Uma introdução à literatura comparada

Texto por Isadora Urbano

“Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos.” (Joseph Campell – O Herói de Mil Faces, 1989)

Alguns dos primeiros registros de literatura existentes atentam para a Grécia Antiga. A Ilíada, que narra a Guerra de Troia, e a Odisseia, que conta o retorno de Ulisses a Ítaca, ambas atribuídas a Homero, são os poemas épicos que deram origem à tradição literária ocidental. Assim como elas, as obras escritas na Antiguidade Clássica, que sobrevieram aos séculos, constituem a pedra fundamental para a concepção e modelo de literatura que temos e (re)criamos até hoje.

É fato que histórias de qualquer tempo e espaço possuem semelhanças e contrastes. Essas similaridades e discrepâncias podem ocorrer através dos personagens, dos recursos estilísticos dos autores, das descrições paisagísticas, do contexto histórico, geográfico, político ou social, da trama, do canal de transmissão, do público a quem se direciona, entre tantos outros fatores. São essas as relações que a Literatura Comparada tem por objeto de estudo.

No que tange, entretanto, à literatura considerada clássica, saltam aos olhos aqueles elementos que coexistem, de maneiras diversas, em todas ou quase todas as obras. Se tomamos como referências os livros canônicos – como a Ilíada, a Odisseia, Eneida, Édipo Rei, A Divina Comédia, Dom Quixote, Hamlet, O Pequeno Príncipe, Os Miseráveis, Crime e Castigo, Orgulho e Preconceito, Walden, etc., temos a rápida percepção de que todas essas histórias que sobreviveram aos seu tempo e continuam sendo lidas têm em comum o fato de tocarem questões atemporais da humanidade.

Citando Ítalo Calvino, “um clássico é um livro que nunca terminou aquilo que tinha pra dizer.” Talvez seja essa uma das razões para haver tantas releituras dessas obras, em todos os sentidos.

Dentre os clássicos, há uma categoria que se destaca pela sua influência em toda a cultura e forma de pensamento ocidentais: a mitologia. Mesmo quando não lemos os textos originais, que já não existem na cultura da oralidade, mas que foram escritos e por isso preservados, estamos sempre rodeados de suas releituras, seja na forma literária, no cinema, na pintura, escultura ou música, entre tantas outras mídias modernas.

Exemplos incontáveis se encontram na literatura pop, nos quadrinhos e no cinema hollywoodiano. Percy Jackson, a Mulher Maravilha e Hércules possuem referenciais não muito difíceis de se recuperar, enquanto algumas outras obras que se apropriaram desses referentes exigem uma investigação mais atenta. 

Hermione
Na mitologia grega, Hemione é filha do rei Menelau e de Helena de Troia. Na saga, é uma das protagonistas, junto a Harry e Rony, reconhecida pela sua inteligência e sagacidade imbatíveis.

Um exemplo é a saga Harry Potter, da escritora britânica J. K. Rowling, em que encontram-se vários elementos provenientes de lendas celtas, escandinavas, irlandesas e orientais, dentre as quais a mitologia greco-romana, que inspirou desde nomes de personagens a monstros e criaturas mágicas.

Evidentemente, os elementos foram usados em contextos e com objetivos muito diferentes do que possuíam nas suas histórias de origem, mas ainda são próximos o bastante para notarmos com clareza o impacto da cultura mitológica clássica em uma das sagas de maior sucesso e difusão da literatura infanto-juvenil contemporânea.

Algumas outras referências, a título de exemplo, estão listadas abaixo:

Harry Potter e a mitologia

É ao crítico de literatura comparada que cabe identificar e analisar a fundo as relações que se estabelecem entre os elementos que se aproximam e se contrastam, evidenciando as reverberações e criação de sentidos que se instauram a partir desses alinhamentos, mas para o leitor comum também pode ser um exercício de leitura instigante.

Até hoje, as relações entre influência e a ideia de talento individual se discutem, embora muito já tenha sido superado. Sabe-se que toda a literatura está inserida em um sistema que se apropria e reelabora o que já foi lido, com ou sem a intenção de fazê-lo. Contudo, o que antes se admitia apenas como plágio ou ausência de criatividade, hoje é visto sobre outro prisma.

Exemplo clássico é O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, que por longa data foi rechaçado como réplica de Madame Bovary, do francês Flaubert. Atualmente, o olhar que se lança é o da intertextualidade, que cria novos sentidos e coloca outros elementos em evidência. Assim, o escritor já não carrega o fardo de renegar a influência e combatê-la, mas, pelo contrário, lhe é permitido explorar suas potencialidades a partir de uma bagagem única.

Borges
Jorge Luis Borges (1899-1986)

Kafka e seus precursores, conto do argentino Jorge Luís Borges, é bastante usado para ilustrar a questão. Pela lógica da inversão, o conto joga luz sobre o escritor como criador de seus precursores. O exemplo é simples de ser entendido: uma vez que se tornou célebre, o estudo de Kafka levou ao exame das suas influências, que por si só não tinham grande importância até então. Por isso mesmo, o sentido da influência se questiona, dando destaque à importância da consagração e do próprio mercado na criação de grandes nomes.

Outro conto provocativo dessas questões, do mesmo escritor, é Pierre Menard, autor do Quixote. Nele, Menard decide reescrever Dom Quixote, de Cervantes, palavra por palavra, ipsis litteris, com as mesmas letras, mesmo papel e tudo exatamente igual. Depara-se, contudo, com a impossibilidade do feito, pois o tempo já não era o mesmo, o público, o contexto histórico e as referências imediatas da época já haviam se perdido.

Pierre Menard é extremamente provocatório justamente por levar à pauta da impossibilidade de se realizar o que outro já realizou, e ridiculariza a própria chance de se apropriar por completo de outra obra. É, por isso, um texto que tematiza a natureza da influência e se posiciona criticamente frente a ela, conferindo aos novos autores o reconhecimento da criatividade do mosaico e do rapsódico.

Para a literatura comparada, os laços intertextuais são virtualmente infinitos, e fontes de debates e reflexões ilimitadas. Para o leitor, fica o desafio de perceber os pontos de encontro entre as obras do seu repertório, observando entre elas os vínculos, as particularidades e seus alcances individuais.

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