Miguel Spinelli abre seu artigo acerca de De rerum natura, de Lucrécio, com o questionamento da tradução do título. Segundo o autor, se a tradição tende a preferir “Da natureza das coisas”, fórmula mais apurada seria “Das coisas naturais”, o que, de fato, altera em muito o sentido atribuído, e se aplica melhor ao conteúdo do poema.
Em seguida, disserta sobre a abertura do livro, que contempla a invocação a Vênus, “Enéadas genitora”, e as apropriações do mito de Enéias derivado das narrativas da Ilíada de Homero. Eneida e De rerum natura, cujos autores, Virgílio e Lucrécio, são praticamente contemporâneos, denotam o mesmo ethos, tencionando unir o lendário e o real, assim como a herança grega ao berço romano, de acordo com Spinelli. Assim, ele explica, a figura de Vênus foi muito cultuada porque, sendo mãe de Enéias, era tida também como mãe de todos os romanos.
O poema de Lucrécio, no entanto, descreve em seu conjunto o ciclo das coisas naturais, desde a geração até a morte, dando início à tradição filosófica dos estudos da phýsis. Seguindo uma linha de pensamento epicurista, o poeta desloca a questão “o que é o ser?” para o pólo “o que é ou não natural do ser?”. Assim, em sua elucubração, ele defende que nada vem do nada, e tampouco retorna ao nada, sendo os processos de todas as coisas determinados pelo arranjo, desarranjo ou rearranjo dos átomos.
Spinelli disserta, então, quanto às fontes para o poema em questão. Duas delas são manuscritos conservados hoje na Universidade de Leyden, o Oblongus e o Quadratus, que tiveram como títulos De rerum natura, o primeiro, e De physica rerum origine vel effectu, o segundo. Além desses, há os códices chamados Itali, cópias feitas no século XV por Bracciolini, e que deram origem à tradição italiana dos estudos do poema.
O autor apresenta, depois, o que se poderia considerar, à primeira vista, um paradoxo da obra: a invocação de Vênus e a mensagem do livro, de que não há ou houve criação divina, sendo os átomos a origem de tudo. Sua lógica parte do pressuposto (já conhecido de Cícero) de que os deuses são desinteressados e impassíveis às questões humanas, e que em nada interferem.
Assim, se os deuses não se comovem das preces, por que invocar a Vênus logo ao início para frutificar as palavras e apartar as guerras? Dentre as razões apresentadas por Spinelli, existe Mêmio, a quem o poema é dedicado, cuja família cultuava a deusa, e a reverência aos romanos, que tinham Vênus em grande estatuto, por ser a “mãe” de seu povo.
Na perspectiva de Lucrécio, contudo, Vênus governava a natureza junto de Ver (a Primavera) e Ceres (deusa da colheita e da fertilidade), sendo, nesse sentido, a Alma Venus cultuada pelo poeta aquela responsável por promover, alimentar e nutrir a fertilização da vida. Era também ela a responsável, junto a Cupido e Primavera, por unir e festejar a fertilidade dos amantes, fazendo com que se encontrassem e se apaixonassem.
Desse modo, a Vênus de Lucrécio apresenta várias faces, dentre as quais as de musa, de mãe, de cupido, de Alma Venus e também de vulgívaga, que muito para além do arquétipo da meretriz, carrega a representação da mulher volúvel, inconstante e mutável. Todos esses predicados, por sua vez, fazem que sua síntese reapareça em uma palavra, de acordo com Spinelli: amor. Em suas muitas individualidades, esse amor poderia aparecer como amor calmo, altruísta, terno, mas também como o ardoroso e efervescente amor da paixão. (lembrando que Lucrécio, por seguir a linhagem epicurista, tende a pensar o amor-paixão como causador de mais dor que alegrias.)
Em conclusão, a figuração de Vênus retoma o ícone da fertilização da vida: eis a razão de ser uma deusa de todos os povos, mãe de todas as formas de amor.
SPINELLI, Miguel. Lucrécio E Virgílio As Várias Faces De Vênus: Musa, Genitora E Vulgívaga. Hypnos, São Paulo, n. 23, p.258-277, 2009.