Resenha – “A Filha Perdida”, de Elena Ferrante

Filhas e mães, perdidas em si mesmas

A Filha Perdida é uma obra da genial Elena Ferrante, lançada em 2006, e ganhou visibilidade após o lançamento da adaptação feita pela Netflix. Acompanhamos a história, presente e passada, de Leda, mãe de duas filhas e professora universitária. A vida tranquila e estável que Leda vivia após as filhas se mudarem para o Canadá com o pai é arrancada de si mesma quando, de férias na Itália, conhece Nina, a jovem mãe de Elena, que trata como filha sua inseparável boneca.

Há variações bruscas que nenhum gráfico é capaz de reproduzir, um momento é luminoso, outro é obscuro.

De longe, Leda idealiza Nina, sua maternidade suave, leve, cheia de carinhos. E, na medida em que se aproximam, Leda começa a se recordar de seu passado, de segredos escondidos no próprio intimo, de arrependimentos e escolhas que ainda pesam imensamente em sua existência. Da relação com a própria mãe à relação com suas filhas, Leda passa a enxergar em Nina os conflitos comuns a várias mães, a maternidade bruta e real, as culpas e conflitos de ser definida não mais como Leda, professora e acadêmica bem sucedida, mas Leda, mãe de Martha e Bianca.

Naquela época, eu tinha uma dor de estômago constante por causa da tensão. Era o sentimento de culpa: eu achava que todo sofrimento que atingia as minhas filhas era fruto do já comprovado fracasso do meu amor.

Na medida em que o passado se revela, em que o presente se apresenta como é, Leda agarra a oportunidade de novamente ser mãe, encontrando em Nina, Elena, e em um certo objeto, uma forma de traçar paralelos com sua própria história. O que antes estava superado, agora retorna, enfim, a superfície. A carga de ser mãe novamente a arrebata e a confunde, e traz para nós, leitores, questionamentos importantes sobre o papel materno diante da sociedade.

Quantas coisas estragadas, perdidas havia em meu passado, mas, naquele instante, ainda estavam presentes em um turbilhão de imagens

MINHAS IMPRESSÕES

Esse foi meu primeiro contato com a escrita de Elena Ferrante, e me surpreendi muito com a semelhança entre essa obra e Laços, de Starnone. Não nas histórias em si mesmas, mas na forma como ambos os autores relatam os conflitos internos, de forma um pouco bruta, um pouco sensível, que permite ao leitor colocar ali a própria subjetividade.

Além disso, a forma como a autora apresenta a maternidade é excepcional. No meu trabalho como psicóloga, percebo que uma questão comum às mães é a carga excessiva de se sentirem obrigadas a se definir assim, como mães. Não mais pessoas com uma subjetividade única, mas apenas mães. E Leda mostra como ser reduzida a isso pode ser problemático, o quão importante é para uma mulher ser algo além desse papel social, que parece tirar de nós as possibilidades de sermos mais.

Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo para trás na direção de minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.

Elena Ferrante, com todo o seu brilhantismo, mostra aos leitores as diversas nuances da maternidade, arrancando de nós a ideia romantizada de uma mãe saudável, amorosa, completa e feliz apenas por ter filhos. Ela mostra que, apesar de esses sentimentos poderem sim existir, eles não anulam o lado humano comum a todos nós, a possibilidade de se frustrar, de se arrepender, de querer voltar para uma vida que é só sua. É um abraço em todas as mães que se sentem desamparadas e culpadas por não quererem mais ser reduzidas apenas a isso, por não sentirem a magia da maternidade como por tanto tempo nos foi pregada. E, no fim das contas, a filha perdida pode ser Nina, Leda, Martha, Bianca, Elena, eu, você.

Eu estava como alguém que conquista a própria existência e sente um monte de coisas ao mesmo tempo, entre elas uma ausência insuportável.

Resenha – “Laços”, de Domenico Starnone

Vidas derramadas, laços que as retém

Laços é um romance de Domenico Starnone, escrito em 2014, vencedor do Bridge Prize de 2015. É uma obra curta e simples – mas, ao mesmo tempo, de uma complexidade extraordinária –, que retrata os dramas de uma família comum em meio a encontros, desencontros, contenções e pulsões, segredos e revelações.

Casados há mais de meio século, Aldo e Vanda vivem juntos carregando o peso do passado, que é refletido em sua relação a todo momento. Aldo pisa em ovos, Vanda é muito rígida, os filhos já não estão presentes em casa e o passado precisa descarregar no presente suas tensões. Ao chegarem de uma viagem de férias, o casal encontra sua casa revirada: tudo destruído, nada roubado, um gato desaparecido, as paranoias se formando e, em meio à bagunça, o “pecado” escancarado. Agora, Aldo está frente a frente com os danos que sua paixão por outra mulher causou em si e em sua família, com as dores escondidas nas profundezas da relação latentes outra vez – ou pela primeira vez.

Você me matou há tempos, e não no meu papel de esposa, mas como ser humano que estava em seu momento mais pleno e sincero.

A história é dividida em três partes: na primeira, temos acesso às cartas que Vanda escreve para Aldo quando ela e os filhos são abandonados; já na segunda, a história é contada por Aldo, em viagens entre o presente e o passado; por fim, a terceira parte traz a liberação de todas as mágoas que Anna e Sandro, filhos do casal, guardam dentro de si. E assim, com uma narrativa não linear e contada com perspectivas muito distintas, conhecemos sobre os dramas internos e externos que consomem cada um dos personagens.

Você disse para si mesmo desde o início: preciso recuperar minha vida, ainda que isso os destrua.

Minhas impressões

Meu primeiro contato com a obra foi muito feliz: gostei da forma como conhecemos tão profundamente Aldo e Vanda, de como os julgamentos se dissolvem e solidificam a todo momento, de sentir as imperfeições inevitáveis na esfera familiar. É uma obra que conta muito em poucas páginas, que esconde segredos por todos os cantos, e nós leitores nos tornamos a caixa onde tudo é despejado e, depois, trancado. Também me agradou a forma como somos apresentados aos filhos de Aldo e Vanda: Anna e Sandro, agora crescidos e munidos dos traumas causados pela relação conflituosa de seus pais.

Nossos pais nos destruíram. Os dois se instalaram em nossas cabeças, não importa o que a gente diga ou faça, continuamos obedecendo a eles.

Outro ponto que achei surpreendente foi o final. Não o final previsível de uma família disfuncional que permanece unida por laços que sufocam, mas o fim do mistério que envolve a destruição da casa que desencadeia todos os conflitos novamente.

Laços é uma obra que esconde muitas informações, prontas para serem interpretadas pelo leitor atento e curioso. Remete às matrioscas (bonecas russas que se “escondem” umas dentro das outras), com um segredo revelando um sentimento, que revela um fato, que revela suposições e, quando o ciclo se esgota, tudo é guardado novamente, uma coisa dentro da outra, contidas e prontas para serem reveladas em outro momento.

Em toda casa há uma ordem aparente e uma desordem real.

Resenha – “Uma vida pequena”, de Hanya Yanagihara

Quando os demônios internos reduzem uma vida inteira a nada

“Setembro Amarelo” é um dos movimentos de saúde mental mais conhecidos no Brasil, que vem se fazendo cada vez mais presente em um contexto no qual, anualmente, vemos os índices de depressão, ansiedade e suicídio aumentarem. Mas apesar de ser muito conhecido e divulgado (e talvez até por isso mesmo) seja também um período que levanta discussões um tanto quanto perigosas. Minha impressão geral é que compartimentamos um tema de extrema complexidade em apenas trinta dias, sendo que, em todos os outros dias do ano, ignoramos o fato de não temos meios definitivos para lidar com pessoas em crise suicida. Nosso país não possui serviços de qualidade destinados às pessoas suicidas e, para piorar, muito leigos abrem suas caixas de mensagem, na tentativa de ajudar essas pessoas em situação de risco, arriscando piorar o quadro que por si só já é grave.

Mas o que isso tem a ver com o livro de Hanya Yanagihara? Bem, Uma vida pequena foi lançado em 2016, e decidi falar sobre essa leitura como uma forma de alertar as pessoas para a complexidade e a gravidade envolvida nos transtornos mentais. Além disso, já deixo o aviso de que não recomendo essa leitura para qualquer pessoa, por se tratar de um livro que detalha “situações-gatilho” para quem se encontra em uma situação de vulnerabilidade emocional, trazendo temas como abuso sexual, uso de drogas, automutilação, tentativas de suicídio e relacionamentos abusivos. Considero, portanto, um livro perigoso, mas, ao mesmo tempo, importante para que possamos compreender a complexidade do ser humano.

Se eu fosse outro tipo de pessoa, poderia dizer que todo esse incidente é uma metáfora da vida em geral: as coisas se quebram, às vezes podem ser consertadas, e, na maioria dos casos, você percebe que independentemente do que é danificado, a vida se rearranja para compensar sua perda, às vezes de forma maravilhosa.

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Uma vida pequena nos conta a história de quatro amigos ao longo de décadas, iniciando quando eles tem aproximadamente dezessete anos, e se estendendo até  aproximadamente os cinquenta e poucos anos. Willem é ator, JB é artista, Malcom é arquiteto e Jude é advogado. Eles são muito diferentes entre si, e todos são movidos pelo ideal social de busca por felicidade, prazer e sucesso. Mas apesar de a história falar dos quatro amigos e de suas relações, o foco da narrativa é em Jude: no início do livro, sabemos dele o mesmo tanto que seus amigos, ou seja, de que não tem pais, de que é um sujeito calado e reservado, e que seu passado é um mistério. E, a medida em que a verdade é revelada a alguns personagens do livro, é apresentada também a nós, leitoras e leitores (e o pensamento em comum entre os personagens e nós mesmos é, muitas vezes: – Eu preferiria não saber).

Jude era um otimista. A cada mês, a cada semana, escolhia abrir os olhos e viver mais um dia no mundo.

O passado de Jude é cruel e, para ele, é ainda muito presente. É algo que frequentemente o impede de assumir sua própria vida, de confiar nas pessoas e de se enxergar como alguém que merece o amor e a felicidade. As marcas que ele carrega em seu corpo são lembretes diários do ser asqueroso que ele acredita ser, mesmo que o mundo lhe diga o contrário. Jude foi presenteado pela vida: tem pessoas que o amam incondicionalmente, uma carreira de sucesso e a chance de se reinventar… Mas sua dor é grande demais, real demais, para que ele se perdoe por um crime que, na realidade, não foi ele quem cometeu. Assim, ao longo do livro, das décadas de vida de Jude e de seus amigos, somos apresentados a um homem vulnerável, ao “pós-homem”, às suas estratégias para sobreviver, às nuances da vida, ao poder da amizade e também à dor, ao sofrimento extremo, às lembranças intrusivas e ao sentimento de impotência.

“Amizade era testemunhar o lento gotejar de tristezas, as longas crises de tédio e os triunfos ocasionais do outro. Era sentir-se honrado pelo privilégio de estar presente durante os momentos mais sombrios de outra pessoa e saber que você também podia ter seus momentos sombrios perto dela.”

PRINCIPAIS IMPRESSÕES

Esta obra de Hanya Yanagihara foi uma das leituras mais difíceis que já tive e, por isso mesmo, uma das melhores. A narrativa é detalhada, os personagens se tornaram reais para mim e o sofrimento deles era tangível. Mas também foi tangível o amor, a amizade, a esperança e a fé que todos depositavam em Jude. Acredito que, apesar de ser um livro que foca muito nos transtornos mentais (temos sinais de depressão, de transtorno do estresse pós traumático (TSPT), de transtorno do pânico (TP) e vemos o abuso de substâncias entorpecentes, por exemplo), é sobretudo um relato de empatia, amor e de força. Jude escolhia, dia após dia, viver; escolhia confiar, amar e ser amado; escolhia, também, abandonar seu passado para seguir em frente. E isso, para mim, é força: esse constante movimento de vida em meio ao desejo intenso de morte.

A vida é tão triste, pensava nesses momentos. É tão triste, e, ainda assim, todos vivemos. Todos nos agarramos a ela; todos procuramos algo que nos console.

O livro me trouxe diversas reflexões – e uma delas é a seguinte: até que ponto podemos ajudar alguém que está tão vulnerável? Até que ponto esse desejo de salvar o outro é “amor” e em que momento se torna um desejo egoísta? Uma possível resposta para essa reflexão foi dada por Harold – um dos personagens que mais amou e lutou por Jude –, no último capítulo do livro.

Esse livro se tornou meu favorito da vida, por conta de toda sua complexidade, pela construção impecável dos personagens, por mesclar sentimentos tão ambíguos com tamanha perfeição e por apresentar a vida de uma forma tão real. Me vi transportada para o universo da obra e senti intensamente, quis a todo momento abraçar Jude e dizer que o amava também (um pouco bobo de minha parte, talvez, mas inevitável). Mas essas conclusões só se fizeram presentes ao final da obra, após desabar com a icônica frase de Harold que tornou a experiência muito real para mim (assustadoramente real):

Por isso tento ser amável com tudo o que vejo, e em tudo que vejo, eu vejo ele.

Resenha – “A pérola que rompeu a concha”, de Nadia Hashimi

Quando a história se repete, de novo, e mais uma vez

Recentemente, o Talibã assumiu novamente o controle do Afeganistão, gerando preocupações ao redor do mundo sobre a vida dos afegãos, e sobretudo das mulheres. Isso porque, após um primeiro conflito, que ocorreu em 1996, muitas delas se viram abandonadas, em um mundo à parte, onde seus gritos não eram ouvidos; seus corpos, desde então, deveriam ser totalmente cobertos, ao mesmo tempo em que eram violados frequentemente. Além disso, seus direitos de ir e vir foram restritos, e estudar e trabalhar deixou de ser uma opção para elas. Agora, em 2021, essas mulheres se veem novamente atacadas e abandonadas, entregues ao medo, por si mesmas e pelas suas semelhantes.

Eu compreendi algo que minha mãe já sabia: os homens podem fazer o que quiserem com as mulheres.

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Em A Pérola que rompeu a Concha, publicado em 2017, escrito por Nadia Hashimi, podemos conhecer de forma mais íntima a realidade feminina afegã. Rahima, a personagem central do romance, vive em meio à opressão do Talibã e, assim como suas irmãs, raramente é autorizada a ir a escola. Ela observa os meninos e os inveja: – Eles são livres. Devido aos empecilhos impostos pelo governo, é permitido a ela ser uma bacha posh, uma prática que consiste em “redefinir” o gênero e que permite a uma menina se vestir como um menino para ajudar sua família, até que a puberdade chegue e ela seja obrigada a se casar. Isso acontece com Rahima aos 13 anos, quando é dada em casamento para um homem, deixando para trás sua família para viver com um homem perigoso e com suas outras três esposas, mas o tempo todo se questionando quanto à injustiça contra ela e outras meninas.

Às vezes, as mulheres são humilhadas demais, chutadas demais, e não há saída para elas. Talvez ela achasse que era o único caminho.

Paralelamente aos problemas vividos por Rahima, conhecemos a história de Shekiba, que é trisavó da personagem. Shekiba era vista por todos como uma amaldiçoada – porque tem metade de seu rosto deformado por uma queimadura – e, pouco a pouco, perde cada um dos membros de sua família, vendo-se sozinha em uma sociedade desigual, cruel e impiedosa. Assim como Rahima, ela se “transforma” em homem e passa a trabalhar como guarda do harém do rei, que não admitia que suas concubinas fossem vigiadas por homens reais. A história de Shekiba inspira Rahima a buscar um futuro diferente para si e para seus filhos, desafiando as regras impostas pelo estado masculino e colocando sua vida em risco, assim como ocorre em diversos momentos com sua trisavó.

As pessoas que são atingidas pela tragédia uma, duas vezes, estão fadadas a sofrer outra vez. O destino acha mais fácil refazer o próprio caminho.

Principais Impressões

A história dessas duas meninas/mulheres nos mostra que, apesar de se falar na tendência ao progresso, ele não chega para todo mundo. A retomada do Talibã ao poder confirma que essa realidade cíclica e cruel não acontece apenas na literatura: está aí para quem quiser ver. O sofrimento das personagens é tangível: o medo constante, a solidão, a depressão, a desigualdade, tudo isso é apresentado de forma crua ao leitor. Apesar disso, é inspirador (mesmo que muito doloroso) perceber a força dessas duas mulheres, que de fato representam tantas por aí. Elas seguem em frente, carregando uma bagagem pesada de preconceitos e repressões.

No limite, A Pérola que rompeu a Concha é uma ficção-real, não necessariamente biográfica, que demonstra na prática aquilo que disse Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você tem que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.

Há um beijo que desejamos com todas as forças. O toque do espírito no corpo. A água do mar implora à pérola que rompa a sua concha.

Resenha – “Pais e Filhos”, de Ivan Turgueniev

O conflito de gerações desencadeando o conflito interno

A obra Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev, foi publicado em 1862 e refletiu um dos acontecimentos históricos mais importantes da Rússia do século XIX: o fim da servidão dos camponeses pelos senhores de terras. Como em qualquer movimento de transição, os conflitos de ideias aparecem, geralmente entre uma nova geração e a geração anterior. Em Pais e Filhos, Turgueniev dá ao leitor uma pequena amostra de como ocorre esse choque, dentro de um ambiente familiar e dentro também de cada personagem apresentado.

A viagem do leitor começa no ano de 1859, com Nikolai Petrócitch aguardando ansiosamente a chegada de seu amado filho, Arkádi, que traz consigo seu amigo Bázarov, uma figura peculiar, intrigante, que exerce grande influencia sobre o colega. Essa influencia se faz presente ao longo da maior parte da narrativa, e pode ser vista desde o primeiro momento, quando Arkádi, apesar de seu imenso apreço pelo pai, se comporta de maneira mais fria, sem condizer com a imensa felicidade do reencontro entre pai e filho. Acontece que Bázarov é um niilista: no contexto da obra, um sujeito que recusa toda e qualquer tradição, que vive de acordo com princípios práticos e úteis, não se rendendo a sentimentalismos que não servem para nada.

O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com bases na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito.

Bázarov age, frente à geração anterior, como um sujeito frio, distante, extremamente irônico e de fato com certa arrogância. Arkádi, que tanto admira o amigo, se esforça para agir de maneira semelhante. E enquanto os dois jovens negam toda e qualquer opinião emitida pelos pais, estes, por sua vez, se mostram abertos e mais do que dispostos a conhecer as ideias da nova geração. Pensando nos dias atuais, tendemos a enxergar os mais velhos como pessoas rígidas e inflexíveis: em Turgueniev esses papéis são invertidos, e os mais velhos se mostram mais sábios na medida em que tentam se adaptar, mesmo sem compreender, aos novos tempos.

No íntimo, alegrou-se muito com o convite do amigo, mas julgou-se na obrigação de esconder seu sentimento. Afinal, era um niilista!

Porém, no decorrer dos acontecimentos, percebemos uma mudança nos personagens. O encanto que Arkádi sente com relação ao amigo vai aos poucos se desfazendo quando ele passa a enxergar de forma mais crítica suas atitudes para com os outros. Bázarov parece se obrigar, em alguns momentos, a reprimir seus sentimentos e impulsos (tão inúteis para o niilista), algo que não combina com o “verdadeiro eu” de Arkádi. Assim, ele não segue nem os ideais do pai, nem os do amigo, criando para si aquilo que considera importante para uma vida plena, sendo talvez o verdadeiro “novo homem” que o autor pretendia apresentar. O niilismo de Bázarov também não se sustenta frente as adversidades da vida, se rendendo em alguns momentos à tradição e punindo-se por isso.

Principais Impressões

Para além do que o nome Pais e Filhos pode sugerir, a obra me parece mais uma profunda descrição de conflitos interiores relacionados às respectivas gerações velhas e novas. A possibilidade de mudança, que permeia os personagens e suas relações, foi algo que o autor propôs com uma sensibilidade muito interessante. Os personagens, antes tão limitados às ideologias geracionais, vão ganhando autonomia por meio de aprendizados individuais e compartilhados.

Um ponto que permanece para mim como um conflito são meus próprios sentimentos com relação a Bázarov: apesar de me admirar com sua convicção sobre seus ideais, me peguei odiando-o em diversos momentos da leitura, em especial nos que se referem à relação do jovem com seus pais. Olhei para ele com raiva e com carinho ao longo de toda a leitura, e creio que esse seja o ponto que mais me encantou na obra: a forma como a natureza humana do personagem desperta a minha própria, se choca com meus princípios e desperta empatia. Pais e Filhos foi meu primeiro contato com Turgueniev, autor tão diferente dos outros russos que já li, mas igualmente genial e que, de fato, traz para nosso tempo algumas reflexões ainda muito pertinentes.

“… as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza “indiferente”; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita…”

Resenha – “Lolita”, de Vladmir Nabokov

Entre a obsessão, a paixão e o crime

“Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta. Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita.”

Um leitor que nada ouviu falar sobre a obra Lolita pode, lendo essa sentença, se comover e se preparar para a leitura de uma história de amor. E digo sentença porque não se trata de um romance, mas da história de um crime. O livro Lolita, de Vladmir Nabokov, foi publicado pela primeira vez em 1955, e provocou um verdadeiro escândalo na época, sendo proibido e apreendido em diversos países, como Inglaterra e França. A história de “amor” entre Lolita e Humbert Humbert é contada por ele (Humbert) de forma poética, enquanto ele se prepara para seu julgamento final, e tem a tendência de chocar e nausear quem se arrisca a encarar uma realidade tão marcante nos dias de hoje. Trata-se não de uma história de amor, mas de abuso sexual, psicológico, de chantagens e de cárcere cometidos por um homem de 40 anos contra uma criança de 12 anos.

O abuso sexual infantil é um problema óbvio. No Brasil, percebeu-se um aumento expressivo no número de denúncias durante o período de isolamento social, sendo que, de janeiro a maio, foram registrados 6091 casos, sendo que 96% destes ocorreram dentro da casa das vítimas (dados divulgados pelo Extra Classe, em maio de 2021). A Terapia do Esquema, uma das grandes abordagens em crescimento na Psicologia, aponta para o alto nível de influencia que eventos traumáticos vivenciados na infância apresentam sobre a saúde mental dos indivíduos ao longo de toda a vida, sendo o abuso sexual e a negligencia os maiores indicadores de transtornos mentais que se apresentam na clínica. Portanto, acredito que Lolita, apesar do desconforto que causa, é uma obra importante para que possamos sair da nosso lugar de “tudo está bem no mundo”, iniciando um debate sobre a necessidade real de se discutir o tema da pedofilia nos diversos cenários sociais (inclusive, por favor, NAS ESCOLAS!).

“Ali estava uma criança solitária, inteiramente desamparada, com quem um adulto vigoroso, malcheiroso, tinha tido, naquela manhã, por três vezes, porfiadas relações.”

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Pois bem, como dito anteriormente, Lolita conta a história de abuso que se deu entre Lolita (Dolores, Lô), e Humbert Humbert (H.H), homem de cerca de 40 anos que sente atração por Ninfetas: “Em um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem garotas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas ‘nínfica’ (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets”. Tudo começa quando H.H, mudando-se para os EUA, se hospedando na casa de Charlote, mãe de Lolita, e lá permanecendo apenas devido a uma forte atração por Lo. Por “obra do destino”, Charlote acaba falecendo, e Humbert vê uma oportunidade para enfim vivenciar sua tão desejada história de amor. Durante alguns anos, portanto, H. H e Lolita embarcam em uma viagem de carro pelos Estados Unidos, vivendo uma relação muitas vezes denominada pela própria Lolita como “incesto, crime”, e por Humbert como “amor, paixão”. É óbvio, ao leitor e ao narrador, que Lolita não é feliz, mas se sujeita à situação por medo: medo de ser abandonada (ela, que já não tem ninguém) e de se ver trancafiada em reformatório ou internatos.

“No hotel, ficamos em quartos separados, mas no meio da noite ela vinha soluçando para o meu, e fazíamos a coisa muito suavemente. Como os senhores veem, ela não tinha, absolutamente, para onde ir.”

Principais impressões

Confesso que foi uma leitura muito difícil para mim. Foi algo lento, arrastado, e em diversos momentos me vi a ponto de desistir. A história em si é pesada, absurda, nauseante, e infelizmente apresenta muito da realidade. Me causou um incômodo que raramente me atinge em minhas leitura, e me tirou completamente da zona de conforto. Mas, para além da história em si, a forma narrativa é bem arrastada. Humbert se prende, em diversos momentos, em descrições detalhadas sobre os lugares pelos quais ele e Lolita passaram e sobre as pessoas com quem se encontraram. Para alguns, é uma verdadeira viagem pelos Estados Unidos, mas, para mim, foi maçante.

Apesar disso, foi interessante me ver na mente de um sujeito abusador e perceber como a situação impacta psicologicamente o autor do crime e sua vítima, Lolita, pensando principalmente em minha prática profissional (sou estudante de Psicologia). Os abusos físicos acontecem a todo momento, mas o que é de fato descrito no livro são os abusos psicológicos: o pavor que Humbert tem de perder Lolita (seja por ter seu crime descoberto ou pelo simples fato de saber que um dia Lô será adulta, e não mais sua ninfeta), as reações aversivas de Lolita às investidas dele e, por fim, a forma como ele mantém na memória a história que se passa entre eles. E isso, no fim das contas, foi o que me manteve na leitura: a vontade de compreender, clinicamente, o que se passa na cabeça de um abusador, e a curiosidade para saber que fim a vida de Lolita tem.

“Durante nossa singular e bestial coabitação, foi-se tornando claro à minha convencional Lolita que mesmo a mais miserável das vidas de família era preferível àquela paródia de incesto – que era, afinal de contas, o que de melhor eu poderia oferecer àquela criança abandonada.”

Resenha – “A Trança”, de Laetitia Colombani

Histórias que se amarram no “ser mulher”

A trança é uma história – quase uma poesia – lançada em 2021 por Laetitia Colombani, que já vendeu mais de 1,4 milhões de exemplares. Conta a história de três mulheres, de três culturas diferentes, que passam por três problemas diferentes, de acordo com o “ser, aqui, agora” de cada uma. Cada uma dessas mulheres representa uma mecha, cuidadosamente apresentada, tratada e trançada durante a narrativa, que, no fim, vão se juntar em um ponto de amarração, união. Essa trança, formada por meio da história das protagonistas, envolve cada uma de nós, leitoras.

“Estranho bailado esse, dos meus dedos. Escreve uma história de tranças e entrelaços; Essa história é a minha história. Embora não me pertença.”

A narrativa impecável trançada por Laetitia é composta por um pouco da vida de Smita, de Giulia e de Sarah. Smita é uma mulher da Aldeia de Badlapur, Uttar Pradesh, na Índia. Uma dalit, uma intocável, uma espécie julgada impura pelos demais, que acorda todos os dias, desde criança, para exercer o único trabalho da qual é considerada digna pelas outras classes: limpar a merda dos outros (no sentido mais literal e cruel do termo). Mas Smita também é mãe, e para sua filha de seis anos, Lalita, não quer o mesmo destino. Assim, ela se arrisca para que a menina tenha o básico, algo que a própria Smita nunca teve: a oportunidade de frequentar a escola.

Em paralelo a essa história, temos Giulia, uma jovem residente de Palermo, Sicília, cujo oficio e tradição familiar é tratar e vender cabelos italianos. Seu pai é sua inspiração e os negócios da família, seu legado. Mas a vida não é simples, e Giulia vê seu pai, e seu ateliê, entre a vida e a morte. Assim, entre a tradição e as inovações, a menina precisa tomar uma decisão que irá mudar o rumo de sua vida.

Por fim, temos Sarah, uma advogada de sucesso de Montreal, no Canadá. Sarah sempre se dedicou ao trabalho, e quer ser uma das poucas mulheres que atingem o ápice profissional. Mas sendo mulher, Sarah enfrenta desafios que em geral os homens não precisam encarar, porque a gravidez e os filhos não costumam ser um obstáculo para eles. E, quando enfim se encontra tão perto do tão almejado cargo, Sarah é diagnosticada com câncer de mama, deixando de ser Sarah, para virar “o câncer”.

“Ela amaldiçoa essa sociedade que esmaga seus fracos, suas mulheres, suas crianças, todos aqueles que devia proteger.

À primeira vista, as histórias dessas mulheres têm pouco em comum. Todas elas são fortes, mas estão inseridas em uma sociedade machista, injusta e hipócrita. Todas elas travam suas batalhas, internas e externas, dia após dia, a fim de conseguir o que é seu por direito: uma vida digna, simples. A delicadeza com que as histórias são trançadas, e a forma como nós, mulheres, nos encaixamos entre esses fios, é o que faz dessa leitura, dessas poucas mais de 100 páginas, algo tão belo, tão válido e tão profundo.

“Que estranho, repara, a vida às vezes junta os momentos mais sombrios com os mais luminosos. Dá e tira ao mesmo tempo”.

Principais Impressões

Decidi ler A trança por pura curiosidade: – É uma leitura curta, aparentemente simples, por que não? – Mas o que eu não esperava era a tamanha identificação que senti com as três histórias, tão distintas entre si, e tão distintas da minha. É interessante perceber como a autora, capítulo após capítulo, de forma lenta e cuidadosa, costura as histórias, até que, no fim, elas se encontrem e se amarrem de forma sutil. O que mais me encantou nessa leitura foi a forma como Laetitia Colombani mostra que, em qualquer lugar do mundo, mulheres encontram dificuldades que são comuns a todas as outras mulheres. O desafio de levantar sua voz diante de uma sociedade patriarcal, a luta para alcançar o sucesso profissional, a luta por direitos que deveriam ser básicos… Enfim, a luta diária que enfrentamos por sermos mulheres: para sobreviver, crescer, ser. E, mesmo que as personagens não saibam da existência umas das outras, suas histórias ainda se encontram, sem que elas percebam, assim como, de alguma forma, se encontram com a minha e com tantas outras por aí. Uma frase que, para mim, define a leitura é: Não estamos sozinhas, somos únicas, e somos muitas, e somos juntas. E se tem um ponto que poderia ser considerado negativo (mas não é), é o gosto que senti no final, o de querer saber ainda mais sobre essas mulheres tão fortes, tão diferentes e que carregam um pouco de mim.

“Sou apenas um elo, um ponto de união irrisório, que segue firme na interseção de suas vidas, um fio tênue a uní-las, fino como fio de cabelo, invisível ao mundo e aos olhos…”

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