Não há forma diferente de começar esta publicação, senão com a reprodução desta obra singular, de um dos maiores nomes da arte dos séculos XV e XVI. Trata-se da gravura “A queda do homem” (ou “Pecado original”), criada por Albrecht Dürer, multiartista e matemático alemão, que a compôs como parte de sua coleção Pequena Paixão. Feita originalmente em Nuremberg, por volta de 1510, e medindo 12,8 x 9,8 centímetros, “A queda do homem” foi recentemente ampliada pelo artista brasileiro Pedro Alvarenga, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, que tem divulgado o trabalho em seu Instagram.
As Paixões de Dürer
Paixões — assim foram nomeados os sofrimentos físicos e espirituais de Jesus Cristo, em seus últimos dias de vida humana. Já na Idade Média, essas Paixões se tornaram amplamente difundidas, a partir de uma infinidade de representações iconográficas de passagens bíblicas facilmente reconhecidas pelos fieis. Mas o tema também foi muito popular na Alemanha dos séculos XV e XVI, sendo a igreja germânica uma das que utilizou amplamente a arte pictórica, sobretudo as impressões em gravuras, para difundir as Paixões entre o povo (que era, em sua maioria, iletrado).
Foi justamente dentro desse contexto de difusão religiosa na Alemanha que Albrecht Dürer produziu uma parte de sua obra, inserindo narrativas autorais na iconografia tradicional das Paixões de Cristo, incrementando o número das passagens retratadas. Em sua série Pequena Paixão, iniciada após a segunda viagem que o artista fez à Itália (entre 1505-1507), Dürer compôs 36 xilogravuras e um frontispício, que hoje em dia se encontram em museus e coleções particulares, mas que podem ser facilmente recuperados via pesquisas na internet.
Essa série traz uma retratação detalhada do martírio e morte expiatória de Cristo, e tem como obra de abertura da série a cena “A tentação de Eva” e “A queda do Homem”. Isso significa que, para além do ciclo narrativo diretamente ligado ao sacrifício expiatório do Salvador, as Paixões incluem também histórias do Antigo Testamento.
Consta que a primeira edição da série de gravuras foi publicada em 1511, acompanhada do texto latino referente a cada passagem, que vinha escrito no verso. Depois, a coleção ganhou, em 1612, uma versão com texto em italiano, que saiu em Veneza. A partir daí, a Pequena Paixão de Dürer ficou incrivelmente popular, tendo suas gravuras reimpressas e difundias em diferentes países da Europa, de maneira avulsa ou completa (com todo o conjunto)
Caso você tenha interesse específico em alguma delas, segue a lista com o título de cada uma (vale muito à pena conferir!):
- Frontispício
- Pecado original
- Expulsão do Paraíso terrestre
- Anunciação
- Natividade
- Saída de Cristo
- Entrada em Jerusalém
- Expulsão dos mercadores do Templo
- Última Ceia
- Lavagem dos pés
- Oração no Orto
- Prisão de Cristo
- Cristo perante Ananias
- Cristo perante Caifás
- Cristo ridicularizado
- Cristo perante Pilatos
- Cristo perante Erodes
- Flagelação
- Cristo coroado de espinhos
- Ecce homo
- Pilatos lava as mãos
- Cristo carregando a cruz
- Sudário da Verónica
- Cristo pregado à cruz
- Crucificação
- Cristo no Limbo
- Deposição da cruz
- Lamentação de Cristo
- Enterro de Cristo
- Ressurreição de Cristo
- Cristo aparece à Mãe
- Noli me tangere
- Ceia em Emaús
- Incredulidade de S. Tomé
- Ascenção
- Pentecostes
- Juízo Final
Projeto de gravura expandida
Tendo por inspiração o labor do artista alemão, Pedro Ícaro Alvarenga, gravurista de Pindamonhangaba, buscou fazer também sua reprodução das Paixões assinadas por Dürer. Como forma de homenagear a obra do artista, o gravurista brasileiro não apenas promoveu discussões acerca da iconografia tradicional e da forma narrativa como método de divulgação dos temas bíblicos, mas também buscou ampliar as perspectivas de leitura e de compreensão da obra de Dürer.
Contudo, provavelmente, a cereja do bolo do trabalho de Pedro Alvarenga é a reprodução ampliada de uma das cenas da Pequena Paixão: “A queda do homem”, trabalho que pode ser conferido diretamente no Instagram, ou no vídeo abaixo:
Na gravura ampliada por Alvarenga, vemos a representação de Dürer de Adão e Eva, nus e abraçados, próximos à árvore em que estão a serpente e o fruto proibido. Adão e Eva olham um para o outro. O corpo de Eva, bem como o de Adão, é rechonchudo e curvilíneo. É ela quem segura o fruto que a serpente morde, e a serpente parece ter um tipo de coroa ou auréola sobre a cabeça. No plano baixo, há alguns animais: um boi, um javali e um animal de olhar feroz – talvez um felino de grande porte – que se esconde entre as árvores.
Essa quantidade de detalhes contribui com a criação da atmosfera, sendo que a paisagem é extremamente sombria, com um Paraíso que mais se assemelha a uma floresta encantada e obscura, saída de algum conto de fadas – na qual os animais se escondem à espreita e a mata não deixa passar sequer um fio de luz – do que de fato ao tão sonhado Jardim do Éden. No canto inferior direito, há a inconfundível assinatura do gravurista, com suas iniciais emaranhadas umas nas outras sobre uma etiqueta desprendida no chão da cena representada.
Quais desses detalhes mais chamaram a sua atenção?
Com sua reedição em uma matriz de madeira marfim, de 80 x 50 centímetros, Alvarenga nos convida a ter mais atenção a todos esses elementos da obra de Dürer, famigerado pelos diversos enigmas que costuma espalhar por seus trabalhos. Por isso, não deixe de acessar a página do artista e, quem sabe, adquirir um exemplar da gravura de Dürer.