Foi apenas recentemente que terminei de ler A mulher ruiva (2010), de Ohran Pamuk, uma reescritura contemporânea de tragédias envolvendo pais e filhos, na esteira aberta por Édipo Rei, Hamlet e Os irmãos Karamazov. Este livro – literatura estrangeira em duplo sentido, por ser de fora do Brasil, mas também por estar ligado a uma tradição literária que chega apenas aos pedaços no mercado editorial brasileiro – é encantador e nos amarra à sua trama desde o momento em que o protagonista Cem Çelik conta que seu pai fugiu para viver suas aspirações revolucionários, deixando para trás sua esposa e seu jovem (e indignado) filho.
Mas, como o título da publicação sugere, não é a obra de Pamuk que quero comentar aqui. Mesmo assim, se você ficou interessado em conhecer mais sobre A mulher ruiva, pode acessar a resenha do livro, escrita pela Isadora Urbano, aqui no Duras Letras:
Vamos do início. As coisas começaram com A mulher ruiva, história de abandono e violência, que me conduziu até o Shahnameh ou a Épica dos Reis, de Ferdusi, livro que, para a surpresa de um total de zero pessoas, não tem uma edição integral em português, feita e distribuída no Brasil, apesar de ter sido escrito há mais de quatrocentos anos. Bem, eu comprei, por deslize (ou por impulso), uma edição em espanhol do Shahnameh, que faz uma adaptação da forma original, transformando os mais de cinquenta mil versos dísticos de Ferdusi em uma longa e precisa narrativa: fluida e muito impressionante.
Grosso modo, no Shahnameh, o clássico poeta iraniano conta a história mitológica do Irã, desde a criação do primeiro homem, até a conquista do território pelos mulçumanos. Mas, pelo que me pareceu do pouco que li, a cereja do bolo nessa grande narrativa são os episódios que envolvem o herói Rostã (ou Rostam, ou Rostem), cujo epíteto “Pehliva” sugere ser um guerreiro do porte de Odisseu, Aquiles e Gilgamesh.
Agora, orientado pelo olhar de Ohran Pamuk e seu Cem Çelik, a semelhança (ou diferença?) que mais me chamou a atenção foi com o famigerado e trágico Édipo, herói grego condenado pelo destino a matar o próprio pai e a se casar com a mãe. Rostã, nesse caso, é uma espécie de anti-Édipo, porque quiseram – o destino, os reis da Turquia e do Irã e sua ganância – que matasse seu filho, sem saber sua identidade, durante um combate de mais de dois dias. É esta a história do único capítulo que li do Shahnameh até agora: Rostam e Sohrab, da qual deixo também um trecho recriado (sem compromisso) da cena final da luta dos dois, na qual se consuma o destino terrível de Sohrab.
Quando Sohrab, outra vez, alcançou o pai
correu contra ele como louco elefante;
Rostã, já diante do monstro destemido,
pela primeira vez o medo conheceu
e, outra vez, a deus, como em dia passado,
pediu que superasse ao leão com a força.
E Ormuzd atendeu a prece de Rostã!
Munido da força que o deus do Irã lhe deu,
Rostã que Sohrab seus medos percebesse
não permitiu, e ele com todo o poder,
a oferta de Ormuzd para aquela luta,
recebeu na disputa o terrível rival
que por mais que desferisse bravos ataques
o herói de destaque não fez hesitar.
Rostã abraçou Sohrab pela cintura
e o atirou no chão com sua força absurda
e rompeu suas costas como simples graveto
e sacou sua espada e furou-lhe o corpo forte.
Então, Sohrab conheceu seu próprio fim
e assim suspirou e agonizou na terra
antes de dizer a Rostã toda a verdade
de quem Sohrab era, e o sangue de quem era.
Se mudássemos um pouquinho, trocando Sohrab por Édipo e Rostã por Laio, essa cena poderia ser uma inversão daquela que aconteceu entre o pai e o filho na tragédia grega, quando se encontraram em uma estrada, e o filho matou o pai. Sim… e daí? E se a troca fosse outra, e se fosse o pai quem matasse o filho, Laio quem matasse Édipo?
Talvez, apenas talvez, em certa altura de sua miséria familiar, depois de descobrir a verdade sobre a morte de seu pai e antigo rei de Tebas, Édipo tenha se perguntado: mas o que aconteceria se ele, Laio, ele, meu pai, tivesse me matado naquela luta? Será que tudo estaria bem? Como não foi o que aconteceu, podemos apenas fazer coro a essa questão fictícia e especular em cima dela. Talvez Tebas saísse imediatamente da desgraça e a esfinge voasse para outras terras; talvez Laio e Jocasta, mãe e esposa de Édipo, ficassem bem e não sofressem tanto quanto Rostã e Tahmineh, mãe de Sohrab, sofreram a perda de seu filho. (Afinal, diferente deles, os nobres de Tebas tinham para si que, se não matassem o pequeno Édipo, ele acabaria por matar o pai e se casar com a mãe – o que de fato aconteceu –, como sentenciou o oráculo.)
É difícil imaginar. Rostã não arrancou os olhos da face, não chegou a ser tão dramático, mas amaldiçoou seu próprio nome, se recusou a voltar a ser feliz, pôs fogo em seus espólios de guerra, em sua tenda, em sua sela e em suas armas; Tahmineh, como Jocasta, enlouqueceu e não demorou a se encontrar com o filho no mundo dos mortos. Fora da tragédia, talvez pudéssemos pensar em um Complexo de Rostã, se Sigmund Freud tivesse lido primeiro a tragédia iraniana, no qual, para compensar o desejo de matar o pai e se casar com a mãe, o sujeito abandona a mulher e mata o filho. (Bárbaro não?!)
Brincadeiras e especulações à parte, o que parece aproximar com mais força o caso de Édipo ao de Rostã é o sofrimento que ambos sentiram ao descobrir o que fizeram com seus parentes, a mesma autocondenação do ato parricida e filicida, respectivamente. Não sei se porque minha leitura da tragédia de Édipo está vencida, mas me senti muito mais comovido com a história de Sohrab e Rostã do que com a peça de Sófocles. Por isso mesmo, encerro esta publicação com a sugestão de leitura, e deixo abaixo duas edições integrais do texto de Ferdusi.