“Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo”
(Fado Tropical – Chico Buarque e Ruy Guerra)
Poetas que versam o versar, Florbela Espanca e Waly Salomão compuseram dois célebres poemas que conversam entre si num diálogo sobre o fazer poético, o sonho e sua dissolução na realidade: Vaidade e A fábrica do poema, cujas relações mais próximas tentaremos evidenciar.
I – O sonho
Ambos os poemas destacam uma grave inquietação com a própria arte poética, refletindo acerca de sua condição de poemas imperfeitos pelo viés do desejo frustrado, que os submete à humanidade de seus poetas. Cada qual buscando a perfeição, Florbela e Waly partem do sonho para a criação, sonho que os leva à fantasia de totalizar a instância da poesia por meio de seus versos:
Sonho que sou a Poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
(FLORBELA ESPANCA, Vaidade)
Sonho o poema de arquitetura ideal Cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra, Tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras.
(WALY SALOMÃO, A fábrica do poema)
É interessante notar que, no poema de Waly Salomão, a preocupação é quase inteiramente voltada à “arquitetura ideal” do poema, que se desenvolva com perfeição e coerência, ao passo que os versos de Florbela expressam uma perceptível e maior inquietude com a posição que o próprio eu-poético deseja alçar, de “Poetisa eleita” como se pode observar ainda nos versos abaixo, do mesmo poema:
Sonho que sou Alguém cá neste mundo… Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a Terra anda curvada!
Nesse sentido, a poetisa portuguesa nos apresenta um desejo, ou vaidade, como o título nos anuncia, de alcançar um prestígio e uma habilidades sobre-humanas, cujos poemas pudessem “reunir num verso a imensidade” e preencher toda alma capaz de ler poesia, mesmo a mais “profunda e insatisfeita”, curvando a Terra aos seus pés com seu saber vasto e profundo.
Waly, por sua vez, parece estar mais preocupado com a estrutura da própria poesia que com a condição ou estatuto do poeta, este que não é o Poeta eleito, mas mero “perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras”, posição menor cuja insatisfação vem não de um problema de auto-imagem, mas de uma tentativa de captar um poema que escapa, como vemos a seguir, no segundo movimento de ambos os escritos em análise.
II – A ruína
Acordo. E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
Acordo. O prédio, pedra e cal, esvoaça Como um leve papel solto à mercê do vento E evola-se, cinza de um corpo esvaído De qualquer sentido.
Acordo, E o poema-miragem se desfaz Desconstruído como se nunca houvera sido.
Acordo! Os olhos chumbados Pelo mingau das almas e os ouvidos moucos, Assim é que saio dos sucessivos sonos: Vão-se os anéis de fumo de ópio E ficam-se os dedos estarrecidos.
Sinédoques, catacreses, Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros Sumidos no sorvedouro. Não deve adiantar grande coisa Permanecer à espreita no topo fantasma Da torre de vigia. Nem a simulação de se afundar no sono. Nem dormir deveras. Pois a questão-chave é: Sob que máscara retornará o recalcado? (mas eu figuro meu vulto caminhando até a escrivaninha e abrindo o caderno de rascunho onde já se encontra escrito que a palavra “recalcado” é uma expressão por demais definida, de sintomatologia cerrada: assim numa operação de supressão mágica vou restaurá-la daqui do poema.) Pois a questão-chave é: Sob que máscara retornará?
Chama atenção que no poema de Florbela a extensão do primeiro movimento – aquele que se configura no sonho do poema/poeta ideal – é muito maior que em A fábrica do poema, tendo três estrofes se medindo com apenas três versos do poeta baiano, enquanto o segundo movimento – a derrocada – ganha muito mais relevo neste que em Vaidade.
Waly narra o processo de acordar como aquele em que o poema-miragem, com todos os seus recursos líricos (sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros) somem no sorvedouro, desconstruindo-se como se nunca houvessem existido, deixando apenas apenas anéis de ópio e fumaça em dedos estarrecidos.
Enquanto isso, o acordar do eu-poético de Florbela não evoca a perda do poema como no caso anterior, mas a obriga a uma reimaginação de si que, frente ao sonho, a leva à queda e à descoberta da sua realidade, na qual não é nada:
E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho… E não sou nada!…
Observamos, assim, que os dois poemas partilham de uma forte sintonia em suas temáticas, com nuances da relação entre o sonho, a realidade e o poeta ou o poema se apresentando pelo viés da desilusão. Vaidade e A fábrica do poema crescem no ambiente onírico que lhes oferece inspiração e qualidade poética, na busca pela totalização da poesia e de seu criador, mas perdem para a vigília que os priva dessa possibilidade.
Por isso mesmo, a metarreflexão nos dois casos constrói a salvaguarda pela qual o poeta e a poetisa indicam o contraponto entre a incapacidade de se arquitetar a totalização de um poema de inspiração perfeita, ou tornar-se o poeta capaz de fazê-lo, a as possibilidades concretas por meio das quais eles podem se realizar: tanto Vaidade como A fábrica do poema afirmam, portanto, não o entrave que impede a poesia, mas a matéria dos sonhos do poeta, e a sua solubilidade.
Para mais
Adriana Calcanhoto manteve um parceria longa com Waly Salomão, parceria esta que resultou algumas grandes obras da canção popular brasileira, como o próprio A Fábrica do Poema.
Já o poema de Florbela Espanca é possível ouvir nesse link, pela voz de Rubens Caribé, em leitura feita no programa Café Filosófico.
Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis… muitos são os poetas — os famosos “heterônimos” — que habitam o seio de Fernando Pessoa, exaustivamente (ou nem tanto) estudados nas universidades e, quiçá, nas escolas brasileiras. Porém, pouco se fala e estuda sobre uma figura que, embora nascida do grande poeta português, teve toda a sua obra escrita em inglês. Alexander Search é o seu nome, e sua poética não é peculiar apenas pelo idioma utilizado, mas por apresentar características e temas de caráter único.
Um primeiro tema a se abordar é a questão do regicídio e da situação política em Portugal. Escrevendo em um momento conturbado da história do seu país – em que revoltas republicanas ameaçavam o sistema monárquico –, Search incorpora parte do contexto histórico ao seu fazer poético, o que tornou tal tema recorrente em sua obra. Como exemplo da importância do assunto, tem-se o seguinte trecho do poema Epitaphs for the Future, traduzido por mim mesma:
Monarquia
O Inferno que na Terra estava jaz-se aqui
(Muito ele custou a ir
com seu ardil de Justiça)
O Regicídio de Lisboa pela imprensa francesa
Neste excerto nota-se a evidente preocupação do autor de se posicionar acerca dos fatos políticos e sociais que lhe cercavam, que é ainda mais evidenciada pelo fato de tal poema citado ter sido escrito em 1908, ano em que o rei e o príncipe portugueses foram assassinados por militares republicanos.
Paralelamente, a filosofia do racionalismo é, também, outro tema de considerável importância na obra poética do heterónimo. Sob a influência do pensamento tecnicista, tal corrente filosófica buscava a razão por meio do método científico, da técnica e do concreto. Em Search, este projeto pode ser visto nos seu conjunto de poemas Death of God, que questionam a Igreja Católica e elevam o valor da Ciência. O soneto a seguir, na íntegra, é um exemplo que sintetiza todos os aspectos dessa temática:
Men of science
To toil through time and hate and to consume
Far more than life in Error's hard defeat,
Seeking e'er for the true, for the complete,
Careless of faith and misery and doom -
Is there a nobler task, while life doth fleet,
Than this, to strive to make light amid gloom,
And with hands bleeding to part and make room
In tire for weaker and more unsure feet?
The void o'th' world must with an arch be spanned,
The ways of Nature must be read aright
That there may be a wise and friendly hand
To make this dark world better and more bright.
Oh, with what joy and love I understand
These master-souls that ache for truth and light.
Outros dois temas recorrentes na poesia de Search são a perturbação mental de Jesus e o delírio. O primeiro é sutil e encontra-se diluído em diversos poemas com outras temáticas, principalmente aqueles que tratam sobre questões referentes à Igreja Católica. Por outro lado, a temática de delírio é mais consistente e visível em diversos escritos poéticos do autor, tal como o epigrama a seguir, traduzido por Luísa Freire, que enfatiza a opção de se poder viver em uma realidade onírica:
"Eu amo os meus sonhos", disse eu para alguém
Prosaico, em manhã de inverno, que com desdém
Replicou: «Não sou escravo de Ideal
E, como gente sensata, amo o Real.»
Pobre tolo, o ser e o parecer trocando -
É que eu amo o Real meus sonhos amando.
Three Studies for a Portrait of Henriquetta Moraes, por Francis Bacon (1963)
Para finalizar, o último tema que deve ser mencionado é a questão da agonia, tão presente na obra de Alexander Search. Os poemas de tal tema recordam o ortônimo Fernando Pessoa, com a sua agonia causada pela consciência (e inconsciência) do pensamento. Além disso, os poemas dessa temática evocam um existencialismo profundo, como pode ser notado no exemplo seguinte, traduzido, também, por Luísa Freire:
Dor supremaUm amigo me disse: «O que tu crias
É sonho e pretensão, tudo fingido;
O pranto com que a mente sã desvias
É decerto forçado e pretendido!
Em toda a canção e conto que fazes
Porquê palavra dura, amargurada?
Por que ao vero e bom não te comprazes
E, jovem, a alegria é desdenhada?»
Porque, amigo, embora seja a loucura
Ora doce, ora dor inominada,
Nunca a dor humana a dor atura
Da mente louca, da loucura ciente;
Porque a ciência ganha é completada
Com o saber dum mal sempre iminente.
Referências:
FREIRE, L. Poesia: Alexander Search. 04-1999. Lisboa: Assírio & Alvim.
Publicado em 1881, Memórias Póstumas de Brás Cubas é considerado o livro que inaugura o Realismo no Brasil. A obra se constitui a partir dos relatos do narrador, Brás Cubas, que se define não como um autor defunto, mas como um defunto autor – ou seja, alguém que escreve depois de morto. Portanto, acerca do Realismo machadiano, pode-se dizer:
“A singularidade de Machado de Assis, por conseguinte, justifica-se muito menos por sua mimesis do que por sua redução em linguagem de aspectos sociais que denunciam quem são os brasileiros e o que eles têm de diferente em relação aos europeus.” (COUTO, 2016)
Resumidamente, o que o defunto autor nos conta são as principais memórias desde a infância até a fase adulta, em meio às suas desventuras amorosas e sociais. O livro, que não segue um enredo linear, se classifica como um romance psicológico, que apresenta elementos do modernismo e, absolutamente, seu próprio “realismo mágico” (MARCÍLIO).
Entretanto, o fato de que a narrativa não se organiza como um relato óbvio e denotativo da realidade (mimesis) não significa que a obra não possua valor enquanto relato histórico oitocentista. Pelo contrário, o livro expõe, em incontáveis ocasiões, a maneira como a sociedade brasileira e europeia se relacionavam, bem como as próprias relações entre os brasileiros do século XIX, as teorias pseudocientíficas que tentavam justificar os abusos e injustiças da época e o pensamento corrente da elite colonial:
“Em síntese, haveria, em Memórias póstumas de Brás Cubas, uma estrutura narrativa correspondente a uma estrutura social, isto é, uma coincidência entre narração autoritária (perceptível na diagramação dos capítulos, na condução das reminiscências etc.) e autoritarismo de classe.” (COUTO, 2016)
Segundo Marcílio, a chegada de Brás Cubas à idade adulta poderia simbolizar uma maturidade social brasileira, pela simultaneidade – supostamente intencional – entre o período da sua juventude e a Independência do Brasil, em 1822. Haveria, de certa forma, um paralelismo entre a história do país e os relatos de Brás Cubas, representante da elite aristocrata e do pensamento escravista:
“Brás Cubas é o protótipo do proprietário de terras e escravos aos moldes do século XIX; é, em outras palavras, o típico sujeito da elite, infiltrado no estamento burocrático e agindo como quem de sua estirpe agiria: imitando tudo o que se fazia na Europa, só que de maneira abrasileirada.” (COUTO, 2016)
Por essa razão, o testemunho de Brás Cubas pode ser examinado através da perspectiva do relato histórico, com valor não apenas literário e artístico, enquanto obra de ficção, mas também como exemplo de personagem-tipo que caracteriza o aristocrata oitocentista de uma realidade não tão distante:
“As memórias de Brás tornam-se, por conseguinte, um testemunho histórico importante sobre as transformações nas ideologias de sustentação do poder no período de crise da sociedade escravista.” (CHALHOUB, 2003)
É importante destacar, em meio a tanto, a relevância da época em que o autor-defunto escreve. Na década de 1870 houve numerosas mudanças que moldariam as relações econômicas e sociais então presentes. A ebulição política fazia dessa época uma caldeira prestes a transbordar, em conflitos cujos interesses eram de naturezas completamente opostas. De um lado, o interesse dos senhores de escravos em manter suas “posses”; de outro, a pressão social e econômica vinda da Europa em abolir a escravidão e mover o mercado consumidor em um rumo liberal.
“Entre a morte do “defunto autor”, em 1869, e o aparecimento do texto, em 1880, houve os acontecimentos políticos e sociais decisivos da década de 1870, os quais conformam, de fato, o conteúdo e o tom do relato de Brás. (…). Havia vários temas palpitantes nos anos 1870 — emancipação dos escravos, mudanças em políticas públicas, emergência de novas idéias políticas e filosóficas, e assim por diante.” (CHALHOUB, 2003)
Nesse sentido, os relatos post mortem de Brás Cubas não são fortuitos. Eles se encontram imersos em uma ideologia de dominação senhorial de cunho conservador, isto é, estão inseridos em um momento histórico do qual ele já não mais participa enquanto vivente, mas como um observador parcial:
“Afinal, Brás Cubas é defunto vivíssimo. Apesar de se descrever como um ‘punhado de pó’ espalhado ‘na eternidade do nada’, ele continua a ter a experiência da história” (CHALHOUB, 2003)
Esse ponto é de especial importância quando consideramos o leitor da época, acostumado aos romances românticos que possuíam um caráter e um objetivo completamente diferentes dos romances realistas – sem, aqui, entrar em méritos de valor. Por esse contexto, é intuitivo compreender a facilidade com que o público acatou (vez e outra vez, repetidamente) o ponto de vista do narrador; assim foi feito com Brás Cubas, bem como com Bentinho e outros mais.
“O leitor brasileiro facilmente adere ao ponto de vista dos narradores machadianos, dos ioiôs elegantes, acabando por ver com naturalidade a relação entre proprietários e agregados.” (COUTO, 2016)
Como se reconhece, Machado de Assis só pôde ser compreendido quando o leitor conseguiu se livrar dessa lógica, dessa ingênua e cega confiança no narrador. Obviamente, o que Machado escreveu em Memórias Póstumas de Brás Cubas não poderia ser jamais tido como uma apologia ao sistema escravista – essa visão demonstraria apenas uma leitura equívoca da obra machadiana, que é fortemente marcada pela ironia. Afinal, no século XIX, quando se passa a história, mas também quando Machado, homem negro, escreve, o próprio sucesso do autor se configurava como uma brilhante ironia:
“A própria condição de Machado como artista consagrado era maculada aos olhos da elite brasileira por ele ser um mulato de origem humilde. A ascensão econômica ou em termos culturais não significava adaptação completa à estrutura hierárquica do Império, mas de uma condição paradoxal. (…). Machado de Assis, um mulato bem sucedido, constituía um paradoxo vivo na sociedade brasileira.” (MISKOLCI, 2006)
Em pleno século XIX, prestes à abolição da escravidão – coisa que, oficialmente, ocorreu em 1888, com a assinatura da Lei Áurea, apenas sete anos após a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas – havia ainda uma visão deturpada que confundia Sociologia e Biologia, gerando entendimentos distorcidos do Darwinismo, que foram, da mesma forma, usados para justificar a escravidão e os massacres nazistas. Por isso, o sucesso social, embora incômodo para as oligarquias, não era considerado uma superação das origens de uma pessoa “baixa”. A hierarquia se justificava em uma suposta superioridade de uns sobre outros a partir, simplesmente, da sua ascendência:
“Percebe-se que a sociologia nascente se confundia com a Biologia em uma forma de compreensão da sociedade, que resultava tão liberal quanto autoritária. (…). Machado escreveu sobre a sociedade brasileira do Segundo Reinado, a qual era marcada pela hierarquia. A origem de um indivíduo era essencial para seu prestígio.” (MISKOLCI, 2006)
Evidentemente, Machado percebia as distorções feitas para acobertar as injustiças, o que denunciou em tom irônico, por exemplo, na teoria do Humanitismo – a teoria de que toda ação humana é válida, porque tem em sua finalidade a sobrevivência da espécie. Em Memórias Póstumas, nem mesmo Brás Cubas se convence por inteiro dessa teoria, que mais uma vez brinca com a ideia do Darwinismo social, escancarando a podridão com que os homens se apropriam da ciência para fins corruptos:
“A dissidência de Machado com relação ao liberalismo autoritário de traços darwinista-sociais indica que sua visão do papel do intelectual na sociedade era a daquele que se mantém fiel aos vencidos na luta pela existência.” (MISKOLCI, 2006)
Por essa razão, Miskolci descreve Machado de Assis como um outsider (literalmente: um estranho, forasteiro, intruso – em tradução livre). Negro, logo, para a época, inferior, e ao mesmo tempo um célebre autor, reconhecido, que ironiza a sociedade aristocrática e debocha das suas pretensões.
“Ainda que, na ficção, Machado brinque com a parcialidade de visão e, sobretudo, com o ideal de objetividade dos escritores de seus dias, não há como ignorar sua valorização da perspectiva do outsider, daquele que já não participa do jogo social nem crê mais em suas regras.” (MISKOLCI, 2006)
Essa desilusão com que escreve, bem como seu sarcasmo cáustico, renderam ao autor o rótulo simplista e resumidor de cético, que, embora não deixe de ser parcialmente adequado, não explica e não compreende Machado por completo – coisa que não poderia fazer alcunha alguma. Da sua posição – outsider social, autor reconhecido e paradoxo vivo – a ironia é uma excelente resposta, e o ceticismo uma perspectiva compreensível:
“De certo modo, supera-se o ceticismo quando se aceita, embora com amargura ou contido protesto, o “resto” que nos lega a vida. Talvez resida aí, bem distinto do humour inglês, a ironia machadiana, na qual talvez se oculte a capacidade brasileira de dar-se um jeito, quand-même, aos tropeços da existência.” (REALE, 1982)
A bem da verdade, para o público a quem Machado escrevia, a elite oitocentista, o raciocínio que se dava era tão-só o que se passava com o defunto que escreveu suas Memórias:
“(…) em 1880, seria difícil que Brás adotasse defesa ideológica da instituição da escravidão, mas haveria vontade de sobra, nele e em seus pares, para defender a propriedade escrava existente contra as incursões dos abolicionistas.” (CHALHOUB, 2003)
Mesmo com essa percepção, Machado de Assis foi capaz de manter uma visão sarcástica e amarga, mas que não se afundou em tragédia. Ainda que carregue um inconformismo com a inexorabilidade do destino, para o autor, a vida ainda vale a pena ser vivida:
“O mundo de Machado ‘não conhece a tragédia’, ou melhor, que ‘nele, o trágico dissolve-se no absurdo e o ridículo tem gosto amargo’.” (HOLANDA apud REALE, 1982)
Com sua capacidade ímpar de expor e desmoralizar o conservadorismo social e a calhordagem da aristocracia brasileira, Machado ainda conseguiu fazer que permanecesse acesa a vontade pela vida, sem ilusões ou utopias, mas como um imenso parque de diversões:
“Vale a pena viver o drama da existência quando se sabe ser, ao mesmo tempo, coche, cavalo e cocheiro, protagonista e espectador da fria indiferença do destino; quando, em suma, a despeito de saber que a vida não conduz a nada de certo ou positivo, ela vale como drama ou espetáculo.” (REALE, 1982)
Conduzindo a uma conclusão, Memórias Póstumas de Brás Cubas se mostra uma obra de alto valor histórico, em que Machado foi capaz da artimanha de construir uma narrativa em que os valores e as vilezas da sociedade colonial fossem expostos e ridicularizados, sem jamais perder a sua ironia e a sua postura de outsider, provando ser não só um enorme mestre da literatura brasileira, mas um homem que se coloca ao lado da justiça, mesmo que para isso precisasse rejeitar as conveniências sociais de que poderia usufruir. Sua visão, cética, não demonstra uma derrota pela sociedade, mas um desapego pelas imposturas e recalques da vida mundana. Com o justo comentário de Miguel Reale, esse ensaio se conclui:
“De certa forma, Machado de Assis foi um ‘heideggeriano’ avant la lettre, sobretudo pelo desconsolado sentimento de que a cada ser humano toca viver uma vida que ele não escolheu, e cujo começo e fim lhe escapam.” (REALE, 1982)
Referências bibliográficas
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 1ª Ed. São Paulo: MEDIAfashion, 2016. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. COUTO, Elvis. Roberto Schwarz e a crítica social na literatura de Machado de Assis. Revista Florestan Fernandes, UFSCar, Ano 3, N. 5, 2016, p. 151-163. Disponível em <http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/issue/view/8> (Acesso em 21/01/2017) MARCÍLIO, Fernando. Memórias Póstumas de Brás Cubas <http://educacao.globo.com/literatura/assunto/resumos-de-livros/memorias-postumas-de-bras-cubas.html> (Acesso em 21/01/2017) MISKOLCI, Richard. Machado de Assis, o outsider estabelecido. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, p. 352-377. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/soc/n15/a13v8n15.pdf>. (Acesso em 21/01/2017) REALE, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis: Antologia Filosófica de Machado de Assis. São Paulo: Pioneira, 1982.
Patrick Pearse (ou Pádraig Mac Piaraisc, em gaélico irlandês) é tido hoje como um dos principais nomes do nacionalismo irlandês. Tendo lutado e morrido pela independência da Irlanda — até então colônia britânica — sua imagem se tornou tal como a de um mártir; afinal, Pearse não apenas participou da chamada “Revolta da Páscoa” (insurgência rebelde e separatista que tomou as ruas de Dublin em abril de 1916), mas também a liderou ao lado de Éamon de Valera e Michael Collins.
Pouco se fala sobre o poeta que existia ao lado do uniforme verde e das armas de fogo
Decerto, tal fato faz perder parte do entendimento e compreensão da questão humana por trás do conflito político e histórico. Portanto, proponho-me a demonstrar, em uma breve análise de alguns trechos do poema The Rebel, o que é importante para compreender os sentimentos de insatisfação e revolta que tanto alimentaram os insurgentes irlandeses.
O que nos conta The rebel, de Pearse?
Do valor do passado
Começando pelo desejo de independência propriamente dito, os versos iniciais do poema já apontam para o contraste entre a pobreza e sofrimento de um povo negligenciado com o imaginário de uma Irlanda gloriosa, “pré-normanda” (e, consequentemente, “pré-anglicizada”) da época dos ard-ríor (altos- reis) — que, como diz Orpen, em Ireland under the Normans, embora fossem grandes figuras do folclore e da literatura irlandesa, “não detinham poder político real”:
“I am come of the seed of the people, the people that sorrow, That have no treasure but hope, No riches laid up but a memory Of an Ancient glory”
que pode ser traduzido como:
“Eu vim do seio das pessoas, pessoas que sofrem, que ouro algum tem, senão fé, riqueza alguma, mas memória de uma Anciã glória”
Vale lembrar que a Irlanda, poucas décadas antes do poema ser escrito, havia passado por um período que viera a ser conhecido como An Gorta Mór, “Grande Fome”, em que mais de um milhão de pessoas morreram por inanição ou pestilência, e cerca de dois milhões abandonaram a ilha rumo, principalmente, aos Estados Unidos da América. Tal evento não apenas foi devastador em índices demográficos, mas causou uma grave diminuição entre os falantes de gaélico irlandês, enfraquecendo a língua e abrindo espaço para uma maior dominação cultural por parte dos ingleses.
Famine memorial, em Dublin.
Das dores de um povo
Prosseguindo com a análise, outro aspecto importante do poema está em como o sujeito lírico se coloca como portador das dores e dos desejos das pessoas por quem fala; seu papel é, portanto, tal como o de um porta-voz que irá falar e lutar em favor do seu povo, assumindo um papel de mártir cuja imagem é, talvez, tal como a de Cristo:
(…) I that have a soul greater than the souls of my people’s masters, I that have vision and prophecy and the gift of fiery speech, I that have spoken with God on the top of His holy hill (…)
em tradução própria:
(…) Eu que maior alma tenho que os mestres da minha gente, Eu que tenho visão, profecia e o dom do bravo grito, Eu que com Deus falei, no alto de Sua santa colina (…)
11th Station of the Cross, por Robert Ferri.
A associação com imagens do ideário cristão não é aleatória; os irlandeses possuem uma forte tradição católica, e Pearse não era diferente. Durante a Revolta de 1916, sabia-se que o poderio militar britânico era superior, e que a morte era certeira, mas acreditava-se que o sangue dos rebeldes seria como o sangue de Cristo: morre e ressurge — salvando os homens do pecado e a Irlanda dos grilhões. Assim, pode-se dizer que o sacrifício dos insurgentes fora, ao menos em suas mentes convictas, tal qual o sacrifício de Jesus ao ser crucificado.
Da insurreição
Por fim, o autor conduz os versos, ainda, ao sentimento de insurreição e revolta que se fortalece a cada pulso, endossando ainda mais o desejo de revolução e mudança, bradando aos mestres do seu povo — os burgueses, os britânicos — um aviso do que poderia estar por vir na realidade além-lírica.
And I say to my people’s masters: Beware, Beware of the thing that is coming, beware of the risen people, Who shall take what ye would not give. Did ye think to conquer the people, Or that Law is stronger than life and than men’s desire to be free? We will try it out with you, ye that have harried and held, Ye that have bullied and bribed, tyrants, hypocrites, liars!
E eu digo aos mestres do meu povo: cuidado, cuidado com o que logo vem, com o povo que já se ergue, que tomarão o que não lhes foi dado. Achais ter conquistado esta gente, ou que a Lei mais forte é que a vida — que um corpo libertado? Provaremos convosco — que abusaram e oprimiram, coagiram e subornaram — tiranos, hipócritas!
Apêndice
Interessado em saber mais sobre a poesia e vida de Patrick Pearse? A ARTÉ lançou, em 2001, um documentário sobre a vida do autor! Ele está disponível integralmente no Youtube, e você pode conferi-lo abaixo.
* Infelizmente o documentário é em inglês e ainda não foi legendado.
A literatura latina, grosso modo, tem suas raízes na literatura clássica grega, e é ainda estrutura fundadora para autores de todo o Ocidente. Algumas das primeiras obras de que se tem registro são parte das origens teatrais da cultura latina, dos quais se destacam o fescenino, a sátura, a atellana e o mimo , que apresentam graus distintos de complexidade e inovação. A atellana, em especial, divide-se em vários tipos: há a atellana rústica, a mitológica, a de costumes e intrigas e a de caracteres, nas quais há grande presença dos tipos de Teofrasto (como o velho, o escravo, o parasita, o alcoviteiro, etc.).
Há também no sistema teatral da antiguidade latina a Palliata, que é a comédia de assuntos gregos, de convenções bastante previsíveis e enrijecidas, como a quebra da ilusão dramática, a farsa, o diálogo com o público, a personagem protática e o enredo repetitivo, em especial o da história da amor proibido com cena de reconhecimento. Desse período, destacam-se dois grandes dramaturgos, Plauto e Terêncio, cujas obras ainda hoje influenciam tramas dos dramas contemporâneos, como o famoso caso da Aululária, de Plauto, que deu origem tanto à peça O Avarento, de Molière, quanto a O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna.
Outros que contribuíram para a constituição da literatura latina como a concebemos foram os poetas agrários, em especial Catão e Varrão, embora as Geórgicas de Virgílio também façam parte do mesmo enquadramento. Suas obras, De agricultura e De Re Rústica, entre outras, decorrem sobre as questões da terra, da colheita, da plantação e da vida rural, sendo parte essencial do imaginário que permeia a antiguidade romana.
Além das Bucólicas e das Geórgicas, é também autor da Eneida, uma das maiores obras da história da literatura latina, que narra as desventuras de um dos grandes heróis da guerra de Troia, Eneias.
Além destes, um poeta de imensa importância foi Cícero, autor de numerosas obras de caráter filosófico e reflexivo, em que decorre a respeito de temas como Da velhice, Da amizade, Da natureza dos deuses, etc. Seus escritos, de maneira geral, intentam a composição de um argumento retórico de nível elevado em que as questões propostas são enunciadas e exploradas amplamente.
Depois dele, também é imprescindível lembrar Lucrécio, seguidos dos epicuristas e autor de De rerum natura, poema que descreve “a natureza das coisas” ou, como sugere Miguel Spinelli, “as coisas naturais”, passando pela invocação a Vênus e à composição material da natureza, que já se imaginava composta de átomos. Nessa obra, o autor argumenta a favor do que mais tarde viria a ser conhecido como Lei de Lavoisier, aquela em que se enuncia que nada vem do nada: pelo contrário, a disposição de tudo o que conhecemos é determinada pelo arranjo, desarranjo ou rearranjo dos átomos.
Houve também grandes historiadores, como Salústio, Suetônio, Plutarco e Tito Lívio, que forneceram obras essenciais para a compreensão da Roma Antiga. Caio Júlio César, entre eles, foi um dos mais influentes, tendo escrito a Guerra Civil, A Guerra das Gálias e ainda outros eventos históricos, elaborando uma ampla narrativa (bastante contundente, ainda que parcial) sobre a formação do império romano.
Caio Júlio César
Por fim, ainda que muitos outros tenham havido, chamo a figura de Catulo, Cancioneiro de Lésbia, poeta de considerável expressão que escreveu o pathos amoroso, os costumes da época, poemas de homenagem aos mortos, poemas de ciúme e de perda, sendo portentoso tanto no impacto do conteúdo quanto no movimento erótico da sua linguagem.
Catulo
Todos esses grandes autores formaram, no conjunto, um repertório cultural que fundou não só o conhecimento que se faz da literatura latina do período clássico, como também as bases de toda a literatura ocidental que adveio dessa sociedade, sendo um berço ao qual poetas, estudiosos e curiosos retornam sempre em vistas de conhecer e compreender sua origem e os pilares da sua formação cultural.
O primeiro livro de A Guerra das Gálias, de Caio Júlio César, relata os princípios que levaram os romanos e os helvécios a entrarem em guerra. A narrativa, repleta de descrições geográficas e passagens de ficção meta-historiográfica (falas e pensamentos de personagens históricos), apresenta um sedutor tom romanesco, que confere à obra um grande deleite em sua leitura. Abaixo, segue uma síntese dos principais eventos que conduziram à guerra entre esses povos, tal como apresentados pelo historiador nos primeiros XX excertos do livro I.
Os helvécios, liderados por Orgétorix, decidem marchar para além das fronteiras de seu território. Orgétorix forma aliança com os sequanos e os éduos, no intento de restabelecer a monarquia e dominar toda a Gália. Quando descoberto o plano, o nobre é preso e morre pouco depois – provavelmente por suicídio. Mesmo assim, os helvécios mantêm o plano de sair de suas terras, e queimam as casas, campos e vilarejos, para que não se sintam tentados a voltar e lutem com a maior bravura, convocando povos vizinhos a proceder da mesma forma.
Para obter sucesso no empreendimento, os helvécios decidem passar pela ponte de Genebra, que atravessa o rio Ródano. Contudo, César, o imperador, envia imediatamente tropas romanas para interceptá-los. Os passantes enviam, por isso, embaixadores para advogar em sua causa, mas este, lembrando-se de que haviam morto o cônsul Lúcio Cássio, prefere não conceder a passagem pela Província.
Não bastando se opor à sua travessia, o imperador romano ordena ainda a construção de uma enorme muralha a que juntou um fosso, para impedir de vez a sua passagem. Desiludidos, os helvécios tentam atravessar o Ródano por outros pontos, mas se deparam com obstáculos criados pelos romanos e desistem da empreitada.
Desse modo, a única maneira de atravessar seria pelo reino dos sequanos, e para isso pedem o auxílio de Dúmnorix, que tem por nora a filha de Orgétorix, e que consegue a concessão para a sua passagem segura, com comprometimento de ambas as partes.
Não obstante, relatam a César que, após a passagem pelo reino dos sequanos e dos éduos, os helvécios se estabeleceriam numa região vizinha à dos tolosates, região rica em trigo e que pertencia à Província. O imperador julgou que seria imprudente ter um povo tão belicoso e inimigo dos romanos tão próximo, e fez as legiões romanas intervirem, atalhando o caminho pelos Alpes.
Após a passagem pelos sequanos, os helvécios seguem pelo reino dos éduos, queimando e devastando seus campos. Estes, indefesos, escrevem pedindo auxílio a César, assim como os alóbroges, que tinham terras do outro lado do Ródano e que também sofreram a violência dos helvécios. César, então, parte ao alcance dos inimigos, e num combate surpresa consegue vencer um grande número dos que ainda não haviam atravessado o rio Saône, mais lento que o Ródano.
Para alcançar os outros, que já haviam passado pelo rio, ele comanda a construção de uma ponte sobre o Saône, pela qual faz passar todo o seu exército. Os helvécios, intimidados, enviam Divicon, que fora seu general, para atuar como embaixador com o inimigo. Ele diz a César que “se o povo romano fizesse a paz com os Helvécios, os Helvécios partiriam e se estabeleceriam nos lugares onde César entendesse fixá-los; mas que se persistisse em lhes fazer guerra, se lembrasse do passado dissabor experimentado pelo povo romano e do antigo valor dos Helvécios.” (Livro I, XIII)
César, por sua vez, ainda se mostra ultrajado pelas violências antigas, em que Lúcio Cássio foi morto, e pelas recentes, como a tentativa forçada de passar contra a sua vontade o rio Ródano e a brutalidade cometida contra os éduos, ambarros e alóbroges, mas concederia a paz sob a condição de ter reféns como garantias de suas promessas e de satisfação aos povos ultrajados. Contudo, Divicon responde que os helvécios não oferecem reféns, e se retira. No dia seguinte armam o acampamento de guerra.
A cavalaria de César, composta de cerca de quatro mil homens, leva uma grande desvantagem no combate contra os cerca de quinhentos helvécios que lhe fizeram oposição, fazendo que estes se tornassem mais audazes e que a distância entre os inimigos se mantivesse sempre pouca. Enquanto isso, César insistia que os éduos enviassem trigo aos campos de combate, posto que não havia abundância de provisões nem meios de obtê-las, quando descobre uma conspiração para desviar o trigo enviado e fornecer informações aos inimigos helvécios.
Lisco, aliado de César, revela que Dúmnorix está por trás da traição, procurando a perturbação política para colocar ele próprio as mãos sobre o poder, tendo, para isso, tomado por esposa uma mulher do povo helvécio. Se os romanos fracassassem, Dúmnorix poderia tentar ele próprio tornar-se rei. Além dos rumores, juntaram-se as informações do auxílio conferido por este na passagem dos helvécios pelo reino dos sequanos, garantindo a troca de reféns e a segurança da travessia, que não só fora feita sem o comando do imperador como também sem que tomasse qualquer conhecimento.
César, então, convoca Diviciaco, irmão de Dúmnorix, por quem mantinha grande amizade e apreço, e expõe os fatos. Este, às lágrimas, pede que César seja clemente, e não infrinja grande suplício ao irmão, embora estivesse convencido de que este era de fato culpado das acusações.
O livro, de tom bastante convidativo, entretém o leitor comum como o leitor analista. Possui uma grande riqueza em detalhes, narrativa envolvente e ajuda a construir de maneira divertida e leve uma perspectiva da história romana, a partir de um de seus mais próximos e melhores narradores.
“Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos.” (Joseph Campell – O Herói de Mil Faces, 1989)
Alguns dos primeiros registros de literatura existentes atentam para a Grécia Antiga. A Ilíada, que narra a Guerra de Troia, e a Odisseia, que conta o retorno de Ulisses a Ítaca, ambas atribuídas a Homero, são os poemas épicos que deram origem à tradição literária ocidental. Assim como elas, as obras escritas na Antiguidade Clássica, que sobrevieram aos séculos, constituem a pedra fundamental para a concepção e modelo de literatura que temos e (re)criamos até hoje.
É fato que histórias de qualquer tempo e espaço possuem semelhanças e contrastes. Essas similaridades e discrepâncias podem ocorrer através dos personagens, dos recursos estilísticos dos autores, das descrições paisagísticas, do contexto histórico, geográfico, político ou social, da trama, do canal de transmissão, do público a quem se direciona, entre tantos outros fatores. São essas as relações que a Literatura Comparada tem por objeto de estudo.
No que tange, entretanto, à literatura considerada clássica, saltam aos olhos aqueles elementos que coexistem, de maneiras diversas, em todas ou quase todas as obras. Se tomamos como referências os livros canônicos – como a Ilíada, a Odisseia, Eneida, Édipo Rei, A Divina Comédia, Dom Quixote, Hamlet, O Pequeno Príncipe, Os Miseráveis, Crime e Castigo, Orgulho e Preconceito, Walden, etc., temos a rápida percepção de que todas essas histórias que sobreviveram aos seu tempo e continuam sendo lidas têm em comum o fato de tocarem questões atemporais da humanidade.
Citando Ítalo Calvino, “um clássico é um livro que nunca terminou aquilo que tinha pra dizer.” Talvez seja essa uma das razões para haver tantas releituras dessas obras, em todos os sentidos.
Dentre os clássicos, há uma categoria que se destaca pela sua influência em toda a cultura e forma de pensamento ocidentais: a mitologia. Mesmo quando não lemos os textos originais, que já não existem na cultura da oralidade, mas que foram escritos e por isso preservados, estamos sempre rodeados de suas releituras, seja na forma literária, no cinema, na pintura, escultura ou música, entre tantas outras mídias modernas.
Exemplos incontáveis se encontram na literatura pop, nos quadrinhos e no cinema hollywoodiano. Percy Jackson, a Mulher Maravilha e Hércules possuem referenciais não muito difíceis de se recuperar, enquanto algumas outras obras que se apropriaram desses referentes exigem uma investigação mais atenta.
Na mitologia grega, Hemione é filha do rei Menelau e de Helena de Troia. Na saga, é uma das protagonistas, junto a Harry e Rony, reconhecida pela sua inteligência e sagacidade imbatíveis.
Um exemplo é a saga Harry Potter, da escritora britânica J. K. Rowling, em que encontram-se vários elementos provenientes de lendas celtas, escandinavas, irlandesas e orientais, dentre as quais a mitologia greco-romana, que inspirou desde nomes de personagens a monstros e criaturas mágicas.
Evidentemente, os elementos foram usados em contextos e com objetivos muito diferentes do que possuíam nas suas histórias de origem, mas ainda são próximos o bastante para notarmos com clareza o impacto da cultura mitológica clássica em uma das sagas de maior sucesso e difusão da literatura infanto-juvenil contemporânea.
Algumas outras referências, a título de exemplo, estão listadas abaixo:
É ao crítico de literatura comparada que cabe identificar e analisar a fundo as relações que se estabelecem entre os elementos que se aproximam e se contrastam, evidenciando as reverberações e criação de sentidos que se instauram a partir desses alinhamentos, mas para o leitor comum também pode ser um exercício de leitura instigante.
Até hoje, as relações entre influência e a ideia de talento individual se discutem, embora muito já tenha sido superado. Sabe-se que toda a literatura está inserida em um sistema que se apropria e reelabora o que já foi lido, com ou sem a intenção de fazê-lo. Contudo, o que antes se admitia apenas como plágio ou ausência de criatividade, hoje é visto sobre outro prisma.
Exemplo clássico é O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, que por longa data foi rechaçado como réplica de Madame Bovary, do francês Flaubert. Atualmente, o olhar que se lança é o da intertextualidade, que cria novos sentidos e coloca outros elementos em evidência. Assim, o escritor já não carrega o fardo de renegar a influência e combatê-la, mas, pelo contrário, lhe é permitido explorar suas potencialidades a partir de uma bagagem única.
Jorge Luis Borges (1899-1986)
Kafka e seus precursores,conto do argentino Jorge Luís Borges, é bastante usado para ilustrar a questão. Pela lógica da inversão, o conto joga luz sobre o escritor como criador de seus precursores. O exemplo é simples de ser entendido: uma vez que se tornou célebre, o estudo de Kafka levou ao exame das suas influências, que por si só não tinham grande importância até então. Por isso mesmo, o sentido da influência se questiona, dando destaque à importância da consagração e do próprio mercado na criação de grandes nomes.
Outro conto provocativo dessas questões, do mesmo escritor, é Pierre Menard, autor do Quixote. Nele, Menard decide reescrever Dom Quixote, de Cervantes, palavra por palavra, ipsis litteris, com as mesmas letras, mesmo papel e tudo exatamente igual. Depara-se, contudo, com a impossibilidade do feito, pois o tempo já não era o mesmo, o público, o contexto histórico e as referências imediatas da época já haviam se perdido.
Pierre Menard é extremamente provocatório justamente por levar à pauta da impossibilidade de se realizar o que outro já realizou, e ridiculariza a própria chance de se apropriar por completo de outra obra. É, por isso, um texto que tematiza a natureza da influência e se posiciona criticamente frente a ela, conferindo aos novos autores o reconhecimento da criatividade do mosaico e do rapsódico.
Para a literatura comparada, os laços intertextuais são virtualmente infinitos, e fontes de debates e reflexões ilimitadas. Para o leitor, fica o desafio de perceber os pontos de encontro entre as obras do seu repertório, observando entre elas os vínculos, as particularidades e seus alcances individuais.