Resenha – “Anos de Chumbo e Outros Contos”, de Chico Buarque de Hollanda

Chico Buarque de Hollanda é o típico caso de artista que não precisa fazer qualquer esforço para estar entre os mais vendidos e lidos na semana de sua publicação, seja com um novo disco ou mesmo com sua prosa. Recentemente, vimos o fenômeno se repetir, quando o autor carioca lançou pela Companhia da Letras uma coletânea de contos, que recebeu o instigante título de Anos de Chumbo e Outros Contos (2021), livro cuja resenha você encontra a seguir.

Do chumbo antigo ao chumbo novo

Parentes descontrolados, violentos e abusadores; crianças perversas e em situação familiar de desamparo e negligência; moradores de rua delirantes, apaixonados por tempos idos e inalcançáveis; e relacionamentos desencontrados. Composto por oito narrativas curtas e a princípio sem relação, Anos de chumbo e Outros Contos joga luz sobre um Rio de Janeiro marcado pela violência da milícia, pela corrupção e pelas ambições e frustrações amorosas e familiares, não deixando de lado, é claro, uma boa dose da comicidade – própria ao cotidiano ordinário – e também de melancolia, adequada a um senhor que viveu para ver o Brasil frustrar suas expectativas no que diz respeito à elaboração dos traumas históricos nacionais. (E que, pelo contrário, aparenta dar continuidade a esses traumas.)

O nome Anos de Chumbo sugere imediatamente uma relação com a realidade repressiva de boa parte do governo imposto pela Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985). Entretanto, na realidade pintada pelo escritor, a repressão que outrora fora exercida pelo governo militar aparece diluída e penetra todas as esferas da vida privada, na qual as decisões passam a ser tomadas muitas vezes a partir de pontos de vista egoístas e simplistas, nos quais o outro sempre aparece ou como aliado ou como inimigo definitivo do “Estado” – e aqui as palavras de Luiz XIV reverberam nas atitudes: L’état c’est moi ou, em bom português, “O estado sou eu”.

Essa escolha por “Anos de Chumbo” – título do conto-vitrine da coletânea – ostenta mais uma intenção editorial e mercadológica do que inteligência literária, uma vez que apenas o conto título traz como cenário os tempos sombrios da década de 1970, dialogando diretamente com o problema histórico nacional, ainda latente. Com toda certeza, entre os títulos que compõem o livro, é “Anos de Chumbo” o mais chamativo deles, além de possibilitar um deslocamento muito significativo, no qual a porta para o mundo contemporâneo é aberta com uma chave que também leva aos anos exílio, censura e perseguição por parte de um Estado opressor e assumidamente militarista.

A pobreza na escrita, a relevância da história

Ainda que Chico faça em Anos de chumbo e e Outros Contos uma releitura de temas caros à “alta” literatura brasileira – como a disputa de classes, o ciúme e a paixão cega, por exemplo –, esse novo trabalho me causou a mesma impressão que tenho de outras obras do autor: são boas histórias, mas não trazem consigo muito brilho próprio. Para começar, mesmo se valendo de um vocabulário invejável, achei o uso da linguagem pouco inventivo, caindo muitas vezes em descrições excessivas e desnecessárias, que parecem querer reforçar a atualidade do cotidiano dos contos, mas acabam sendo uma tentativa de perfumar a flor: máscaras de Covid, carros chiques, mesas de plástico, aeroportos etc. não espantam tanto a essa altura do século XXI quanto o autor parece supor e enfatizar. Outro ponto que me incomodou foi a construção dos personagens, que, de modo geral, não têm complexidade, cumprindo papeis que mais se parecem com tipos (na maioria esmagadora, violões, no caso dos homens, e cúmplices tolas, no caso das mulheres) do que de fato com sujeitos em si. Esse traço talvez não se aplique apenas aos narradores, que, contudo, por mais que os contos se diversifiquem, são parecidíssimos, independendo de sua idade e realidade social.

Dois dos oito contos: “O sítio” e “Cida”, para mim, são verdadeiras joias, por justamente escaparem ou pelo menos margearem os problemas que coloquei no parágrafo anterior. De todo modo, entre problemas e soluções, no fim, não acredito que a falta de capricho quanto a algumas das propriedades literárias diminua a importância do livro enquanto conjunto, ainda mais levando em conta que a obra dá continuidade a um movimento de Chico Buarque de trabalhar com temáticas mais contemporâneas (e principalmente a crise política). A obra, como coletânea, procura nos apresentar algumas das consequências da falta de elaboração do trauma histórico, e nisso ela é muito feliz, dá conta do recado, e faz a leitura não só valer a pena, como também ser necessária.

Antes de partir, queria fazer um convite a você, que tem interesse tanto pela obra de Chico Buarque, quanto pela vereda da literatura de testemunho, e principalmente aquela que trabalha com o obscuro período da Ditadura Civil-Militar brasileira. Aqui no Duras Letras, nós disponibilizamos um texto do pesquisador Alexandre Fonseca, no qual ele faz justamente uma exposição de como a literatura nacional contemporânea tem trabalhado com a(s) memória(s) da ditadura militar, publicação que traz, ainda, uma lista de indicações de leitura sobre/para o tema.

Ficou interessado? Então acesse a publicação!

Resenha – “Noites no Circo”, de Angela Carter

A contradição como fio-condutor

Apesar de ser uma escritora já consagrada no cenário literário de língua inglesa, Angela Carter não é tão conhecida no Brasil. Eu mesmo só tomei conhecimento de sua obra, porque minha companheira desenvolve atualmente uma pesquisa sobre o livro mais aclamado de Carter: A câmara sangrenta (Bloody Chamber, 1979), que saiu nos últimos anos em uma das edições da TAG – Experiências Literárias. Por esse motivo, é bem provável que você nunca tenha ouvido falar de Carter e muito menos de Noites no circo (Nights at the Circus), escrito por ela em 1984, um livro feminista de segunda onda e de estilo bastante fragmentado. Assim, com essa resenha, eu espero contribuir para diminuir essa falta que a autora faz nas prateleiras nacionais.

Ah, o circo! E que circo!!

Capa da primeira edição do livro.

Fazer uma síntese da narrativa é bem difícil, já que ela tem incontáveis deslocamentos, temporais, narrativos e espaciais. Mesmo assim, vou arriscar um resumo, pelo menos para dar um dimensão do que se trata.

Noites no circo conta a história de vida, as peregrinações e as inúmeras transformações de uma mulher-pássaro e trapezista chamada Sophie, de nome artístico Fevvers, que – acompanhada de ora irmã, ora mãe adotiva e ora cúmplice de crime, Lizzie, e de outros muitos personagens extravagantes – compõe o Circo do Coronel Kearney. Sendo a atração principal desse show exótico, Fevvers, a gigante com asas, conquista todos os jornais do último ano do século XIX, época em que a história se passa. E é justamente por conta dessa enorme midiatização e mitificação da imagem de Fevvers que o circo de Kearney desperta o interesse de um jovem jornalista estadunidense, de nome Jack Walser, disposto a atravessar o oceano, até a Inglaterra, só para fazer uma longa entrevista com a ídolo do circo, com o objetivo de responder a pergunta: você é de verdade ou você é uma farsa?

Essa tensão entre o real e o imaginário, jamais respondida, é o fio condutor da narrativa. É ela que leva Walser ao camarim de Fevvers para a entrevista e a se apaixonar pela atriz entrevistada. Leva Walser também a entrar no circo atrás de Fevvers, e a entreter uma plateia de São Petersburgo como palhaço. Leva ele, por fim, a se perder no deserto glacial da Sibéria, onde é capturado por um grupo de nativos e transformado em uma espécie de xamã. Mas a tensão também serve como síntese para as contradições de Sophie/Fevvers, que, vivendo uma vida paralela à de Walser, mas também totalmente de cabeça para baixo, é prostituta e é virgem, é mulher e é pássaro, é interesseira e é apaixonada, é violenta e é meiga, é gigante e é pequena, é loira e é morena, que voa e que não voa.

Bem, poderia dizer que constituíamos um microcosmo da humanidade, que éramos um conjunto simbólico, cada um significando uma proposição diferente no grande silogismo da vida. Os acasos da viagem nos reduziram a um pequeno grupo de peregrinos abandonados na imensidão deserta sobre os quais a imensidão deserta atuou como uma lente de aumento moral, exagerando os defeitos de uns e ressaltando as melhores características daqueles que pensávamos serem desprovidos delas. Aqueles dentre nós que aprenderam as lições da experiência já terminaram a sua viagem. Os que nunca aprenderão estão voltando aos trambolhões para a civilização o mais depressa que podem e tão bem-aventuradamente ignorantes quanto eram. Mas, quanto a você, Sophie, parece ter adotado o lema: viajar com esperança é melhor do que chegar.

Viajar com esperança de chegar

É… é a esperança o que nos leva adiante na leitura. Porque, sinceramente, é preciso ser persistente, ter fôlego, pois a sensação da obra vai de divertida, a vertiginosa, a confusa. O estilo pós-moderno da autora não segue uma estrutura tradicional e linear. Não que seja difícil, mas o caráter fragmentário faz do livro uma grande roda gigante: nos vemos diante de eventos incríveis, com narradores singulares, que nos fazem não querer largar o livro nem por um minuto – mas esses episódios se intercalam com longas divagações filosóficas, com metáforas e simbolismos malucos e de difícil entendimento, e com partes arrastadas, que parecem nunca mais acabar.

Capa da edição brasileira

De todo modo, o livro tem uma pretensão muito adequada à época em que foi escrito e à ideologia social e política da autora. No interior de uma narrativa impressionante e de uma linguagem cheia de altos e baixos, Angela Carter dilui várias ideias das correntes feministas da época, problematizando questões como o male gaze (olhar masculino objetificante), o estereótipo de gênero e a desigualdade entre mulheres e homens quanto a direitos trabalhistas. É claro que, em leituras mais contemporâneas, muitos dos pontos levantados por Carter vão parecer um pouco fora do lugar, mas ainda assim Noites no circo continua sendo uma boa literatura feminista.

Agora, o fato de ser um livro feminista não deve ser entendido como um impeditivo para você, caro leitor, não se sentir convidado à leitura. Muito pelo contrário, estar tão intensamente atravessado pelo discurso feminista de segunda onda só faz com que seja ainda mais interessante a história de Fevvers, por mais que Carter a desloque no tempo, situando os acontecimentos no século dezenove.

Mas tenho uma péssima notícia para as leitoras e leitores que se interessaram: infelizmente, a edição brasileira de Noites no circo, publicada em 1991, pela editora Rocco, está fora de catálogo há um tempo e nunca ganhou reimpressão ou reedição. O jeito é procurar a obra em alguma biblioteca ou correr na Estante Virtual, para ver se salva algum exemplar perdido em algum sebo.

Antes de encerrar a resenha, queria fazer um convite. Se você ficou com curiosidade sobre a escrita de Angela Carter, nós temos uma publicação aqui no blog que pode te ajudar. Trata-se de um pequeno conto da autora, inspirado pela história da Branca de Neve, que está entre as narrativas de A câmara sangrenta. Ainda que seja bem diferente de Noites no circo, esse conto consegue dar uma dimensão da qualidade literária da escritora inglesa.

“Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena

Três de Maio de 1808 em Madrid – Francisco Goya (1746-1828). Museu do Prado.
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya - de Jorge de Sena

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juizo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Foi apenas no ano de 2020 que comecei a “ler de verdade” o gênero poesia, quando, por acaso do mestrado, participei de duas disciplinas que se propunham a estudar (teoricamente) poemas da língua portuguesa. Não que antes disso eu lesse “de mentira”, mas a questão é que, por hábito, formação ou simples desinteresse, eu só lia da poesia o que já conhecia ou, pior, só aquilo que pulasse no meu colo e implorasse por minha atenção. Enfim, o poema acima – Carta aos meus filhos sobre o fuzilamento de Goya – estava entre os apresentados em uma das disciplinas e, tendo lido tantas e tantas vezes, e encarado a tela de Goya que inspirou a escrita de Jorge de Sena, aceitei de que se trata de um dos meus poemas favoritos.

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