Qual ler primeiro: Ilíada ou Odisseia?

Essa provavelmente é uma das perguntas que todo leitor dos clássicos já se fez ou fez para algum colega ou conhecido que já encarou a Ilíada e a Odisseia, ambas obras primas assinadas pelo grande poeta grego, Homero. O objetivo desse post é responder à questão de forma rápida e precisa, além de explicar, muito brevemente, do que se trata cada uma dessas narrativas épicas.

Por onde começar?

Bom, começo essa conversa dizendo que não existe uma “ordem necessária” para você iniciar a sua leitura: pode pegar tanto a Ilíada, quanto a Odisseia para ler; são clássicos que, mesmo comunicantes entre si, não se prendem um ao outro. Isso se dá de maneira que as narrativas funcionam de forma independente e, ainda que apresentem eventos diretamente relacionados, em vários momentos do texto são trazidas as informações necessárias à compreensão do leitor.

Pelo fator cronológico

I

Contudo, se você procura ler respeitando a cronologia da mitologia à qual pertencem essas duas histórias clássicas, comece pela Ilíada, história que aconteceu antes dos eventos cantados na Odisseia.

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Nessa narrativa, você vai acompanhar, ao longo de vinte e quatro cantos (ou capítulos, se preferir), os dramas vividos pelos gregos – aqueus, ageus ou argivos – e pelos teucros, ou troianos, que se enfrentam durante mais ou menos uma semana, no décimo ano da guerra que a Grécia levou até Troia.

No texto, tudo começa quando Aquiles, o herói mais notável de todo o exército grego, decide deixar a batalha contra os troianos, por conta de um grave desentendimento com Agamenão, anaxandrom, rei sobre os homens, senhor dos senhores. Essa intriga dos dois heróis é um gatilho que desencadeia tanto uma reviravolta no campo de batalha, com as derrotas sucessivas dos gregos, quanto uma viravolta entre os deuses do Olimpo, que participam ativamente da guerra, tomando o partido de uns ou de outros.

Você conhecerá guerreiros apaixonantes, como Heitor e Pátroclo, Diomédes e Odisseu, os dois Ajazes, enfim… mas não se enganem: na Ilíada, você não vai encontrar nenhum cavalo de madeira, nem a queda de Troia e muito menos vai saber como essa história acaba. Para isso, você vai precisar ler a Odisseia, ou as outras narrativas que contam sobre fragmentos diversos desse longo episódio do mundo grego (um desses textos, a título de curiosidade, é a Posthomerica, que ainda não tem tradução para o português e que conta os episódios subsequentes à Ilíada).

Mas vamos ao caso específico da Odisseia!

II

A Odisseia dá seguimento à narrativa da Ilíada, mas sua história nos leva para outros lugares, bem distantes de Troia: vamos dos cenários paradisíacos, conhecidos e enfrentados durante os dez anos de viagem pelos quais passou Odisseu; até a ilha de Ítaca, terra natal do herói que tem papel fundamental na guerra contra os troianos, sendo muito inteligente e engenhoso, inclusive abençoado pela deusa da estratégia, Atena. Na ilha de cenário árido e pedregoso, conheceremos Telêmaco, filho e herdeiro do guerreiro grego, que, junto de Penélope, sua mãe, espera ansioso pelo retorno do pai, Odisseu, que estava na guerra contra os troianos, mas demora mais do que devia em voltar.

A essa altura, inúmeros casos que não aparecem nem na Ilíada e nem na Odisseia já se desenrolaram: Aquiles já foi atingido por Páris no calcanhar; Troia já foi destruída; Eneas já partiu para novas terras; Agamenão já foi morto pelo amante de sua esposa, Clitemnestra, que foi morta por seu filho, Orestes, etc. etc. etc. Com isso, temos o drama da Odisseia centrado nos problemas enfrentados pela família de Odisseu e por ele próprio, nas muitas aventuras que o herói relata para Alcinoo – rei dos feáceos – sobre os deuses e as deusas, o Ciclope, os monstros marítimos e seus tantos fracassos na tentativa de voltar para casa.

É interessante observar como a Ilíada ocorre no tempo de apenas alguns dias, enquanto a Odisseia se estende por anos, o que marca também o estilo adotado nas duas obras, sendo a primeira uma narrativa linear e a segunda de estrutura cíclica. Além disso, se lida depois da Ilíada, as referências da Odisseia se tornam mais claras e prazerosas, pois, finalmente, descobrimos que fim levaram muitos dos heróis gregos que marcharam contra Troia, se encontraram ou não um fim trágico, na guerra ou fora dela.

A questão da leitura

Epero que, com isso, suas dúvidas estejam respondidas e que você já queira velejar por entre Cila, sereias e Calipso; ou guerrear ao lado de Odisseu, Diomédes, Aquiles e Heitor! Nós não prometemos que a viagem será tranquila, porém, com uma boa nau e conhecendo os ventos, qualquer trajeto pode ser cumprido, mesmo que, como o do nosso nobre herói Odisseu, isso demore mais de dez anos.

Sendo bem sincero e fugindo um pouco da pergunta principal, Ilíada e Odisseia são textos complexos, com uma tessitura narrativa densa, cheia de detalhes e pequenas conexões internas, escritas em verso, com vários traços sutis de uma cultura que chegou para nós às migalhas. Isso, muitas vezes, pode assustar os navegantes de primeira viagem. Mas, se você está decidido a encarar a tarefa árdua da leitura, aqui no Duras Letras nós temos um pequeno manual, que pode ajudar com os preparativos da sua embarcação.

Ele trata de uma edição específica dos cantos gregos de Homero, feita por Carlos Alberto Nunes, em uma tradução brilhante, que procura preservar o verso tradicional da língua de Homero. Essa edição dos dois livros foi publicada em box e lançada pela Nova Fronteira. Acrescento que, se for para começar de algum lugar, que seja por uma boa edição e uma boa tradução, pois essas histórias não merecem menos do que isso.

Como ler Homero: segredos por trás da Ilíada e da Odisseia

ÊIA, marinheiros! Têm vontade de começar uma leitura inesquecível por águas misteriosas ou terras distantes? Então você veio ao lugar certo! Abaixo eu separei algumas dicas – sem deixar de lado o bom humor – de como vocês podem começar a ler tanto a Ilíada bem como a Odisseia originais, textos de Homero, cantados alguns séculos antes de Cristo, na Grécia antiga.

Aos navegantes que preferem os manuais em outras mídias, nós fizemos uma síntese desta publicação em forma de vídeo, que pode ser acessada pelo Youtube. Além disso, se sua dúvida é sobre por onde você deve começar, oh, nobre navegante, então é melhor você tomar um outro barco, também aqui em nosso porto:

No mais, se você está certo de que quer seguir esta viagem em forma de texto, prepare-se para a aventura e vamos abordo nessas lições!

Preparando a nau

É comum que os navegantes de primeira viagem, em contato com a Ilíada ou com a Odisseia, enfrentem tormentas terríveis devido à complexidade das construções dos versos. Alguns dos navegantes naufragam, e abandonam a obra (para retomar mais tarde, talvez), mas outros seguem adiante, por mais difícil que seja, e não conseguem aproveitar a experiência por completo ao chegar ao fim da jornada.

Isso não vai acontecer com você, porque existem algumas formas de preparar melhor seu navio para velejar por essas águas misteriosas. Antes, no entanto, é bom lembrar que apesar de hoje serem obras divulgadas em papel e mídia digital, tanto a Ilíada quanto a Odisseia, em seus primórdios eram peças pertencentes à literatura oral, responsáveis por construir, entre outras coisas, um retrato cultural da sociedade grega daquele tempo. Isso quer dizer que quanto mais informações você tiver da cultura e mitologia gregas, mais pontos de reconhecimento aparecerão na hora da leitura.

Separe as provisões para a viagem

Se você já tem um repertório clássico construído, um bom primeiro passo para a leitura é começar por uma edição/tradução que não parta diretamente dos versos homéricos na forma original. As edições que comportam o estilo épico em romances e prosa são muito boas para um contato mais imediato com esses textos tão antigos.

Entre as minhas preferidas, estão a Odisseia, com apresentação de Ana Maria Machado e adaptação de Geraldine McCaughrean; e a Ilíada, em quadrinhos, adaptação feita por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, Andreza Caetano e Paulo Corrêa, com ilustrações de Piero Bagnariol. Mas existem muitas outras edições e com os níveis mais variados; as que estou indicando, tornam a experiência de leitura bem divertida, não só por terem imagens, mas por darem atenção especial às narrativas e brincarem um pouco com a forma clássica de escrita.

Mas o que seria essa forma clássica? Vamos descobrir no próximo tópico!

Coloque seu barco na água. Veja a maré

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Agora, que você já tem conhecimento das histórias de Homero e leu uma versão simplificada, pode partir para as traduções que têm como matriz os versos homéricos diretos do grego. É bom atentar para o fato de que, para a composição dos cantos clássicos, os gregos cantadores (aedos) desenvolveram várias técnicas (jogos e estruturas pré-elaboradas) que pudessem ser utilizados na composição das passagens cantadas.

O símile, as cenas típicas e os epítetos, somados à estrutura versificada em hexâmetro datílico, compõem o grupo de recursos aos quais os aedos lançam mão para incrementarem seu repertório.

Hexâmetro datílico

Analisemos, então, cada uma dessas técnicas citadas. Vou utilizar, para isso, o Canto XIX da Ilíada, com tradução de Carlos Alberto Nunes, tradutor que respeita a metrificação dos versos de Homero, que, como citado no parágrafo anterior, são escritos em hexâmetro datílico, verso que possui a estrutura breve-breve-longa ( – – u ).

Uma dica que facilita sua identificação é estabelecer um ritmo para cantá-lo
como faz Leonardo Antunes, neste vídeo:

Tendo isso feito, vamos à escanção do primeiro verso da Ilíada, que ilustra visualmente a métrica:

CAN – ta – me(a) – – le – ra(ó) – DEU – sa – fu – NES – ta – de(A) – QUI – les – pe – LI [da]

Todos os versos tanto da Ilíada como da Odisseia possuem essa estrutura, que contribui para a poeticidade e continuidade dos cantos, apesar de não interferirem diretamente no sentido da história, diferentemente dos outros elementos, que possuem um impacto direto na narrativa.

Içar velas! Remem!

Antes de entrarmos nesses outros elementos, façamos um breve resumo do que acontece no Canto XIX: Aquiles, após saber da morte de Pátroclo e ter em mãos seu cadáver, recebe de Tétis, sua mãe, uma nova armadura, que é vestida por ele para que pudesse guerrear. Em seguida, o grande herói volta para a batalha após uma reunião com os chefes gregos. No canto aparecem seis símiles, alguns objetos significantes, uma cena típica de vestimenta e vários epítetos que recheiam a fábula cantada; além disso, alguns traços da cultura grega, como a relação particular com a morte, também estão presentes.

Símile

Podemos caracterizá-lo como uma comparação feita, geralmente, entre um fenômeno e uma ação ou traço, e que não tem tamanho delimitado, podendo ser extenso ou frasal. Outro traço importante desse recurso é seu uso, que está atrelado à importância ou beleza do que é narrado. Por isso mesmo, o símile é muito importante e auxilia na caracterização das passagens:

Tal como chega no mar, até os nautas aflitos o brilho
que, da fogueira acendida no cimo de um monte, se espalha
em solitária paragem, enquanto nas ondas piscosas
a tempestade a afastarem-se os força dos caros parentes:
do mesmo modo até o éter atinge o esplendor que do escudo
belo de Aquiles se expande. […] (XIX, 375-380, Homero)

Nesse trecho, vemos a comparação entre o escudo de Aquiles e o brilho de um farol (uma fogueira em cima de um monte), o que realça ainda mais o guerreiro grego, que, como uma luz no fim do túnel, volta a guerrear contra os troianos, depois de tantos dias afastado.

Por fim, o símile também pode ter relação com uma fábula, conhecimento comum e frase informativa, o que faz com que obtenha em certas horas um caráter didático, ensinando costumes, tradições e histórias a partir de uma unidade menor.

Epítetos

Os epítetos (construções que acompanham um nome próprio) também possuem essa característica de serem elementos pequenos que carregam muitas qualidades. Para além de uma adjetivação qualquer, os epítetos são capazes de construir metáforas complexas, como no caso de “Atenas, a de olhos de coruja” ou carregar informações relevantes, como no caso de “Aquiles Pelida”, em que Pelida significa filho de Peleu.

Ring composition (‘composição em anéis’ ou ‘corrente’)

Como dito no breve resumo do canto, é nesse capítulo que Aquiles receberá a nova armadura, feita por Hefesto, de sua mãe, Tétis. Essa armadura, da qual um escudo é o item significativo, tem uma descrição que toma grande parte do Canto XVIII. A importância desse objeto de destaque está relacionada ao ring composition da obra, em que Aquiles enfrentará Heitor, que veste a antiga armadura daquele, e que não pode ser inferior à deste. Ambos são portadores de uma armadura única e de grande valor, a de Heitor usada outrora pelo Pelida, ou seja, a luta entre os dois personagens será uma luta espelhada, esta que acontece no Canto XXII, e completa o anel, quando Aquiles, ao matar Heitor, acaba por matar a si mesmo.

A cena típica ou tipificada

Geralmente, o aedo descreve sucintamente como é vestida a armadura, o que configura uma cena tipificada para tal gesto; além de vestir, pode ser também que o personagem esteja se despindo e, em qualquer uma das duas situações, cria um efeito cinematográfico para o evento narrado. No Canto XIX, os versos em que Aquiles coloca seu novo equipamento vão do 369 até o 399 e são utilizados símiles para melhor caracterizar a vestimenta.

Essas descrições são responsáveis por dar consistência a toda a obra, pois o narrado passa para um plano paralelo ao como é narrado. Tal característica, entretanto, não diminui a qualidade da história que está sendo contada se em relação com sua forma, haja vista a atenção que o aedo dá para a veracidade – as realidades – da guerra. Ainda neste canto, por exemplo, Odisseu orienta Aquiles e Agamenon a alimentarem o exército que há dias lutava na pugna sem descanso; a ideia de saciar-se para a batalha, para manter o vigor, dá um tom realístico para a cena e em muito a enriquece.

Sendo assim, pode-se dizer que a forma e o conteúdo entram em sintonia nas composições épicas de Homero. A técnica, aliada ao contexto, não aparece apenas no Canto XIX, utilizado como exemplo no parágrafo anterior, é um traço que perpassa toda a obra. Esse cotejo é justamente o responsável pelo encanto da narrativa, pois, se de um lado temos as construções estéticas de grande valor, do outro temos os ensinamentos de toda uma cultura que já não mais nos pertence, mas, apesar disso, entra em sintonia com a nossa.

De náufrago a capitão

Uma coisa que pode ajudá-lo nessa jornada por esses textos clássicos é viajar com uma frota! Não se acanhe! Monte sua tripulação: convide colegas; procure grupos de leitura coletiva; vídeos de explicação dos capítulos e das obras em geral; chame sua mãe, pai, avós, tios, primos, namorados ou irmãos para ouvi-lo, enquanto você lê as obras em voz alta. Enfim, compartilhe essa experiência! As trocas de impressão ajudam bastante a clarear o texto, e vocês poderão se emocionar juntos a cada novo oceano vencido.

No Youtube existem vários vídeos e até cursos inteiros sobre a Ilíada e sobre a Odisseia e eles são ótimos remos para a sua novíssima embarcação. Lembre-se: as obras homéricas são um Triângulo das Bermudas, ou seja, se você for sem conhecer aquelas águas corre grandes riscos de naufragar ou ser pego por monstros! Procure, então, um capitão experiente, que já fez o trajeto antes e que pode orientá-lo!

Entre os meus cursos favoritos está o de Fundamentos de Literatura Grega, do professor Rafael Silva, do departamento de Letras Clássicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Rafael, no vídeo abaixo, sobre a Ilíada, se atenta de forma mais aprofundada aos elementos citados neste texto e vai muito além em sua análise, trazendo referências do original em grego, explicando contextos e passagens, e fazendo pontes entre as obras de Homero e outras obras clássicas.

Terra à vista!

Espero que este texto sirva de motivação para você começar (ou retomar) sua jornada meio aos versos homéricos! Não precisa ter pressa na leitura; leia um canto por vez, pesquise se não estiver entendendo os pontos chave, e não se martirize com suas dificuldades, pois os textos são complexos apesar de prazerosos e, afinal de contas, nós precisamos começar de algum lugar e de alguma forma, mesmo que seja tropeçando ou naufragando.

Texto atualizado em 26/04/2023.

Elementos tipicamente homéricos: uma análise do canto XVIII da Ilíada

CANTO XVIII da Ilíada

A FEITURA DAS ARMAS

Resumo do canto: Aquiles, o Pelida, toma conhecimento, enfim, da morte do companheiro Pátroclo, com o que se desespera. Tétis, mãe do Peleio, vem consolá-lo, juntamente com todas as outras nereides do oceano, e lhe promete uma nova armadura, para que possa retornar ao combate. As maneiras de Aquiles espantam os Teucros, que fogem assustados com seu aspecto; por sua vez, os Aquivos lastimam a perda do amigo. Ao final, Tétis vai até a casa de Hefesto para pedir-lhe a nova armadura do filho; o deus se dispõe a fazê-la e o canto termina com uma descrição bela e minuciosa do escudo de Aquiles.

Um dos primeiros entre os elementos típicos da literatura homérica a ser reconhecido neste canto é o epíteto (cf. verso 18), que aparece no desígnio de Aquiles pelo nome de “Pelida”, que significa “filho de Peleu”, pois o sufixo -ida determina filiação (assim, Pelida = filho de Peleu, Tidida = filho de Tideu, Nestórida = filho de Nestor, Atrida = filho de Atreu, etc.) O epíteto é um recurso utilizado para evitar a repetição do nome próprio, mas também para atribuir qualidades aos personagens que os caracterizem, além de possibilitar ao aedo uma sonoridade e repetição que proveem conforto maior para a oralidade com que essa literatura era composta. Diversos epítetos estão presentes na obra de Homero, como Agamémnone, rei poderoso; Hera, de olhos bovinos; Febo Apolo; entre outros.

Outro elemento recorrente que está no canto XVIII é o catálogo, presente entre os versos 39 e 49, utilizado para evocar todas as nereides que cercam Tétis e se juntam a ela em seus lamentos pela morte de Pátroclo. Esse recurso utilizado pelo aedo se vale da enumeração de vários nomes, em sequência, muitas vezes acrescidos dos seus respectivos epítetos, como em “Cimódoce, a amiga das ondas” (cf. verso 39). O autor brasileiro João Guimarães Rosa também utiliza essa técnica para a composição de passagens de Grande Sertão Veredas, como ilustra a passagem abaixo, na qual o autor enumera os companheiros de Riobaldo:

Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, por todos, estes: Capixum – caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe; Fonfredo – que cantava todas as rezas de padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfredo, desse já lhe contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe, vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito “o Caridoso”, queria sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catocho, mulato claro – era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro minasnovense, com mania de aforrar dinheiro. O Diolo, preto de beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para que que eu fui querer começar a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto, José Amigo

Também está presente no canto XVIII o objeto significativo (cf. verso 82), que aparece com a perda da armadura de Aquiles para Heitor, sendo que se constituía não apenas num objeto utilitário ou de grandeza material, mas como um presente dos deuses para Peleu, como se pode ver em sua conversa com a mãe (cf. versos 81 e 85). A armadura, assim como o cetro de Agamémnone e a taça de Nestor, é um objeto significativo por ter forte ligação com os eternos e ser entre os mortais símbolo de grande valor.

Além desses, é possível identificar diversos símiles (cf. versos 161 a 164). Essa fórmula é usada pelo aedo para comparar elementos da natureza, muitas vezes animais ou formações como montanhas e mares, aos heróis da narrativa e seus feitos. No símile exemplificado, Heitor é comparado a um leão do qual os Ajazes, comparados por sua vez a pastores, tentam sem sucesso, repelir da presa – no caso, o cadáver de Pátroclo.

Mais à frente (cf. versos 343 a 353), há também a cena da limpeza do corpo de Pátroclo, que exemplifica a relação cultural dos Aqueus com seus mortos. A partir da cena, podemos observar a relevância que davam à prestação de honras ao morto, pela forma como o limpam, unguem, e passam a noite a lamentar sua morte ao redor de seu cadáver, numa demonstração forte de ternura e reverência pelo guerreiro e por seus feitos.

Posteriormente, quando se dá a descrição do escudo que Hefesto forja para o filho de Tétis, muitas características fundamentais da cultura dos Dânaos são ilustradas. Uma delas, de grande importância para aquela sociedade, era a dança, a qual aparece representada no escudo mais de uma vez (cf. versos 569 a 572 e versos 593 a 604), sendo um importante meio de união para o povo grego. Também neste último verso há menção à figura do aedo, o cantor das epopéias antigas ー no caso, o próprio Homero, referindo-se a si mesmo ー, que aparece no escudo cantando “ao som da cítara” (cf. verso 605) e é colocado, por seu epíteto, no patamar de divindade.

Assim, apenas no canto XVIII, podemos encontrar um número considerável de recursos da literatura homérica, como epíteto, catálogo, objeto significativo e símiles, além de fragmentos da cultura grega como a homenagem aos mortos e a importância que se dava à dança. Vários desses itens podem ser também encontrados em outros trechos da Ilíada e da Odisseia, e são até hoje utilizados por autores que retomam essa tradição nas suas construções literárias.

Referência:

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

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