Relação luzidia: sintonia dos versos de Waly Salomão e de Florbela Espanca

“Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo”
(Fado Tropical – Chico Buarque e Ruy Guerra)

Poetas que versam o versar, Florbela Espanca e Waly Salomão compuseram dois célebres poemas que conversam entre si num diálogo sobre o fazer poético, o sonho e sua dissolução na realidade: Vaidade e A fábrica do poema, cujas relações mais próximas tentaremos evidenciar.

I – O sonho

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Ambos os poemas destacam uma grave inquietação com a própria arte poética, refletindo acerca de sua condição de poemas imperfeitos pelo viés do desejo frustrado, que os submete à humanidade de seus poetas. Cada qual buscando a perfeição, Florbela e Waly partem do sonho para a criação, sonho que os leva à fantasia de totalizar a instância da poesia por meio de seus versos:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

(FLORBELA ESPANCA, Vaidade)

Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,
Tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras.

(WALY SALOMÃO, A fábrica do poema)

É interessante notar que, no poema de Waly Salomão, a preocupação é quase inteiramente voltada à “arquitetura ideal” do poema, que se desenvolva com perfeição e coerência, ao passo que os versos de Florbela expressam uma perceptível e maior inquietude com a posição que o próprio eu-poético deseja alçar, de “Poetisa eleita” como se pode observar ainda nos versos abaixo, do mesmo poema:

Sonho que sou Alguém cá neste mundo…
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

Nesse sentido, a poetisa portuguesa nos apresenta um desejo, ou vaidade, como o título nos anuncia, de alcançar um prestígio e uma habilidades sobre-humanas, cujos poemas pudessem “reunir num verso a imensidade” e preencher toda alma capaz de ler poesia, mesmo a mais “profunda e insatisfeita”, curvando a Terra aos seus pés com seu saber vasto e profundo.

Waly, por sua vez, parece estar mais preocupado com a estrutura da própria poesia que com a condição ou estatuto do poeta, este que não é o Poeta eleito, mas mero “perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras”, posição menor cuja insatisfação vem não de um problema de auto-imagem, mas de uma tentativa de captar um poema que escapa, como vemos a seguir, no segundo movimento de ambos os escritos em análise.

II – A ruína

Acordo.
E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.

Acordo.
O prédio, pedra e cal, esvoaça
Como um leve papel solto à mercê do vento
E evola-se, cinza de um corpo esvaído
De qualquer sentido.

Acordo,
E o poema-miragem se desfaz
Desconstruído como se nunca houvera sido.

Acordo!
Os olhos chumbados
Pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
Assim é que saio dos sucessivos sonos:
Vão-se os anéis de fumo de ópio
E ficam-se os dedos estarrecidos.

Sinédoques, catacreses,
Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
Sumidos no sorvedouro.
Não deve adiantar grande coisa
Permanecer à espreita no topo fantasma
Da torre de vigia.
Nem a simulação de se afundar no sono.
Nem dormir deveras.
Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou restaurá-la daqui do poema.)

Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará?

Chama atenção que no poema de Florbela a extensão do primeiro movimento – aquele que se configura no sonho do poema/poeta ideal – é muito maior que em A fábrica do poema, tendo três estrofes se medindo com apenas três versos do poeta baiano, enquanto o segundo movimento – a derrocada – ganha muito mais relevo neste que em Vaidade.

Waly narra o processo de acordar como aquele em que o poema-miragem, com todos os seus recursos líricos (sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros) somem no sorvedouro, desconstruindo-se como se nunca houvessem existido, deixando apenas apenas anéis de ópio e fumaça em dedos estarrecidos.

Enquanto isso, o acordar do eu-poético de Florbela não evoca a perda do poema como no caso anterior, mas a obriga a uma reimaginação de si que, frente ao sonho, a leva à queda e à descoberta da sua realidade, na qual não é nada:

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho… E não sou nada!…

Observamos, assim, que os dois poemas partilham de uma forte sintonia em suas temáticas, com nuances da relação entre o sonho, a realidade e o poeta ou o poema se apresentando pelo viés da desilusão. Vaidade e A fábrica do poema crescem no ambiente onírico que lhes oferece inspiração e qualidade poética, na busca pela totalização da poesia e de seu criador, mas perdem para a vigília que os priva dessa possibilidade.

Por isso mesmo, a metarreflexão nos dois casos constrói a salvaguarda pela qual o poeta e a poetisa indicam o contraponto entre a incapacidade de se arquitetar a totalização de um poema de inspiração perfeita, ou tornar-se o poeta capaz de fazê-lo, a as possibilidades concretas por meio das quais eles podem se realizar: tanto Vaidade como A fábrica do poema afirmam, portanto, não o entrave que impede a poesia, mas a matéria dos sonhos do poeta, e a sua solubilidade.

Para mais

Adriana Calcanhoto manteve um parceria longa com Waly Salomão, parceria esta que resultou algumas grandes obras da canção popular brasileira, como o próprio A Fábrica do Poema

Já o poema de Florbela Espanca é possível ouvir nesse link, pela voz de Rubens Caribé, em leitura feita no programa Café Filosófico.

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