke), autora de uma vasta obra literária na qual se encontra o romance Sobre os ossos dos mortos, que chegou ao Brasil em 2019 pela editora Todavia, traduzido por Olga Baginska-Shinzato. Hoje, vamos falar um pouquinho sobre esse encanto de livro!

O romance, com cerca de 250 páginas, é narrado pela protagonista Janina Dusheiko, uma engenheira e professora aposentada que se dedica a ajudar os animais e protegê-los contra os caçadores do seu pequeno vilarejo, na fronteira entre a Polônia e a República Tcheca, enquanto realiza suas investigações sobre os mistérios da astrologia e ajuda seu amigo Dísio a traduzir os versos de Blake.

No momento em que a história começa, somente Janina e outros dois moradores, Esquisito e Pé Grande, estão no Lufcug, o vilarejo, pois a maioria de seus habitantes vai para a cidade quando chega o inverno, deixando a região praticamente deserta — com apenas três das sete casas que compõem a paisagem habitadas. E logo no primeiro capítulo, Esquisito bate à porte de Janina, em plena madrugada, para ajudar a arrumar o corpo de Pé Grande, que acabava de morrer.

Pé Grande, caçador inveterado, morrera num suposto acidente, engasgado com um osso que perfurara sua garganta, após haver matado e esquartejado uma corça que viera para a região há pouco tempo. Após ter trocado sua roupa e o deixado mais apresentável, Janina procura a data de nascimento de Pé Grande para observar a posição dos astros em relação à sua data de morte. Ela está segura de que, assim como haveria algumas relações entre o mapa astral de uma pessoa e os eventos de sua vida, a data e a causa da morte também poderiam ser encontrados nos planetas. Sua sensibilidade, exibida em doses homeopáticas ao longo de toda a narrativa, inclui uma perspectiva melancólica sobre o universo, a vida e a solidão. Em uma dessas passagens, ela pensa:

Fico comovida ao ver imagens de satélite e da curvatura da Terra. É verdade, então, que vivemos na superfície de um globo, expostos ao olhar dos planetas, abandonados num enorme vazio, onde, após a queda, a luz se aglutinou em pequenos fragmentos e arrebentou? É verdade. Deveríamos ser recordados disso todos os dias, porque nos esquecemos.

Quando a polícia finalmente chega, na manhã seguinte, começam as investigações sobre a morte de Pé Grande, que, ao contrário do que Janina e Esquisito haviam pensado, talvez não se tratasse de um acidente — e, sim, de um assassinato. Mas quem poderia tê-lo cometido?

Janina concebe uma teoria, na qual ninguém acredita, de que os animais resolveram se vingar de todos os anos de maus tratos, armadilhas, púlpitos de caça e crueldades dos seres humanos. Talvez agora eles estivessem, enfim, reagindo à nossa desumanidade. Janina, que é vegetariana e protetora dos animais, expressa seus pensamentos a respeito dessa relação, entre seres humanos e outros animais, em diversos momentos, urgindo a todos — vizinhos, caçadores, policiais — que deixem os animais em paz:

— Os animais mostram a verdade sobre um país — eu disse. — A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa.

Outras mortes de seres humanos cruéis com animais voltam a acontecer, aumentando o clima de suspense que assombra a história. E outros assassinatos de animais continuam a ocorrer, sem que ninguém, além de Janina, lhes dê a devida importância. Seus apelos, constantemente ignorados, fazem com que as pessoas ao redor acreditem que ela se importa mais com os animais que com os seres humanos (alô, especistas! deixem disso!), o que a coloca na condição de suspeita. Quem mais teria tantos motivos para querer essas pessoas fora do seu caminho?

Novos personagens vão se juntando à narrativa: o entomólogo, “Boros”, a moça do brechó, “Boas Novas”, o velho dono do Poodle que frequenta o brechó, e os outros vizinhos que de vez em quando aparecem na narrativa. Há também alguns momentos em que a narradora tem sonhos (visões?) com a mãe e a avó já falecidas, mas sem grande impacto no curso da história. Assim, a lista de personagens suspeitos aumenta, criando novas conexões ligadas também ao cenário dos assassinatos e ao clima de mistério.

Uma coisa interessante na escolha desses nomes — que, como devem ter notado, são apelidos — é pensar na estratégia usada muito sagazmente pela autora, para facilitar talvez a vida de seu público internacional, que teria dificuldades de guardar os nomes em polonês como o de Esquisito: Świerszczyński.

Principais impressões

Num tom de thriller e relato existencial, o romance nos deixa com a pulga atrás da orelha, em meio a visões de mundo que talvez, para muitos, sejam a porta de entrada para o debate entre o bem estar animal, a ética e a nossa própria humanidade, que vem sendo anestesiada pela nossa apatia e falta de compaixão, como profere a narradora em um de seus discursos:

O ato de se matar se tornou impune. E por ser impune, ninguém o percebe mais. E já que ninguém percebe, não existe. Quando passam pelas vitrines dos açougues onde grandes pedaços vermelhos de corpos esquartejados estão pendurados em exposição, acham que aquilo é o quê? Não refletem sobre isso, não é? Ou quando pedem um espetinho ou um bife, o que recebem, então? Nada disso assusta mais. O assassinato passou a ser considerado algo normal, virou uma atividade banal. Todos o cometem. Assim seria o mundo se os campos de concentração se tornassem algo normal. Ninguém veria nada de errado neles.

Além de ser muito envolvente, como se espera de um suspense escrito por uma vencedora do Prêmio Nobel, o livro abre oportunidades para que o leitor reflita sobre seus hábitos, sobre a ideologia carnista e nossa condição durante esse breve trajeto que é a vida. Além disso, as epígrafes e referências aos Provérbios do Inferno (de onde vem o título do livro!), Augúrios da Inocência e O Viajante Mental, que estão no corpo do romance direta ou indiretamente, abrem o diálogo intertexual com a obra de William Blake, cujos versos fazem parte do seu repertório cultural e ideológico. Um dos versos que mais me chama a atenção, presente na epígrafe do capítulo 7, parece estabelecer a comunicação em linha direta com a aposta do romance, se fosse possível resumi-lo em uma frase: um cavalo maltratado no caminho clama ao céu pedindo sangue humano.

Os únicos pontos negativos que, para mim, cabe apontar, são: (a) a construção da imagem da mulher vegetariana e amante dos animais como mística e esotérica, que pode fazer com que se tenha a impressão de que o tratamento ético dos animais é uma questão de crença, como a astrologia e as religiões, e não um ponto de vista muito racional e repleto de argumentos sólidos a seu favor, e (b) a escolha da personagem pelo vegetarianismo e não pelo veganismo, fazendo diversas menções a leite, ovos e queijos de seu consumo, o que é inconsistente com a visão de mundo de defesa dos direitos e liberdades dos animais. De qualquer forma, me parece que o livro pode ser muito útil nessa luta, que precisa — fora do mundo literário — urgentemente ser vencida.

Nota

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