Fim de partida: de Beckett à pandemia

Membros de uma família que não se suportam, convivendo 24 horas por dia. Recursos acabando na dispensa. Cenário apocalíptico no mundo exterior. Todos presos em casa, esperando acabar.

Assim se passa a peça “Fim de partida”, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, que a escreveu em 1957. Mas aposto que você pensou que eu estava falando da quarentena durante esse período em que enfrentamos o coronavírus. É nesses termos que a atualidade e a força da peça em questão nos espanta, especialmente quando nos deparamos com cenários como esse em que nos encontramos agora: medo, aprisionamento, fim do mundo. (E sabemos que ainda vem a nuvem de gafanhotos por aí.)

Em “Fim de Partida”, que muito bem poderia se passar no interior de uma casa qualquer dos nossos dias, quatro pessoas têm de se haver com uma situação extrema de confinamento. São eles Hamm, um homem perverso, cego e paralítico, cuja vida gira em torno de atormentar Clov, seu filho adotivo e renegado que não consegue se decidir se parte ou não daquela casa; além deles, temos Nagg e Nell, os idosos pais de Hamm, cujas pernas foram mutiladas em um acidente de anos antes e agora, além de amputados, estão quase cegos, quase surdos e vivem em latas de lixo, sobrevivendo à base de papa e biscoitos. Todos eles esperam, desesperadamente, que acabe logo, como Clov nos diz na sua primeira fala da peça:

“Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando.”

Assim como nós, que ficamos no aguardo de novas notícias sobre a pandemia, a quarentena, o lockdown, a invenção de vacinas, a pesquisa de medicações (eficazes!), e a segurança para poder retornar às nossas vidas fora das quatro paredes, as personagens de “Fim de partida” precisam se resguardar em seu confinamento indefinido para sobreviver.

Foto por Edwin Reichert. À esquerda, Ernst Schroeder (Hamm); no meio, de pé, Samuel Beckett; à direita Horst Bollmann (Clov). Primeira performance em 26 de setembro de 1967: SAMUEL BECKETT’S “FIN DE PARTIE”. Teatro Schiller, em Berlim.

Enquanto isso, na casa, a dinâmica familiar inclui os hábitos de contar histórias, alfinetar, rebaixar os outros e fazer exigências implausíveis. Isso da parte de Hamm, que é o centro desse pequeno núcleo. Por sua vez, Clov, Nagg e Nell ficam à mercê de suas exigências e chantagens, que não seguem a lógica do mundo comum.

Germaine de France (Nell) e Georges Adet (Nagg). Studio des Champs Elysées, 1957.

Como é de praxe nas peças de Beckett, os personagens em questão constituem duplos que ora se repetem, ora se confrontam, sendo Hamm e Clov o par principal, Nell e Nagg o par periférico. Para passar o tempo, eles se aporrinham e tiram pequenas revanches de suas implicâncias pessoais. Um pouco como nós mesmos muitas vezes nos pegamos fazendo com as pessoas de nossas convivências. Em parte, isso se deve, como podemos reconhecer, à dificuldade de lidar com a passagem do tempo quando o próprio tempo regulamentar deixa de ser importante. Coisa que, logo no começo da peça, sabemos que é o caso:

HAMM – Que horas são?
CLOV – A mesma de sempre.

Aliada a essa cena primordial no interior da casa, há ainda a apreensão quanto ao que ainda existe lá fora. Assim como hoje, no Brasil de 2020, em que contamos 55.961 mortes por coronavírus. E 100 dias de quarentena (desta que vos escreve). Na peça, isso é regido pela norma do “não existe mais”, que, ao longo dos diálogos, se repete infinitamente nas formas de “Não existe mais”… “natureza”, “não existem mais”… “biscoitos”, “bicicletas”, “calmantes”, “velhos como antigamente”, “papa”, “caramelos”, “cobertores”, nem mesmo “caixões”.

À medida que o tempo teatral vai passando, percebemos o grande estado de calamidade e melancolia em que tais seres se encontram. Ainda que busquem de diversas formas contornar o absurdo dos tempos em que vivem. De certo modo – derrisório, sarcástico, ácido e doloroso -, eles procuram encontrar um mínimo de presença na situação que vivenciam. A fala de Nell, ao relembrar junto ao marido seus infortúnios, é contundente na sua percepção terrível da vida:

“Nada é mais engraçado que a infelicidade.”

Na tentativa de sobreviver às suas limitações, as próprias e as impostas pelo mundo, as personagens fazem esforços para conseguir pequenas alegrias, passeando dentro da própria casa ou indo até debaixo das janelas apenas para tomar um pouco de sol. Nesses dias, essas talvez sejam as frestas de felicidade que ainda estão à nossa disposição.

Procurando uma boa pedida para a sessão cinema de hoje? Com vocês, Fim de partida.

* Todas as citações da peça foram traduzidas por Fábio de Souza Andrade, que assina a edição da Cosac Naify, de 2010.

Arquivos da Patrulha: uma rapsódia multidimensional de Rafael Zorzal

Gosta de alienígenas, zumbis, guerras, demônios, viagem no tempo, universos paralelos… enfim, tudo que envolve literatura de horror e sci-fi? Então Arquivos da Patrulha é perfeito para você!

Breve apresentação

Com texto e edição de áudio feitos por Rafael Zorzal, os fragmentos e episódios de Arquivos da Patrulha são lançados em formato podcast, disponível em diversas plataformas de áudio. Essas cenas são narradas por Superintendente (com a voz de Felipe Xavier) e outros personagens, e vão de dramáticas à cômicas, feitas com muita qualidade e toda aquela parafernália científica e fantasmagórica que nós adoramos: criaturas desconhecidas, armas a laser, naves espaciais, viagens em tempo relativo… enfim, já deu pra sacar, não é?!

Arte criada por Henrique Garzon

Plot

A Patrulha é um órgão ou instituição de estudos paranormais criada com o suposto objetivo de conter e entender atividades que saem do controle e da compreensão humana. Com tecnologias de capacidades inimagináveis (como chaves que abrem portas para qualquer lugar que se queira ir), os patrulheiros agem por debaixo dos panos da nossa “realidade real” de apenas três dimensões, fazendo o possível para preservá-la (será mesmo?).

A série começa com a reprodução das gravações feitas pelo Superintendente da Patrulha sobre algumas das muitas missões enfrentadas sob a regência dele. A partir disso, toda a primeira temporada mescla ambientação e uma ponta de narrativa, que começa a se desenvolver melhor com a aparição de Trax (na voz de Andrezza Schilling), junto da conexão entre algumas informações dispersas nos vários episódios.

Todos eles são produzidos no formato de “diários de bordo”, gravados seja por um patrulheiro que enfrenta uma missão, ou um por registro no HD de um robô. Esse traço de gravação ajuda a construir a atmosfera e o cenário no qual a história vai se desenvolvendo, além de não deixar que fique monótona a narração, recheada de efeitos sonoros divertidíssimos e complementares.

Universo em expansão

A narrativa fragmentada e as múltiplas viradas de personagem e dimensão criam muitas portas de entrada para interpretações diferentes. Pode parecer fácil para o Superintendente ou para Isaac dizer que “sabem como funciona o tempo relativo”, mas nós, que os observamos e ouvimos de fora, não conseguimos conectar todos os pontos e fechar as lacunas que o vai e vem da história cria. Ficamos na expectativa de que o próximo episódio nos responda, cada vez mais ansioso por um pouco mais de informação.

Ainda temos muitos mistérios quanto às Esferas, Trax e outros patrulheiros ou mesmo o tão temido e esperado Krow!

Arquivos da Patrulha está em desenvolvimento e tem seus capítulos publicados semanalmente. Eles estão disponíveis para download e acesso em diversas plataformas, confira no link abaixo:

Disponível também no Spotify.

https://open.spotify.com/episode/1juIRkAjHykif0ffBvYtnh

Não deixe de conferir!

Créditos

Equipe de produção de arquivos da Patrulha

Dramaturgia e edição:
Rafael Zorzal

Com as vozes de:
Andrezza Schilling
Cinara Salvi
Euller Gasparoni
Felipe Xavier
Flávia Ward
Henrique Garzon
Ivan A.
Marcelo Guaxinim
Rafael Zorzal
Ricardo Nespoli
Tâmara Lopes
Verônica Mendes

Arte de capa:
Henrique Garzon

Unicórnio (Unicorn), poema de Angela Carter

*Este poema foi traduzido em abril de 2019. Caso queiram compartilhá-lo, gentileza dar os créditos de autoria e de tradução.

UNICORN, by Angela Carter

Dos manuscritos de Angela Carter.
Disponível no acervo digital da Biblioteca Britânica.

Quer saber mais sobre poesia?

Quatro poemas de Sebastião Uchoa Leite

ELOGIO DA PROSA

A prosa é uma bala. Cabala
controversa, cabala inversa.
A prosa é uma razão rasa,
sem melopeia ou centopeia.

A prosa é rara e clara, e fica,
transpondo o que a clarifica.
A prosa é uma rota ativa:
linha reta e não rotativa.

A prosa não é rosa nem glosa,
e, sem ser hasta, não é casta.
Dura, perdura, e sem ser pura,
A prosa é uma coisa ciosa.

A prosa não condiz, mas diz,
sem dicções nem condições.
Não tem emblemas, nem problemas:
A prosa é uma causa cabal.

ENCORE

por trás dos vidros como o peixe de miss moore
que me importa
a paisagem e a glória ou a linha do horizonte?
o que vejo são objetos não identificados
metáforas em língua d’oc
em que li – não sei onde –
que o mundo é uma metáfora
o ventre do universo está cheio de metáforas
que poetas escreverão sobre o kohoutec?
toneladas de versos
ainda serão despejados
no wc da (vaga) literatura
ploft!
é preciso apertar o botão da descarga
que tal essas metáforas?
“sua poesia é um fenômeno existencial”
olha aqui
o fenômeno existencial

A VERDADEIRA DIALÉTICA

aí os caçadores chegaram
mataram o lobo e abriram a barriga
e encontraram a vovozinha
toda mastigadinha
quanto a chapeuzinho vermelho
eles comeram

ENROSCADOS NO SERPENS

Eis-me: o eu-em-si
monstro
enroscado em silepses
ensimesmudo
no sono eulemental
entre as vias venenosas
de pesadelos cogumelos
apocalípticos euclípticos.
Eis-me: todos-os-eus
euscatológico
eucríptico
eu-fim.

Sebastião Uchoa Leite

Sebastião Uchoa Leite (1935-2003) nasceu em Timbaúba, em Pernambuco. Estudou direito e filosofia na Universidade Federal de Pernambuco. Foi membro de uma pequena editora chamada O Gráfico Amador, por onde publicou seu livro de estreia, Dez sonetos sem matéria (1960). Além desta obra, também escreveu outros livros de poesia, como Antilogia (1979), Isso não é aquilo (1982), Obra em obras (1989), A uma incógnita (1991), A ficção da vida (1993), A espreita (2000) e A regra secreta (2002). Uchoa Leite teve sua obra integralmente publicada pela editora CosacNaify no ano de 2015, em parceria com a Cepe Editora. Intitulado Poesia completa, o livro conta com uma apresentação de Frederico Barbosa, que explica a trajetória estética do autor pernambucano. 

Três leituras da quarentena: Vila-Matas, Mary Shelley e Garcia Márquez

Tenho visto por aí vários blogs, sites e perfis divulgando listas de leitura para a quarentena: são enormes listas de livros que pensam essa condição de aprisionamento entre quatro paredes. Nelas, aparecem nomes como Kafka, Tolstoi, Atwood, Orwell, Huxlei etc. Também, vi algumas listas de obras que nos levam em viagens divertidas, para esquecer ou nos aliviar desses problemas vividos agora: em lugares que nos encontramos com Aquiles e Diomedes, ou sentamos à mesa de um Hobbit e alguns anões.

Pensei em montar minha lista de indicações também, mas, já que têm tantas por aí, e tão diversas, preferi fazer uma coisa diferente (mas vou deixar uma listinha no final). Por isso, escolhi três livros que andei lendo nesses dias reclusos, que me passaram mensagens distintas sobre os tempos em que vivemos.

Dublinesca, de Enrique Vila-Matas

VILA-MATAS, Enrique. Dublinesca. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Dublinesca é monótono, lento e maravilhoso! Uma obra que acompanha a decadente trajetória do ex-editor Samuel Ribas, um homem de sessenta anos, que se sente fracassado por não ter encontrado para publicar – durante todos os anos de editoração – “o escritor”, o gênio literário. É um livro que tem como pilares os irlandeses James Joyce e Samuel Beckett; recheado também de referências à cultura pop e ao cenário literário contemporâneo internacional, mesclando personagens que existem com outros inventados por Vila-Matas.

O que mais me interessa nesse livro, com relação à quarentena, é a amargura de Ribas em sua condição de hikikomori, um termo japonês que se refere ao comportamento de extremo isolamento doméstico.

E nós não estamos assim durante esses tantos dias em casa?

Existem dias em que não se faz nada; o almoço não sai (ou sai tarde); o catálogo da Netflix é um saco; meu livro novo ainda não chegou; não sei o que fazer; já estou de saco cheio disso tudo… e o que antes era divertido e ajudava a passar o tempo esfriou, ficou cru, e nem podemos, como Ribas, fazer uma viagem para Dublin, virar a vida de cabeça para baixo: estamos presos, somos hikikomoris involuntariamente, acompanhando notícias terríveis sobre o número de mortos e contaminados pelo Covid-19, paralelas às declarações desbocadas e infantis e idiotas do presidente da república em exercício: Bolsonaro. Não vejo como separar toda a situação trágica de pandemia da crise política que o Brasil está enfrentando.

Frankenstein, de Mary Shelley

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Tradução de Márcia Xavier de Brito. Rio de Janeiro: Darkside, 2017.

Frankenstein é um livro que dispensa apresentações longas. O romance de Mary Shelley, escrito em 1823, conta em forma de cartas a história de Viktor Frankenstein, um jovem estudante de Filosofia Natural, que, com seu apetite ilimitado de conhecimento e transformação, dá vida a sua própria ruína.

A mudança era uma ânsia que atravessava o coração dos brasileiros desde 2013, cansados de escândalos de corrupção e desesperançados com o cenário político. Por isso, assim como Viktor Frankenstein, o desejo os cegou e conduziu à criação da Criatura, que hoje está sentada na cadeira máxima do Executivo. Em 2018, velados pela paixão descontrolada de mudança a qualquer custo, 57.797.847 brasileiros elegeram a própria ruína nacional, que está aí, como a criatura, em nossa interminável noite de núpcias com o país.

Seguimos confinados, acompanhando de perto (mas longe), ansiosos pelo próximo passo da criatura, pela próxima vítima de um sistema racista, canalha e corrupto desse monstro que ateia fogo em si mesmo e em todos nós, que votaram ou não votamos nele. Mas existe uma diferença abismal na situação da criatura e a de Bolsonaro: o ser que Viktor criou é um injustiçado, inteligente e persuasivo, ainda que se torne terrível durante a narrativa, afetado pelos próprios desejos. Enquanto isso, o 38º presidente do Brasil é desprezível, ignorante e mesquinho, e o era mesmo antes de ser eleito, só que, para a grande maioria, não parecia, ou eles preferiam que fosse mentira, apenas suposição e fofoca de uma mídia corrompida.

E isso me conduz ao próximo livro.

O veneno da madrugada, de Gabriel Garcia Márquez

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O veneno da madrugada. Rio de Janeiro: Editora Record, 1974.

Ainda estou lendo essa novela que não está entre os textos mais famosos do Gabo, e foi ela que me motivou a começar esse post e me colocou para pensar ainda mais na relação entre literatura e realidade.

O livro conta a história de um pequeno vilarejo na América do Sul e seus diversos personagens: Padre Ángel, o alcaide, Dr. Giraldo, Juiz Arcádio, Trindade, Rebeca Assis etc. que se veem confrontados quando subitamente começam a aparecer pequenos papeis que denunciam a injustiça, a infidelidade e a ganância, pregados nas portas dos casebres durante as madrugadas de chuva.

O ponto chave, que me tocou, e que também fala muito sobre nossa situação atual, tem a ver com a passagem dos problemas de esfera privada para a pública. Explico-me. Na história, todo mundo sabia que César Monteiro era traído, que sua esposa se deitava com o Pastor (cogita-se que até ele mesmo tenha sabido da infidelidade da esposa), mas é apenas quando o papel é colado em sua porta que ele passa a agir: antes, era um problema da porta de sua casa para dentro, mas, com o pasquim (como são chamados os papeis) o problema vem a público.

É como se o que antes era apenas um boato ou mera fofoca passasse a ser notícia/fato, e, aos poucos, as tensões entre as famílias e os políticos do vilarejo foram aumentando e aumentando e aumentado (ainda não cheguei ao fim do livro, então paro por aqui). Algo muito parecido acontece com a contínua tensão entre governo e mídia no Brasil, com escândalos diversos vindo à luz, associados à família Bolsonaro, que os nega e, assim como o alcaide da novela de Garcia Márquez, exige que “não se dê relevância ao que não tem”. Eu pergunto:

Não tem relevância para quem?

15 indicações

Por fim, como falei no começo, compartilho uma pequena lista de indicações literárias (e um teórico) com vocês. Mas antes, quero dizer que, para mim,

toda leitura está sendo uma leitura sobre a quarentena e sobre a situação política do país

que me ajuda a entender mais sobre estar isolado (seja pensando o que está distante, ou sobre as novidades dessa condição) e maneiras de contornar a enorme decepção com a política brasileira, que nos leva para o abismo.

Meu olhar está procurando nos livros soluções para esse cenário atípico que enfrentamos!

Por isso mesmo, leiamos!
Por isso mesmo, aqui está a lista de indicações:

  1. Outros, estranhos, de Isadora Urbano (kindle)
  2. A cor púrpura, Alice Walker
  3. A metamorfose, de Franz Kafka
  4. A câmara sangrenta, de Angela Carter
  5. Quarto de despejo, Maria Carolina de Jesus
  6. Esperando Godot, de Samuel Beckett
  7. O conto da aia, de Margaret Atwood
  8. As almas da gente negra, W. E. B. Du bois
  9. A morte de Ivan Illich, de Liev Tolstoi
  10. As alegrias da maternidade, Buchi Emecheta
  11. A redoma de vidro, de Sylvia Plath
  12. O castelo de vidro, Jeannette Walls
  13. As brumas de Avalon, de Maryon Zimmer Bradley
  14. Hibisco Roxo, Chimamanda Ngozi Adichie
  15. A queda dos heróis, de João Tomayno (kindle)

Entre Ramos e Rosa: os narradores do sertanejo em comparação

Guimarães Rosa (1908-1967) e Graciliano Ramos (1892-1953) são autores que dispensam longas apresentações. Cada um, em seu respectivo tempo, propôs um retrato cultural que se afastava dos lugares comuns da primeira metade do século XX, tematizando principalmente a vida sertaneja; entretanto, mesmo agindo de fora das convenções literárias, os dois tiveram contato e assimilaram traços da literatura moderna produzida no Brasil para desenvolver suas respectivas literaturas e alçarem lugar no cânone brasileiro.

Neste texto, vou tentar fugir das leituras que reduzem os autores a apenas suas supostas escolas literárias (neo-realismo, no caso de Graciliano Ramos; e, para alguns, pós-modernismo no caso de Guimarães Rosa). Por isso mesmo estou comparando rapidamente alguns elementos que colocam esses dois autores distintos em sintonia, sem deixar, contudo, de apontar também aqueles traços que os diferenciam. A pedra angular será o signo do Sertão, junto aos personagens que habitam essa região mitológica da literatura de Rosa e de Ramos, e que, por conta não só da experiência geográfica de cada um deles, é tão diferente e ao mesmo tempo tão próximo.

O povo e a terra

Pois bem, começo por uma das semelhanças mais claras: o uso do Sertão como lugar e cultura.

Rosa, assim como Graciliano, coloca os sertanejos e jagunços como peças centrais da maior parte de suas autorias, que costumam acontecer em cenários típicos do sertão. Como exemplo disso, podemos citar obras como Vidas Secas e São Bernardo, ambas de Graciliano Ramos, e Sagarana e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Mas não se engane por esse detalhe tão breve, porque, por mais que sejam autores do “sertão”, cada um deles dá características bem particulares para seus personagens e para esse cenário! Portanto, o que os aproxima, nesse uso, é que, ao fazerem esse movimento que busca centralizar os sertanejos, os dois autores abrem espaço para que as complexas narrativas dos marginalizados apareçam em primeiro plano, tornando os narradores em coletores dos discursos de indivíduos não citadinos, como Riobaldo e Fabiano e sua família.

De um lado está Graciliano Ramos, com uma linguagem crua, que se dedica a enfatizar as mazelas causadas pela seca, pela fome e pela miséria vividas no sertão nordestino, que lança o indivíduo à procura de soluções extremas, violentas e desesperadas, rumo ao sul. Já no outro lado, está Guimarães Rosa, evidenciando com neologismos e hiper-referências um sertão oceânico, vasto e enigmático, com uma teia enorme de culturas e pequenas narrativas encantadoras.

É importante destacar que esses tratamentos praticamente opostos não são excludentes: eles são simultâneos (colocados em paralelo já pelo uso da mesma palavra: “Sertão”) e estão diretamente ligados à intenção que cada autor dá para o texto e sua recepção no meio literário. Enquanto Ramos faz uma espécie de denúncia e retratação fria de uma realidade social perturbadora, Rosa alça a cultura sertaneja ao divino e ao canônico ocidental, criando versos opostos de uma mesma folha de papel, que funciona de forma complementar, ainda que contraditória.

A língua

Nesse ponto, a linguagem possui lugar de destaque, pois é a principal ferramenta de que dispõem os autores para compor esse cenário recheado de intensões particulares. Assim, Graciliano se ocupa com o uso da norma culta, preocupação talvez relacionada com a frieza mencionada anteriormente: a mensagem que se quer passar em seus textos não pode ser opaca. Desse modo, podemos interpretar esse uso de uma linguagem mais técnica e que respeita a gramaticalidade, como uma maneira de comunicar de forma clara, objetiva, episódios de repressão (Memórias do Cárcere e Angústia), a condição de diferentes sertanejos (Vidas Secas e São Bernardo) ou ainda uma infância nebulosa e distante (Infância), interpretação essa que se soma à leitura que o crítico brasileiro Antônio Cândido faz de Graciliano: uma ficção de tom confessional.

Rosa, pelo contrário, traz consigo uma grande liberdade de composição lexical, com a elaboração de muitos neologismos e a subversão da sintaxe tradicional, que, diferente de comunicar com clareza, aprofunda e expande os signos e as imagens descritas no texto, a exemplo do que acontece em Grande Sertão: Veredas e Primeiras estórias. Além disso, a aproximação intencional com a oralidade acrescenta a suas narrativas uma fluidez, propiciado por lembrar justamente a fala, traço que não é encontrado recorrentemente nas obras de Graciliano, ainda que, também este, faça uma simulação da fala dos sertanejos.

Essa proximidade com a tradição oral é uma das técnicas utilizadas por Rosa para transferir o protagonismo da voz do citadino (o “doutor da cidade”) para o jagunço (Riobaldo) que conta a narrativa para aquele. 

A mente por trás da escrivaninha

Apesar dessa transposição de voz, Rosa, diferente de Graciliano, deixa transparecer sua grande intelectualidade nos diversos textos que escreveu. No caso de Ramos, o escritor só aparecerá com mais clareza nas obras de cunho biográfico (Infância e Memórias do Cárcere) e naquela em que o trabalho de revisão foi menor do que ele gostaria (Angústia).

O autor de Grande Sertão expõe de forma mais aberta a sua proximidade com o cânone ocidental, recheando a narrativa de alusões aos textos fundadores, como a Odisseia e a Ilíada, de Homero, e ao Fausto, de Goete, o que devolve a narrativa um tom intelectualizado. Esse mesmo tom não se quer presente e não se deixa aparecer frequentemente em histórias como Vidas Secas, porque, como vimos, a história precisa ser o mais comunicativa e objetiva possível.

Mais que um Sertão alagado em linguagens distintas ao colocarmos Ramos e Rosa lado a lado, deparamo-nos com um Sertão – de linguagem – alargado, expandido em suas inúmeras diferenças.

Interrompo o texto por aqui, sabendo que poderia trazer ainda mais aproximações e distanciamentos desses dois autores; isso fugiria à proposta deste texto, que é analisá-los de forma concisa, mostrando apenas a ponta de um iceberg sem fim, que flutua no oceano de nossa imensa literatura brasileira.


Quer saber mais sobre Literatura Comparada?

A dramática normativa e a poesia em prosa de Baudelaire

XL – O espelho

Um homem horrendo entra e se observa no vidro.
“– Por que você se olha no espelho, se não se pode se ver nele senão com desprazer?”
O homem horrendo me responde: “– Senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos; portanto eu possuo o direito de me olhar; com prazer ou desprazer, isso só diz respeito à minha consciência.”
Em nome do bom senso, eu tinha sem dúvida razão; mas, do ponto de vista da lei, ele não estava errado.

(CHARLES BAUDELAIRE, Le spleen de Paris)

Não fosse o nome do autor denunciado em suas referência acima, talvez o leitor não desconfiasse que O espelho (traduzido por mim) se trata de um poema, incluído na antologia Le spleen de Paris (1869). Isso porque seu tom fabulesco, sua forma sem rima nem métrica, seu conteúdo pouco voltado às imagens clássicas da poesia tradicional – embora, na contramão, também fale da beleza –, ou sua formatação desprovida de estrofes e de versos saltados, não correspondem às expectativas que criamos acerca do que é e de como se faz um poema, mesmo para os mais experimentados. Pausa.

1
Primavera de 1624. Em Darlane, o general Oxenstjerna recruta tropas para a campanha da Polônia. A vivandeira Anna Fierling, conhecida pelo apelido de Mãe Coragem, fica sem um de seus filhos.

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

9
Já está durando dezessete anos a grande guerra religiosa. A Alemanha perdeu mais da metade dos seus habitantes. Violentas epidemias exterminaram os que sobrevivem à morte nas batalhas. Nas regiões outrora exuberantes campeia a fome. Lobos percorrem as cidades reduzidas a escombros. No outono de 1634, encontra-se Mãe Coragem na montanha alemã de Fichtel, longe da estrada por onde passa o exército sueco. Nesse ano, o inverno veio cedo e com rigor. Os negócios vão mal, o jeito é mendigar. (…)

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

Mãe Coragem e Seus Filhos (Mutter Courage und ihre Kinder), na célebre interpretação com Helene Weigel.

Entramos agora em outro campo: excertos da peça Mãe Coragem e Seus Filhos (1939), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Bastante distante em temáticas, estéticas ou proposições, e consideravelmente distantes no tempo, as obras de Brecht e de Baudelaire, como as trazidas aqui, possuem uma séria semelhança. Alguém se arrisca?

Assim como os poemas em prosa do poeta francês não se encaixam nos moldes da poesia tal como prescrito pelas “normas” dos gêneros, tampouco os trabalhos brechtianos podem ser entendidos por e simplesmente dramas.

Relembrando, os três grandes gêneros literários: a épica, a lírica e a dramática, (muito) reduzida e simplisticamente compreendidas como narração, poesia e teatro, respectivamente. Ora, e o que acontece nos casos dos autores trazidos? Para o alemão, o próprio nome do seu teatro o anuncia: o teatro épico. Para Baudelaire, a poesia é em prosa – uma poesia épica? Uma proesia? Brinco.

À parte seus distintos propósitos em uma e outra criações, tais autores se aproximam ao mesclar não os tipos textuais, mas os gêneros em si – que embora dificilmente obteriam alcançar uma pureza completa, se afastam ainda mais dessa medida quando pensamos exemplos como estes.

Por isso mesmo, se entendemos os gêneros como matrizes para a criação artística, é indispensável reconhecer a igual importância da sua subversão. O que Brecht cria nos trechos trazidos é inconcebível para a dramática normativa, que se fixa, de acordo com Peter Szondi, autor de Teoria do Drama Moderno, no pilar da ação inter-humana transcorrida no tempo presente, resumidamente. Tempo, contudo, é o que não se faz presente em Mãe Coragem e Seus Filhos, quando muitos anos se passam através dos saltos cronológicos entre um e outro episódios. Dialógica, tampouco é a forma encontrada em tais trechos, que denunciam a narrativa nas descrições e na ausência de enunciador, o que por sua vez impede o caráter inter-humano.

Ainda que sejam exemplos apenas dos princípios dos episódios (ou atos, ou capítulos) brechtianos, e que outras partes do texto se aproximem mais dos elementos que configuram o drama tradicional, tais recursos não são lançados ao azar, como se revela na auto-teorização feita em seu Pequeno órganon para o teatro. Pelo contrário, o teatro épico tem por objetivo alcançar o efeito de distanciamento que obrigue à reflexão, ao raciocínio crítico, e que por meio dessa estranheza seja capaz de despertar o espectador do sono da alienação.

O caso de Baudelaire talvez não seja tão engajado ou mesmo tão exemplar. Sua proposta, mais estética que propriamente política, influencia uma gama de escritores da sua sucessão, inclusive vocês-sabem-quem (abaixo). Ao abrir mão dos valores regentes da construção poética, o poeta subverte ainda mais o que por si só já é anárquico – a própria poesia. Cria, em consequência, a abertura para outros fazeres e pensares artísticos que não se pretendem regra de ouro.

Na realidade, o que Baudelaire faz, seu grande mérito, não é um “manifesto da poesia em prosa”: antes, é lançar sobre a tradição um olhar que a absorve sem por ela se deixar prender. O que em muito difere de Brecht, para quem o futuro do drama é o drama épico, motor das convulsões e revoluções sociais pela arte.

Fica do texto para o leitor a proposta de aguçar a visão para notar esses fenômenos, hoje ainda mais e sempre recorrentes, que movimentam a arte contemporânea não para uma, mas para todas as direções, expandindo-se… Até onde? De presente, um poema (um poema, sim, senhor) do nosso querido itabirano:

O OPERÁRIO DO MAR

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Sentimento do Mundo)

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