Como ler poesia? Ler poesia é desafiador, mesmo para os leitores mais experientes. O que não quer dizer que não existam estratégias de análise que ajudem na empreitada. As informações a seguir pretendem ajudar você a se aventurar na leitura da poesia – e, quem sabe, ir até mais fundo nas suas experimentações.
O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema.
Décio Pignatari
Sintagma e paradigma
Segundo Pignatari, no livro O que é comunicação poética (Ateliê Editorial, 2011) a contiguidade (proximidade) e a similaridade (semelhança) são os dois processos de associação ou organização das coisas, que foram o eixo da seleção, chamado de paradigma, e o eixo da combinação, a que se chama sintagma.
Quando duas (ou mais) coisas se associam por características comuns a si, as associamos pelo eixo paradigmático (o da similaridade). Observe o mosaico abaixo, que ilustra a questão:
Certamente, é só bater os olhos para reparar que os objetos em questão, embora sejam das mais variadas naturezas, partilham de uma mesma cor, o verde, que é seu paradigma. Agora observe a seguinte imagem:
O cardápio acima oferece opções de sorvete, dentre os quais o consumidor deverá escolher o (ou os) que deseja. Se, além do sorvete, ele também escolhe um prato salgado e uma bebida entre as opções, ele irá criar um sintagma, ou seja, uma seleção ou reunião, a partir de escolhas dentro de conjuntos de pratos, bebidas e sobremesas.
Metáfora e metonímia
De acordo com o linguista Jakobson, a metonímia (a tomada da parte pelo todo) e a metáfora (a semelhança entre duas coisas, apresentada por uma palavra ou conjunto de palavras) são as duas figuras de linguagem que predominam nessa lógica, sendo que a metonímia prevalece no sintagma e a metáfora no paradigma.
Pensemos agora nas seguintes frases:
(a) Maria é flor.
Associamos as duas partes, sujeito e predicado, numa metáfora, por contiguidade, que aproxima não as duas palavras em si, mas as duas coisas: entre Maria e a “flor”, deve haver características comuns: o perfume, a delicadeza, ou algo mais. Agora leia a próxima:
(b) Flora é flor.
Nesse caso, além da metáfora do primeiro exemplo, temos ainda a semelhança entre as duas palavras “Flora” e “flor”, fazendo que a semelhança entre os objetos seja traduzida também nos sons das palavras que os designam. A semelhança dos sons entre palavras ou numa mesma palavra é chamada paronomásia, e é ela que possibilita o trocadilho e a poesia. Para facilitar, a metáfora aproxima a semelhança de duas coisas (significados), e a paronomásia, de duas palavras.
Quando o eixo da similaridade se projeta sobre o eixo da continuidade, é quando a linguagem apresenta a sua função poética – é o que concluiu Jakobson. Na terminologia de Pierce, a marca dessa função é a projeção do ícone sobre o símbolo (ou seja, transformar o símbolo, a palavra, em ícone: figura). Podemos ainda pensar nos termos do analógico que se projeta sobre o lógico.
Paronomásia
Exemplos são uma boa forma de entrar neste tópico. Então, diga, o que você observa em cada imagem abaixo?
As paronomásias podem ocorrer em diferentes formas: (i) a paronomásia propriamente dita, (ii) o anagrama, (iii) a aliteração e (iv) a rima. Os exemplos abaixo ilustram cada tipo, respectivamente:
1 — Paronomásia (propriamente dita)
Há soldados armados, amados ou não — Geraldo Vandré
2 — Anagrama
3 — Aliteração
Se Sara sarar do sarampo Sara será sereia pois sara não é feia embora não seja um anjo merece um solo de banjo – Chacal
4 — Rima
Não há na violência que a linguagem imita algo da violência propriamente dita? – Cacaso
Ritmo
O ritmo se configura como a divisão no tempo e no espaço de elementos verbovocovisuais (verbais, vocais, visuais). Na linha ocidental, há quatro tipos básicos de ritmo, a serem mostrados a seguir.
(a) Binário ascendente
Um som fraco (breve) seguido de um forte (longo): – —
A coi-sa con-tra a coi-sa (Orides Fontela)
(b) Binário descendente
Um som forte seguido de um fraco: — –
es-sas plan-tas fo-ram vin-do (Ana Martins Marques)
(c) Ternário ascendente
Dois sons fracos seguidos de um forte: – – —
Pe-las on-das do mar sem li-mi-tes (Álvares de Azevedo)
(d) Ternário descendente
Um som forte seguidos de dois fracos: — – –
Fa-ses que vão e que vêm (Cecília Meireles)
Métrica
As possibilidades rítmicas da tradição luso-brasileira se configuram, em geral, por meio de algumas regras. Para conhecê-las, é preciso lembrar que:
(1) As sílabas são contadas apenas até a última tônica (sílaba forte);
(2) A sílaba terminada em vogal átona (fraca) faz elisão (ou seja, emenda) com a vogal átona seguinte, e por isso contam apenas como uma sílaba;
(3) Os acentos das regras são os obrigatórios, não excluindo as possibilidades de outros.
Vamos lá!
a) Versos de 5 e 7 sílabas
Acentue onde quiser. Os versos de 5 sílabas (os pentassílabos) são chamados de redondilha menor. Os de 7 (heptassílabos), redondilha maior.
U | ma | pa | la | vra | se | a | bre (Emily Dickinson)
b) Versos de 8 sílabas
Os acentos tônicos vão na 4ª e na 8ª, ou então na 2ª (ou 3ª), na 5ª e na 8ª.
c) Versos de 9 sílabas
Acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas ou na 4ª e na 9ª.
d) Versos de 10 sílabas (decassílabos)
Acentos na 6ª e na 10ª, ou na 4ª, 8ª e 10ª.
e) Versos de 11 sílabas (hendecassílabos)
Acentos na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª, ou na 5ª e na 11ª, ou ainda na 3ª , 7ª e 11ª.
f) Versos de 12 sílabas (Alexandrinos)
Há três tipos:
- Acentos na 4ª, 8ª e 12ª – o mais fácil e comum.
- Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que o da 6ª caia em palavra oxítona, marcando o meio do verso.
- Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que a 6ª caia em palavra paroxítona terminada em vogal átona, de modo a fazer elisão (emendar) com a vogal átona seguinte, formando a 7ª sílaba.
Os versos que possuem métrica mas não rima são chamados de versos brancos, enquanto aqueles que não se valem de nenhum dos dois se chamam versos livres.
Rima
Apesar de ser tipicamente reconhecida como paronomásia, as rimas merecem um tópico à parte. Elas são, via de regra, as semelhanças entre os sons que se encontram verticalmente no final dos versos. As rimas mais previsíveis (ar, ão, eira, osa, etc.) são menos prestigiadas, porque informam menos. Rimas menos prováveis informam mais, e por isso têm mais crédito. A rima também pode ocorrer dentro do próprio verbo, como faz Poe em O Corvo, ou ser incompleta (toante), quando só as vogais se assemelham, como no exemplo abaixo:
Pode ser magrela, pode ser retinta Porte de gazela, olho de leoa Ser muito versada e hábil com a língua Do tipo que domina idiomas Mas ela não samba (...) Já Reparô? – Adriana Calcanhotto
Os tipos de Pound
Ezra Pound define três tipos fundamentais de poema. São eles os que se sobrepõe a fanopeia, a melopeia ou a logopeia.
Na fanopeia… sobressaem as imagens, as comparações e metáforas.
Na melopeia… sobressai a musicalidade.
Na logopeia… as ideias são o principal, e por isso se aproxima mais da prosa.
No poema acima, de Leminski, qual das três correntes parece predominar? E no trecho a seguir, de Fernando Pessoa?
Não sou nada Nunca serei nada Não posso querer ser nada À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo (...) "Tabacaria" – Fernando Pessoa
Outros caminhos
O poema ao lado, de Anatol Knotek, além de brincar com os sentidos das palavras, se atreve também a pensar sua forma no papel. Ela não obedece a lógica linear comum dos poemas tradicionais, e trabalha em conjunto os significados dos signos (as palavras), o desbotamento da cor e o sumiço de certas letras, criando novas percepções.
O poema abaixo, de Antero de Alda, também não se permite ler pela lógica tradicional. Ele pressupõe seu “desenho” como parte indispensável da leitura, não podendo, por isso mesmo, se reduzir às palavras que o compõem. Veja você!
Também o poema O Pulsar, de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso, partilha desse jogo de sentidos que se dá por meio dos desenhos do próprio poema:
Para encerrar, deixo para vocês a sugestão de leitura que inspirou este post, o livro O que é comunicação poética, de Décio Pignatari. Outras leituras que podem inspirá-los também se encontram em ABC da Literatura, de Ezra Pound, Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, Linguística e Comunicação, de Jakobson, O Que é Poesia Marginal, de Glauco Matoso, e O Arco e a Lira, de Octavio Paz.