Resenha – “Noites no Circo”, de Angela Carter

A contradição como fio-condutor

Apesar de ser uma escritora já consagrada no cenário literário de língua inglesa, Angela Carter não é tão conhecida no Brasil. Eu mesmo só tomei conhecimento de sua obra, porque minha companheira desenvolve atualmente uma pesquisa sobre o livro mais aclamado de Carter: A câmara sangrenta (Bloody Chamber, 1979), que saiu nos últimos anos em uma das edições da TAG – Experiências Literárias. Por esse motivo, é bem provável que você nunca tenha ouvido falar de Carter e muito menos de Noites no circo (Nights at the Circus), escrito por ela em 1984, um livro feminista de segunda onda e de estilo bastante fragmentado. Assim, com essa resenha, eu espero contribuir para diminuir essa falta que a autora faz nas prateleiras nacionais.

Ah, o circo! E que circo!!

Capa da primeira edição do livro.

Fazer uma síntese da narrativa é bem difícil, já que ela tem incontáveis deslocamentos, temporais, narrativos e espaciais. Mesmo assim, vou arriscar um resumo, pelo menos para dar um dimensão do que se trata.

Noites no circo conta a história de vida, as peregrinações e as inúmeras transformações de uma mulher-pássaro e trapezista chamada Sophie, de nome artístico Fevvers, que – acompanhada de ora irmã, ora mãe adotiva e ora cúmplice de crime, Lizzie, e de outros muitos personagens extravagantes – compõe o Circo do Coronel Kearney. Sendo a atração principal desse show exótico, Fevvers, a gigante com asas, conquista todos os jornais do último ano do século XIX, época em que a história se passa. E é justamente por conta dessa enorme midiatização e mitificação da imagem de Fevvers que o circo de Kearney desperta o interesse de um jovem jornalista estadunidense, de nome Jack Walser, disposto a atravessar o oceano, até a Inglaterra, só para fazer uma longa entrevista com a ídolo do circo, com o objetivo de responder a pergunta: você é de verdade ou você é uma farsa?

Essa tensão entre o real e o imaginário, jamais respondida, é o fio condutor da narrativa. É ela que leva Walser ao camarim de Fevvers para a entrevista e a se apaixonar pela atriz entrevistada. Leva Walser também a entrar no circo atrás de Fevvers, e a entreter uma plateia de São Petersburgo como palhaço. Leva ele, por fim, a se perder no deserto glacial da Sibéria, onde é capturado por um grupo de nativos e transformado em uma espécie de xamã. Mas a tensão também serve como síntese para as contradições de Sophie/Fevvers, que, vivendo uma vida paralela à de Walser, mas também totalmente de cabeça para baixo, é prostituta e é virgem, é mulher e é pássaro, é interesseira e é apaixonada, é violenta e é meiga, é gigante e é pequena, é loira e é morena, que voa e que não voa.

Bem, poderia dizer que constituíamos um microcosmo da humanidade, que éramos um conjunto simbólico, cada um significando uma proposição diferente no grande silogismo da vida. Os acasos da viagem nos reduziram a um pequeno grupo de peregrinos abandonados na imensidão deserta sobre os quais a imensidão deserta atuou como uma lente de aumento moral, exagerando os defeitos de uns e ressaltando as melhores características daqueles que pensávamos serem desprovidos delas. Aqueles dentre nós que aprenderam as lições da experiência já terminaram a sua viagem. Os que nunca aprenderão estão voltando aos trambolhões para a civilização o mais depressa que podem e tão bem-aventuradamente ignorantes quanto eram. Mas, quanto a você, Sophie, parece ter adotado o lema: viajar com esperança é melhor do que chegar.

Viajar com esperança de chegar

É… é a esperança o que nos leva adiante na leitura. Porque, sinceramente, é preciso ser persistente, ter fôlego, pois a sensação da obra vai de divertida, a vertiginosa, a confusa. O estilo pós-moderno da autora não segue uma estrutura tradicional e linear. Não que seja difícil, mas o caráter fragmentário faz do livro uma grande roda gigante: nos vemos diante de eventos incríveis, com narradores singulares, que nos fazem não querer largar o livro nem por um minuto – mas esses episódios se intercalam com longas divagações filosóficas, com metáforas e simbolismos malucos e de difícil entendimento, e com partes arrastadas, que parecem nunca mais acabar.

Capa da edição brasileira

De todo modo, o livro tem uma pretensão muito adequada à época em que foi escrito e à ideologia social e política da autora. No interior de uma narrativa impressionante e de uma linguagem cheia de altos e baixos, Angela Carter dilui várias ideias das correntes feministas da época, problematizando questões como o male gaze (olhar masculino objetificante), o estereótipo de gênero e a desigualdade entre mulheres e homens quanto a direitos trabalhistas. É claro que, em leituras mais contemporâneas, muitos dos pontos levantados por Carter vão parecer um pouco fora do lugar, mas ainda assim Noites no circo continua sendo uma boa literatura feminista.

Agora, o fato de ser um livro feminista não deve ser entendido como um impeditivo para você, caro leitor, não se sentir convidado à leitura. Muito pelo contrário, estar tão intensamente atravessado pelo discurso feminista de segunda onda só faz com que seja ainda mais interessante a história de Fevvers, por mais que Carter a desloque no tempo, situando os acontecimentos no século dezenove.

Mas tenho uma péssima notícia para as leitoras e leitores que se interessaram: infelizmente, a edição brasileira de Noites no circo, publicada em 1991, pela editora Rocco, está fora de catálogo há um tempo e nunca ganhou reimpressão ou reedição. O jeito é procurar a obra em alguma biblioteca ou correr na Estante Virtual, para ver se salva algum exemplar perdido em algum sebo.

Antes de encerrar a resenha, queria fazer um convite. Se você ficou com curiosidade sobre a escrita de Angela Carter, nós temos uma publicação aqui no blog que pode te ajudar. Trata-se de um pequeno conto da autora, inspirado pela história da Branca de Neve, que está entre as narrativas de A câmara sangrenta. Ainda que seja bem diferente de Noites no circo, esse conto consegue dar uma dimensão da qualidade literária da escritora inglesa.

6 romances essenciais da Literatura Brasileira

Aposto que, quando abriu este post, você já foi logo se adiantando:

– Devem ter colocado Dom Casmurro, Grande Sertão: veredas, Vidas Secas, Fogo morto, Um copo de cólera, Dois irmãos ou, sei lá, Iracema.

É claro que essas obras, graças ao fantástico domínio da linguagem, pela extrema importância e diálogo com nossa história e também por conta das narrativas apaixonantes que nos apresentam, frequentemente recebem lugar de destaque em qualquer lista de clássicos da literatura nacional e, de vez em quando, até internacional.

Contudo, se você veio apenas para confirmar suas suspeitas, procurando essa boa e velha lista de livros canônicos, não vai encontrá-la por aqui!

Na verdade, os livros que compõem a listagem que montamos a seguir também estão entre as GRANDES obras da literatura brasileira, tão brilhantes quanto as que foram supracitadas. Só que, diferente daquelas, essas outras guardam dois traços que as diferenciam: o primeiro é que não aparecerem com frequência em catálogos de indicação literária; em segundo lugar, são todas obras escritas por ESCRITORAS, características que tornam essa lista duas vezes mais instigante.

Vamos conferir?!

1) Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Começamos por Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, obra que conta a história de uma jovem que dá nome ao livro e que deseja viver livremente uma aventura de amor com Tancredo. Mas, ligados à uma sociedade marcada pelo atraso da escravidão e do patriarco, eles são impedidos de realizar essa união.

Pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.

Colocada à margem da literatura nacional de seu tempo por ser mulher e por ser negra, Maria Firmina dos Reis demonstra um grande interesse pelas questões ligadas à sociedade colonial brasileira, utilizando-se da forma literária para desconstruir os paradigmas de sua época, sustentada por uma estrutura falida, de uma realidade em constante, mas lenta, transformação.

É impressionante saber também como os problemas confrontados pela autora não se restringem apenas ao ambiente em que se passam suas história: alguns estudos demonstram que, por não estar alinhada com a temática nacionalista dos romantistas contemporâneos à ela, Maria Firmina foi constantemente silenciada, ficando a cargo de estudos mais recentes recolocá-la em sua merecida cadeira dentro do cânone nacional.

2) Parque Industrial, de Patrícia Galvão (Pagu)

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O segundo romance foi publicado por intermédio de Oswald de Andrade e sob o pseudônimo de Maria Lobo: Parque Industrial, de Pagu, tido como um dos primeiros romances proletários do Brasil. Nele, a autora reflete a condição dos operários da nova sociedade industrial paulista, das décadas de 1920 e 1930, colocando no centro do debate temas ligados ao amor, ao sexo e ao capital, e como os desejos das personagens são afetados pela realidade industrial precária.

Diferente da tradição corrente de sua época, que debatia principalmente os regionalismos brasileiros (com a aparição das principais obras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e outros), Pagu preservou bastante da veia modernista paulista e manteve a capital financeira do Brasil no centro da discussão literária e social nacional.

É uma leitura bem fluida que reafirma a importância do debate sobre classes sociais no Brasil, isso sem deixar de lado o estilo autêntico e forte da escritora paulista.

3) Água funda, de Ruth Guimarães

A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada.

Agora, vamos para o primeiro romance de Ruth Guimarães, publicado no mesmo ano de Sagarana, de Guimarães Rosa, 1949. Diferente da obra do autor mineiro, Água funda não traz um léxico inventado a partir da plasticidade do falar interiorano; na verdade, Ruth faz uma reconstrução etnográfica minuciosa da língua portuguesa falada na região em que se passa a história: no sul de Minas Gerais, na fazenda Olhos D’água.

Em uma narrativa que embaralha o tempo e as personagens, indo do período escravocrata até os anos 1930, o leitor percorre a história de Mãe de Ouro, Sinhá, Joca e outros personagens, todos eles marcados por discursos marginalizados pela História, como narrativas tradicionais, ditados e superstições populares.

4) Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles

Esta obra de Lygia Fagundes Telles é um pouco mais conhecida que suas antecessoras. Teve duas adaptações para a televisão, feitas pela Rede Globo, a primeira de 1981 e a segunda de 2018. É um dos livros mais emblemáticos e conhecidos de Lygia Fagundes Telles, no qual a autora explora temas sensíveis, em uma sociedade patriarcal e preconceituosa em vários sentidos.

No livro, o leitor acompanha duas facetas de Virgínia: a primeira, a de uma criança de infância difícil, de pais separados, e que não consegue se encaixar no grupo dos seus amigos Letícia, Afonso, Conrado, Otávia e Bruna, que, como os anões no jardim da casa de Natércio, não deixam espaço para que ela entre na roda, na ciranda. A segunda face é de uma Virgínia adulta e amadurecida, que, após passar por um colégio de freiras, retorna para a casa de Natércio e começa a descobrir que todo aquele mundo completo que não deixava espaço para ela tem lá seus graves problemas e contradições.

5) Quarto de Despejo, de Maria Carolina de Jesus

Quarto de Despejo é o típico livro que dispensa apresentações, pois possui uma circulação e influência no universo literário brasileiro que o coloca ao lado de clássicos como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. O livro de Maria Carolina de Jesus é um reprodução de seus diários, em que são narrados eventos de uma odisseia cotidiana das comunidades pobres de São Paulo, de maneira crua e precisa.

O relato, habitado pela relação entre o ficcional e o concreto, nos apresenta as angústias de uma vida marcada pela dor, pela fome e pelas transformações agressivas feitas nas favelas naquele momento. Além disso, o estilo diarístico e confessional de Carolina de Jesus fez o livro flutuar entre as mais diversas categorias literárias: indo da literatura de testemunho até a literatura das vozes subalternizadas.

6) Rakushisha, de Adriana Lisboa

Para terminar, elenco aqui um romance contemporâneo, escrito por Adriana Lisboa – autora que vem ganhando cada vez mais destaque na cena literária nacional e que se nos apresenta como uma leitora atenta das tradições literárias nacionais e internacionais – uma forte candidata ao cânone brasileiro.

Em Rakushisha, observamos o desenrolar da história de Haruki, desenhista carioca e descendente de japoneses, que, ao ser convidado por sua ex-parceira para ilustrar um livro de poemas do haicaista Matsuo Bashô, se vê obrigado a visitar o país pelo qual nunca se interessou, mas a que sempre esteve ligado: o Japão. Mas, talvez receoso em seguir sozinho nessa viagem, ele convidou subitamente a estranha Celina para acompanhá-lo, depois de se encontrarem pela primeira vez em um metrô qualquer, de um dia como qualquer outro.

A autora a partir disso nos conduz através da jornada dos dois personagens em terra estrangeira, recheando a narrativa com uma linguagem de lirismo agudo e preciso, na qual as vozes se embaralham e variam entre os protagonistas, que contracenam inclusive com o próprio poeta japonês Bashô.

Nesta noite
ninguém pode
deitar-se: lua cheia.

A presença desse livro nessa lista é também uma provocação, sendo ele um livro do novo milênio, ainda não entendido pela crítica como clássico da literatura brasileira. De toda forma, sua narrativa e linguagem tocam questões que sempre estiveram presentes em nosso universo literário, como a identidade nacional e o que a constitui; além disso, ele nos ajuda a entender questões de nosso próprio tempo – a solidão, a perda, a depressão –, sem deixar de lado uma qualidade própria aos clássicos da literatura.

Miso no oto

Com isso, terminamos nossa pequena lista, sabendo, é claro, que muitas autoras maravilhosas, também canônicas, ficaram de fora. Poderíamos acrescentar, por exemplo, Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Hilda Hilst, Maria Valéria Rezende, Ana Maria Gonçalves… nomes que não apareceram, mas que facilmente poderiam ser colocadas. Quem você acha que faltou?

Perdoadas as faltas, esperamos que a intenção principal deste post tenha se cumprido: conseguimos cutucar um pouco essa tradição tão difundida, de colocar apenas os escritores, e frequentemente os mesmos, nas listas de grandes romances da literatura brasileira?

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