Conto — “A sala vermelha”, de L. M. Montgomery

“A sala vermelha”, de L. M. Montgomery (1895)

Tradução de Karine Ribeiro

“A sala vermelha” faz parte do livro O Lado Mais Sombrio, uma antologia de contos de L. M. Montgomery publicada pela Editora Wish.

Quer que eu lhe conte a história, neto? É triste e é melhor esquecer — poucos se lembram dela agora. Há sempre histórias tristes e sombrias em famílias antigas como a nossa.

No entanto, prometi e devo manter minha palavra. Então sente-se aqui aos meus pés e descanse sua cabeça em meu colo, para que eu não veja em seus olhos jovens e azuis as sombras que minha história trará.

Eu era apenas uma criança quando tudo aconteceu, mas me lembro muito bem. Me lembro como fiquei feliz quando a madrasta de meu pai, a sra, Montressor — ela não gostava de ser chamada de avó, pois tinha acabado de fazer cinquenta anos e ainda era uma bela mulher — escreveu para minha mãe dizendo que ela devia mandar a pequena Beatrice para Montressor Place nas férias do Natal. Fui alegremente, embora minha mãe tenha sofrido por se separar de mim; ela tinha pouco a amar à não ser a mim, pois meu pai, Conrad Montressor, se perdeu no mar com apenas três meses de casamento.

Minhas tias costumavam me dizer o quanto eu me parecia com ele, sendo, assim diziam, uma Montressor até o osso; e isso eu entendia como elogio, pois os Montressors eram uma família de boa descendência e bem-conceituada, e as mulheres eram conhecidas por sua beleza. Isso eu bem podia acreditar, pois de todas as minhas tias não havia uma que não fosse considerada uma mulher bonita. Por isso, fiquei feliz quando pensei em meu rosto e corpo esguio, esperando que, quando crescesse, não fosse considerada indigna de minha linhagem.

O Place era uma casa antiquada e misteriosa, do estilo que eu gostava, e a sra. Montressor sempre foi gentil comigo, embora um pouco severa, pois era uma mulher orgulhosa e pouco se importava com crianças, já que não tinha nenhuma.

Mas havia livros ali para me debruçar sem impedimentos – pois ninguém questionava meu paradeiro se eu não os incomodasse – e retratos de família estranhos e sombrios nas paredes Para contemplar, até que eu conhecesse bem cada rosto orgulhoso e velho, tinha imaginado uma história, pois eu era dada a sonhar e era mais velha e mais sábia do que minha idade, já que não tinha companhias infantis para me manter ainda criança.

Sempre havia algumas de minhas tias no Place para me beijar e fazer muito por mim por causa de meu pai, que era o irmão favorito delas. Minhas tias — eram oito — casaram-se bem, assim diziam as pessoas que conheciam, e moravam não muito longe, voltando muitas vezes para casa para tomar chá com a sra. Montressor, que sempre se dera bem com suas enteadas, ou para ajudar a preparar uma ou outra festividade — pois todas eram donas de casa notáveis.

Estavam todas em Montressor Place para o Natal, e eu recebi mais carícias do que merecia, embora elas cuidassem de mim um pouco mais rigorosamente que a sra, Montressor, e garantiam que eu não lesse contos de fadas demais nem ficasse acordada até tarde da noite.

Mas não era pelos contos de fadas e ameixas nem pelas carícias que eu me alegrava de estar naquele lugar naquela época. Embora não falasse a esse respeito com ninguém, eu tinha um grande desejo de ver a esposa de meu tio Hugh, sobre quem eu tinha ouvido muito, tanto bem quanto mal.

Meu tio Hugh, embora o mais velho da família, havia se casado recentemente, e todo o campo fervilhava de conversas sobre o jovem esposa. Não ouvi tanto quanto gostaria, pois os mexeriqueiros percebiam minha aproximação e mudavam de assunto. No entanto, tendo um pouco mais de compreensão do que eles sabiam, ouvi e compreendi muito de sua conversa.

E então eu soube que nem a orgulhosa sra. Montressor, nem minhas boas tias, nem mesmo minha gentil mãe, julgavam bem o que meu tio Hugh havia feito. E ouvi dizer que a sra. Montressor tinha escolhido uma esposa para seu enteado, de boa família e alguma beleza, mas que meu tio Hugh não queria nada com ela — uma coisa que a sra. Montressor achou difícil perdoar, mas poderia ter feito isso se meu tio, em sua última viagem às Índias, pois ele ia muitas vezes em seus próprios navios, não tivesse se casado e trazido para casa uma noiva estrangeira, de quem ninguém sabia nada, exceto que sua beleza era deslumbrante e que ela era de algum estranho sangue alienígena como aquele que não corria nas veias azuis dos Montressors.

Alguns tinham muito a dizer sobre seu orgulho e insolência, é se perguntavam se a sra. Montressor cederia mansamente sua autoridade à estranha. Mas outros, tomados por sua beleza e graça, diziam que as histórias contadas nasciam de inveja e malícia, e que Alicia Montressor era muito digna de seu nome e posição.

Assim, pensei em julgar sozinha, mas quando fui para o Place meu tio Hugh e sua esposa haviam partido por um tempo, e tive de engolir a decepção de esperar o retorno com toda minha pouca paciência.

Mas minhas tias e sua madrasta falavam muito de Alicia, e falavam dela com desprezo, dizendo que ela era apenas uma prostituta e que de nada adiantaria meu tio Hugh ter se casado com ela, e outras coisas semelhantes. Também falavam da companhia que ela reunia ao seu redor, pensando que ela tinha companheiros estranhos e impróprios para um Montressor. Tudo isso ouvi e ponderei muito, embora minhas boas tias suponham que uma garota como eu não daria atenção aos seus sussurros.

Quando não estava com elas, ajudando a bater ovos e passas, e sendo vigiada para que não comesse mais do que uma a cada cinco, eu certamente era encontrada no corredor da ala, debruçada sobre meu livro e lamentando não ter mais permissão para entrar na Sala Vermelha.

O corredor da ala era estreito e escuro, ligando as salas principais do Place a uma ala mais antiga, construída de forma curiosa. O corredor era iluminado por janelinhas de vidro quadrado e, no final, um pequeno lance de escada levava à Sala Vermelha.

Sempre que eu estivera no Place antes e isso acontecia com frequência , passava grande parte do meu tempo nessa Sala Vermelha. Naquela época, era a sala de estar da sra. Montressor, onde ela escrevia suas cartas e examinava as contas da casa, e às vezes fofocava durante o chá. A sala era de teto baixo e escuro, decorada com seda vermelha e com estranhas janelas quadradas no alto do beiral e lambris escuros ao redor. E lá eu adorava sentar tranquilamente no sofá vermelho e ler meus contos de fadas, ou conversar sonhadoramente com as andorinhas que esvoaçavam loucamente contra as vidraças minúsculas.

Quando fui ao Place naquele Natal, logo me lembrei da Sala Vermelha – pois tinha um grande amor por ela. Mas eu nem tinha – passado dos degraus quando a sra. Montressor veio correndo pelo corredor e, me agarrando pelo braço, me puxou para trás com muita força, como se fosse o próprio quarto do Barba Azul em que eu estava me aventurando.

Então, vendo meu rosto, que eu duvido que não tenha ficado bastante assustado, ela pareceu se arrepender de sua brusquidão e me deu um tapinha gentil na cabeça.

— Ah, pequena Beatrice! Eu assustei você, criança? Perdoe a imprudência de uma velha. Mas não entre onde não foi chamada, e nunca arrisque os pés na Sala Vermelha, pois ela pertence à seu tio Hugh, e deixe-me dizer-lhe que ela não gosta esposa de muito de intrusos.

Senti muito por ouvir isso, e não entendi por que minha nova tia se importaria se eu entrasse de vez em quando, como era meu hábito, para conversar com as andorinhas e não mexer em nada. A sra. Montressor cuidou para que eu lhe obedecesse, e não fui mais à Sala Vermelha, mas me ocupei com outros assuntos.

Havia grandes eventos no Place e muitas idas e vindas. Minhas tias nunca ficavam ociosas; havia muitas festividades na semana de Natal e um baile na véspera. E minhas tias prometeram – embora não antes de eu as exaurir de tanto pedir – que eu ficaria acordada naquela noite e veria o quanto da festa eu quisesse. Então fiz as tarefas e fui para a cama cedo todas as noites sem reclamar, embora fizesse isso com mais facilidade porque, quando elas achavam que eu estava dormindo, entravam e conversavam em volta da lareira do meu quarto, dizendo de Alicia aquilo que eu não deveria ouvir.

Finalmente chegou o dia em que meu tio Hugh e sua esposa eram esperados em casa embora não até que minha escassa paciência estivesse quase esgotada e estávamos todos reunidos para encontrá-los no grande salão, onde a luz avermelhada da lareira brilhava.

Minha tia Frances me vestiu com meu melhor vestido branco e minha faixa carmesim, lamentando muito sobre meu pescoço e braços magrinhos, e me fez comportar-me com elegância, como convinha à minha criação. Então fiquei em um canto, minhas mãos e pés frios de excitação, pois acho que cada gota de subido à cabeça, e meu coração batia tão sangue em meu corpo tinha pouco que até me doía.

A porta se abriu e Alicia pois eu estava tão acostumada a ouvi-la ser chamada assim que nunca pensei nela como minha tia – entrou, e um pouco atrás meu tio alto.

Ela se aproximou do fogo de maneira orgulhosa e ficou lá soberbamente enquanto afrouxava sua capa. A princípio nem me viu, mas acenou, um pouco desdenhosamente, ao que parecia, para a sra. Montressor e minhas tias, que estavam agrupadas ao redor da porta da sala de visitas, muito elegantes e silenciosas.

Mas não vi nem ouvi nada, exceto apenas ela, pois sua beleza, quando ela saiu de seu manto e capuz carmesim, era algo tão maravilhoso que esqueci minha educação e a olhei com fascínio, pois nunca tinha visto tamanha beleza e nem sonhara ela.

Eu havia visto muitas mulheres bonitas, pois minhas tias e minha mãe eram consideradas belas, mas a esposa de meu tio era tão pouco parecida com elas como o brilho do pôr do sol ao luar pálido ou uma rosa carmesim aos lírios brancos.

Nem posso pintá-la em palavras como a vi então, com as longas línguas de luz do fogo lambendo seu pescoço branco e oscilando sobre as ricas massas de seu cabelo vermelho-dourado.

Ela era alta tão alta que minhas tias pareciam insignificantes ao lado dela, e elas não eram de estatura mediana; no entanto, nenhuma rainha poderia ter se comportado mais majestosamente, e toda a paixão e o fogo de sua natureza estrangeira queimavam em seus esplêndidos olhos que, pelo que vi, poderiam ser escuros ou claros, mas que sempre pareciam poças de chamas quentes, ora tenros, ora ferozes.

A pele era como uma delicada pétala de rosa branca, e quando ela falou eu disse ao meu eu tolo que nunca tinha ouvido música antes; nem nunca mais penso em ouvir uma voz tão doce, tão líquida, como aquela que ondulou para fora de seus lábios cheios.

Várias vezes imaginei isso, meu primeiro encontro com Alicia, ora de uma maneira, ora de outra, mas nunca tinha sonhado que ela falasse comigo, de modo que foi para mim uma grande surpresa ela virou-se e, estendendo suas lindas mãos, disse muito graciosamente:

— E esta é a pequena Beatrice? Eu ouvi falar muito de você. Venha, me dê um beijo, criança. 

E eu fui, apesar do cenho franzido de minha tia Elizabeth, pois o glamour da beleza dela estava sobre mim, e eu não mais me admirava que meu tio Hugh a amasse.

Ele também estava muito orgulhoso dela; no entanto, senti, mais do que vi – pois eu era sensível e de rápida percepção, como crianças com almas velhas sempre são –, que havia algo além de orgulho e amor em seu rosto quando ele a olhava, e mais em seus modos do que o amante apaixonado: por assim dizer, uma espécie de desconfiança à espreita.

Nem eu poderia imaginar, embora me parecesse traição, que ela amava demais o marido, pois parecia meio condescendente e meio desdenhosa com ele; no entanto, não se pensava nisso em sua presença, apenas quando ela partia.

Quando ela saiu, achei que não havia sobrado nada, então me arrastei sozinha para o corredor da ala e me sentei perto de uma janela para sonhar com ela; e Alicia encheu meus pensamentos tão completamente que não foi surpresa quando eu ergui meu olhar e a vi descendo o corredor sozinha, sua cabeça brilhante cintilando contra as velhas paredes escuras.

Quando ela parou perto de mim e me perguntou com o que eu estava sonhando, já que eu tinha um rosto tão sério, respondi com sinceridade que era com ela – ao que Alicia riu, como quem não se comprazia, e disse meio zombeteira:

Não desperdice seus pensamentos assim, pequena Beatrice. Mas venha comigo, criança, se quiser, pois tenho uma estranha fantasia com seus olhos solenes. Talvez o calor de sua jovem vida possa derreter o gelo que congelou ao redor de meu coração desde que cheguei a esta fria família.

E, embora não entendesse o que ela queria dizer, fui, feliz por ver a Sala Vermelha mais uma vez. Alicia me fez sentar e conversar com ela, o que fiz, pois eu não era tímida; e ela me fez muitas perguntas, algumas que pensei que ela não deveria ter feito, mas não pude respondê-las, então não houve mal.

Depois disso, passei uma parte de cada dia com ela na Sala Vermelha. Meu tio Hugh estava lá muitas vezes, e ele a beijava e elogiava sua beleza, sem dar atenção à minha presença pois eu era apenas uma criança.

No entanto, sempre me pareceu que ela mais suportava do que acolhia suas carícias; às vezes a chama sempre ardente em seus olhos brilhava tão lúgubre que um medo frio se apoderava de mim, e eu me lembrava do que minha tia Elizabeth havia dito, sendo uma mulher de língua amarga, embora bondosa de coração: que aquela estranha criatura ainda traria sobre todos nós alguma má sorte.

Então eu me esforçava para banir tais pensamentos e me repreendia por duvidar de alguém tão gentil comigo.

Enquanto a véspera de Natal se aproximava, minha cabeça tola estava dia e noite tomada de pensamentos do baile. Mas uma grande decepção se abateu sobre mim, pois acordei naquele dia muito doente com um resfriado muito forte; e embora eu me aguentasse bravamente, minhas tias logo descobriram. Apesar de minhas súplicas comoventes, fui colocada na cama, onde chorei amargamente e não quis ser consolada, pois pensei que não conseguiria ver a boa gente e, mais do que tudo, Alicia.

Mas essa decepção, pelo menos, foi poupada, pois à noite ela entrou em meu quarto, sabendo da minha saudade ela sempre foi indulgente com meus pequenos desejos. E quando a vi, esqueci meus membros doloridos e minha testa febril, e nem mesmo o baile eu queria ver, pois nunca uma criatura mortal foi tão adorável quanto ela, parada ali ao lado da minha cama. 

Seu vestido era branco, e não havia nada que eu pudesse comparar com o material, exceto o luar caindo através de uma vidraça fosca, e dele saiam seus seios e braços cintilantes, tão nus que me envergonhava olhar para eles. No entanto, não se podia negar que eles eram de uma beleza maravilhosa, brancos como mármore polido.

E ao redor de sua garganta nevada e braços arredondados, e nas massas de seus esplêndidos cabelos, havia pedras cintilantes, reluzentes, com corações de pura luz, que agora sei que eram diamantes, mas não sabia então, pois nunca tinha visto qualquer coisa assim.

E eu olhei para Alicia, bebendo de sua beleza até que minha alma estivesse cheia, enquanto ela estava como uma deusa diante de seu adorador. Acho que ela leu o pensamento em meu rosto e gostou – era uma mulher vaidosa, e para tal até a admiração de uma criança é doce.

Então ela se inclinou para mim até que seus olhos esplêndidos olharam diretamente para os meus, deslumbrados.

— Diga-me, pequena Beatrice, pois dizem que a palavra de uma criança deve ser acreditada: você me acha bonita?

Encontrei minha voz e disse a ela verdadeiramente que a achava linda além dos meus sonhos angelicais – como de fato ela era. Alicia sorriu, satisfeita.

Então meu tio Hugh entrou e, embora eu achasse que seu rosto ficou sério ao olhar para o esplendor nu dos seios e braços dela, como se não gostasse que os olhos de outros homens se regozijassem, ele a beijou com toda a força do orgulho afetuoso de um amante, enquanto ela o olhava meio zombeteira.

Então ele disse:

— Querida, você me concederia um favor?

E ela respondeu:

— Pode ser que sim.

E ele disse:

— Não dance com aquele homem esta noite, Alicia. Eu desconfio muito dele.

Sua voz tinha mais um comando de marido do que uma súplica de amante. Ela o olhou com algum desprezo, mas, quando viu o rosto dele ficar severo – pois os Montressors toleravam pouco desrespeito à sua autoridade, como eu tinha boas razões para saber –, ela pareceu mudar e um sorriso surgiu em seus lábios, embora seus olhos tenham brilhado maliciosamente.

Então Alicia colocou os braços em volta do pescoço dele e – embora me parecesse que ela o estrangulou enquanto o abraçava – a voz dela era maravilhosamente doce e acariciante enquanto murmurava em seu ouvido.

Ele riu e seu semblante suavizou, embora ainda tenha dito:

— Não me tente demais, Alicia.

Então eles saíram, ela um pouco à frente e muito majestosa. Depois disso também entraram minhas tias, muito bem-vestidas e modestamente, mas, depois de Alicia, não me impressionaram. Fui apanhada na armadilha de sua beleza, e o desejo de vê-la novamente cresceu tanto em mim que depois de um tempo fiz uma coisa inde- vida e desobediente.

Eu tinha sido obrigada a ficar na cama, mas me levantei e vesti um roupão. Estava decidida a descer silenciosamente, caso pudesse ver Alicia, sem ser notada.

Mas quando cheguei ao grande salão, ouvi passos se aproxi- mando e, com a consciência pesada, deslizei para o lado na sala azul e me escondi atrás das cortinas para que minhas tias não me vissem.

Alicia entrou, e com ela um homem que eu nunca tinha visto. No entanto, imediatamente me lembrei de uma serpente preta e fina, com um olho brilhante e maligno, que eu tinha visto no jardim da sra. Montressor dois verões antes, e que provavelmente teria me picado. John, o jardineiro, a matara, e eu realmente pensei que, se ela tivesse alma, devia ter entrado naquele homem.

Alicia se sentou e ele ao lado dela, e quando a abraçou, ele beijou seu rosto e lábios. Ela também não recuou de seu abraço, mas até sorriu e se inclinou para mais perto dele com um movimento suave, enquanto eles conversavam em alguma língua estranha e estrangeira.

Eu era apenas uma criança inocente, não sabia nada de honra e desonra. No entanto, me parecia que nenhum homem deveria beijá-la, exceto meu tio Hugh, e desde aquela hora eu desconfiei de Alicia, embora não entendesse então o que fiz depois.

E enquanto eu os observava – sem pensar em bancar a espiã –, vi o rosto dela ficar subitamente frio, e Alicia se endireitou e afastou os braços de seu amante.

Segui os olhos culpados dela até a porta, onde estava meu tio Hugh, e todo o orgulho e paixão dos Montressors estavam em suas sobrancelhas baixas. Ele avançou quando Alicia e a serpente se se- pararam e se levantaram.

A princípio, ele não olhou para a esposa culpada, mas para o amante dela, e deu-lhe um tapa forte no rosto. Ao que ele, sendo um covarde de coração, como todos os vilões, empalideceu e se esgueirou da sala com uma ameaça murmurada.

Meu tio virou-se para Alicia e, com muita calma e terror, disse:

— A partir desta hora, você não é mais minha esposa!

E havia no tom algo que dizia que seu perdão e amor nunca mais deveriam ser dela.

Então ele gesticulou para que ela saísse e Alicia foi, como uma rainha orgulhosa, com sua gloriosa cabeça erguida e nenhuma vergonha na expressão.

Quanto a mim, quando eles se foram, fui embora, atordoada, e voltei para minha cama, tendo visto e ouvido mais do que eu imaginara, como pessoas desobedientes e bisbilhoteiras sempre fazem.

Mas meu tio Hugh manteve sua palavra, e Alicia não era mais sua esposa, salvo no nome. No entanto, fofocas ou escândalos não houve, pois o orgulho da família manteve em segredo sua desonra, e ele nunca pareceu outro que um marido cortês e respeitoso.

Nem a sra. Montressor e minhas tias, embora se questionassem muito, ficaram sabendo, pois não ousavam questionar nem seu irmão nem Alicia, que se comportava tão altiva como sempre, e parecia não ansiar nem por amante nem por marido. Quanto a mim, ninguém imaginou que eu soubesse de nada, e guardei segredo sobre o que tinha visto na sala azul na noite do baile de Natal.

Depois do Ano-Novo, fui para casa, mas logo a sra. Montres- sor me chamou outra vez, dizendo que a casa estava solitária sem a pequena Beatrice. Então voltei e encontrei tudo inalterado, embora o Place estivesse muito quieto, e Alicia saísse pouco da Sala Vermelha.

Vi pouco meu tio, exceto quando ele ia e vinha para os negócios de sua propriedade, um pouco mais sério e silenciosamente que antes, ou me trazia livros e doces da cidade.

Mas todos os dias eu ficava com Alicia na Sala Vermelha, onde ela falava comigo, muitas vezes de forma selvagem e estranha, mas sempre gentil. E embora eu ache que a sra. Montressor não gostasse muito de nossa intimidade, ela não disse uma palavra, e eu ia e voltava conforme conversava com Alicia, embora não gostasse muito de seus modos estranhos e do fogo inquieto em seus olhos.

Nem jamais a beijava, depois de ter visto seus lábios pressionados pelos da cobra, embora ela às vezes me persuadisse e ficasse mesquinha e irritada quando eu não a beijava; mas ela não adivinhou meus motivos.

Março chegou naquele ano como um leão, extremamente faminto e feroz, e meu tio Hugh havia cavalgado por uma tempestade e não pensava em voltar por alguns dias.

À tarde, eu estava sentada no corredor da ala, sonhando devaneios maravilhosos, quando Alicia me chamou para a Sala Vermelha.

E enquanto ia, me maravilhei com a beleza da mulher, pois suas bochechas estavam coradas e suas joias, opacas diante do brilho de seus olhos. A mão dela, quando pegou a minha, estava muito quente, e sua voz tinha um toque estranho.

— Venha, pequena Beatrice disse ela, venha falar comigo, pois não sei o que fazer com o meu eu solitário hoje. O tempo paira pesadamente nesta casa sombria. Acho que esta Sala Vermelha tem uma influência maligna sobre mim. Veja se sua tagarelice infantil pode afastar os fantasmas que se revoltam nestes cantos escuros e velhos – fantasmas de uma vida arruinada e envergonhada! Não, não se encolha – falo descontroladamente? Não me leve tão a sério, meu cérebro parece em chamas, pequena Beatrice. Venha; pode ser que você conheça alguma velha lenda sombria desta sala – certamente deve haver uma. Nunca um lugar foi mais adequado para um ato sombrio! Não fique tão assustada, criança – esqueça meus caprichos. Conte-me agora e ouvirei.

Ao que ela se sentou com agilidade no sofá de cetim e virou seu lindo rosto para mim. Então juntei minha perspicácia e contei a ela o que eu não deveria saber: como, gerações antes, um Mon- tressor havia desonrado a si mesmo e seu nome, e que, quando ele voltou para casa para sua mãe, ela o encontrou naquela mesma Sala Vermelha e o insultou e recriminou por ter esquecido o seio que o havia nutrido; e que ele, frenético de vergonha e desespero, voltou sua espada contra o próprio coração e assim morreu. Mas a mãe dele enlouqueceu de remorso e foi mantida prisioneira na Sala Vermelha até a morte.

Assim contei a história, como eu ouvira minha tia Elizabeth contar. Alicia me ouviu e não disse nada, exceto que era uma história digna dos Montressors. Retruquei, pois eu também era uma Montressor e tinha orgulho disso.

Mas ela segurou minha mão suavemente e disse:

— Pequena Beatrice, se amanhã ou depois elas, essas mulheres frias e orgulhosas, disserem que Alicia não era digna de seu amor, diga-me, você acreditaria?

E eu, lembrando do que tinha visto na sala azul, fiquei em silêncio, pois não podia mentir. Então Alicia jogou minha mão para longe com uma risada amarga, e pegou da mesa uma pequena adaga com um cabo incrustrado de joias.

Parecia um brinquedo de aparência cruel e falei isso – ao que ela sorriu e deslizou seus dedos brancos pela lâmina fina e brilhante de uma maneira que me deu calafrios

– Um golpezinho com isto disse ela -, um golpezinho e o coração não bate mais, o cérebro cansado descansa, os lábios e os olhos nunca mais sorriem!

E eu, sem compreendê-la, mas tremendo, implorei-lhe que a deixasse de lado, o que ela fez descuidadamente e, colocando a mão sob meu queixo, virou meu rosto para o dela.

— Pequena Beatrice de olhos sérios, seja sincera, ficaria triste se nunca mais se sentasse aqui com Alicia nesta mesma Sala Vermelha?

E respondi com seriedade que sim, feliz por poder dizer tanta verdade. Então o rosto dela ficou tenro e Alicia suspirou profundamente.

Ela abriu uma caixa exótica e incrustada e tirou dela uma corrente de ouro brilhante de raro acabamento e design requintado, e a pendurou em meu pescoço. Não me permitiu agradecer, mas colocou a mão suavemente em meus lábios.

— Agora vá — disse ela. — Mas antes que você me deixe, pequena Beatrice, conceda-me apenas um favor – pode ser que eu nunca lhe peça outro. Seu povo, eu sei, aqueles frios Montressors, pouco se importam comigo, mas mesmo com todos os meus defeitos, sempre fui gentil com você. Então, quando o amanhã chegar, e eles lhe disserem que Alicia está morta, não pense em mim apenas com desprezo, mas tenha um pouco de piedade, pois nem sempre fui o que sou agora, e poderia nunca ter me tornado assim se uma criancinha como você estivesse sempre perto de mim, para me manter pura e inocente. E eu adoraria que você me abraçasse e me desse um beijo.

E assim fiz, admirando-me muito com seus modos – pois havia neles uma estranha ternura e uma espécie de desejo desesperado. Em seguida, ela gentilmente me tirou do quarto, e eu me sentei meditando junto à janela do corredor até a noite cair – foi uma noite terrível, de tempestade e escuridão. E pensei em como era bom que meu tio Hugh não voltasse numa tempestade assim. No entanto, antes que o pensamento esfriasse, a porta se abriu e ele caminhou pelo corredor, sua capa encharcada e torcida pelo vento. Em uma mão, um chicote, como se ele tivesse saltado de seu cavalo; na outra, o que parecia ser uma carta amassada.

O rosto dele estava tão sombrio quanto a noite, e ele não prestou atenção em mim enquanto eu corria atrás dele, pensando egoisticamente nos doces que ele havia prometido me trazer mas não pensei mais neles quando cheguei à porta da Sala Vermelha.

Alicia estava ao lado da mesa, de capa como se vestida para uma viagem, mas seu capuz havia deslizado para trás e seu rosto aparecia nele branco como mármore, exceto onde seus olhos coléricos queimavam, com medo, culpa e ódio em suas profundezas; e ela tinha um braço levantado como se fosse empurrá-lo para trás.

Quanto ao meu tio, ele estava diante dela e não vi seu rosto, mas sua voz era baixa e terrível, falando palavras que eu não entendia naquela época, embora muito tempo depois viesse a saber o significado delas.

Ele a desprezou por ela ter pensado em fugir com o amante, jurou que nada mais impediria sua vingança e fez outras ameaças, selvagens e terríveis.

No entanto, Alicia não disse palavra até que ele terminou, e então ela falou, mas o que disse não sei, exceto que estava cheio de ódio e provocação e acusações selvagens, tal qual uma mulher louca poderia ter proferido.

E ela até o desafiou a impedir sua fuga, embora meu tio lhe dissesse que cruzar aquele limiar significaria sua morte; pois ele era um homem injustiçado e desesperado e não pensava em nada além de sua própria desonra.

Então Alicia fez menção de passar por ele, mas meu tio a pegou pelo pulso branco; ela se virou para ele com fúria, e vi sua mão direita estender-se furtivamente na mesa atrás dela, onde estava a adaga.

— Me solte! sibilou ela.

E ele disse:

— Não solto.

Então Alicia se virou e o golpeou com a adaga – e nunca vi uma expressão como a dela naquele momento.

Meu tio caiu pesadamente, mas a segurou mesmo enquanto morria, de modo que Alicia teve que se libertar, com um grito que ainda ecoa em meus ouvidos à noite quando o vento uiva sobre os pântanos chuvosos. Ela passou correndo por mim e fugiu pelo corredor como uma criatura caçada, e ouvi a pesada porta bater atrás dela.

Quanto a mim, fiquei ali olhando para o morto, pois não conseguia me mexer nem falar e parecia ter morrido de horror. E logo eu não sabia nada, nem me lembrei de nada por muitos dias, enquanto fiquei de cama, doente de febre e mais propensa a morrer do que viver.

Assim, quando enfim saí da sombra da morte, meu tio Hugh estava frio em seu túmulo havia muito tempo, e a caçada por sua esposa culpada acabara, já que nada tinha sido visto ou ouvido falar dela desde que fugira do país com seu amante estrangeiro.

Quando me recordei, eles me questionaram a respeito do que eu tinha visto e ouvido na Sala Vermelha. E contei-lhes o melhor que pude, embora muito magoada por eles não responderem minhas perguntas e por não fazerem nada além de me pedir que ficasse quieta e não pensasse no assunto.

Então minha mãe, muito aborrecida com minhas aventuras que, é verdade, eram apenas lamentáveis para uma criança —, me levou para casa. Ela também não me deixou ficar com a corrente de Alicia, mas se livrou dela, de que forma eu não sabia e pouco me importava, pois a visão dela era repugnante para mim.

Passaram-se muitos anos até que voltei a Montressor Place, e nunca mais vi a Sala Vermelha, pois a sra. Montressor mandou demolir a velha ala, considerando suas lembranças dolorosas como uma herança sombria o suficiente para o próximo Montressor.

Então, neto, a triste história acabou, e você não verá a Sala Vermelha quando for no mês que vem a Montressor Place. No en- tanto, as andorinhas ainda cantam sob os beirais – não sei se você entenderá a fala delas como eu entendi.

Conto – “Razão”, de Isaac Asimov

Meio ano mais tarde, os rapazes haviam mudado de opinião. O calor chamejante de um Sol gigantesco cedera lugar à suave escuridão do espaço, mas as variações externas pouco significaram no trabalho de verificar o funcionamento de robôs experimentais. Qualquer que fosse o meio ambiente, encontravam-se sempre diante de um inescrutável cérebro positrônico, que os gênios manipuladores de réguas de cálculo afirmavam que deveriam funcionar assim ou assado.

Só que não funcionavam. Powell e Donovan deram-se conta do fato antes mesmo de duas semanas de estada na Estação Espacial. Gregory Powell falou pausadamente, dando ênfase a cada sílaba: – Donovan e eu montamos você há uma semana.

Tinha a testa franzida e puxava a ponta do bigode com ar de dúvida.

O interior do salão de oficiais da Estação Solar Cinco estava silencioso, exceto pelo suave zumbido do potente Diretor de Raios, situado em algum ponto das profundezas da Estação.

O Robô QT-1 permanecia imóvel, sentado. As placas polidas de seu corpo brilhavam sob as Luxitas e o vermelho profundo e ardente de células fotoelétricas que lhe serviam de olhos estava fixado no homem sentado ao outro lado da mesa.

Powell conseguiu reprimir um súbito ataque de nervos. Estes robôs possuíam cérebros peculiares. Oh, as três Leis da Robótica permaneciam imutáveis. Tinham de permanecer. Todos os membros da U. S. Robôs, desde o próprio Robertson até o mais novo faxineiro, insistiam nisso.

Portanto, o QT-1 era garantido! Não obstante… os modelos QT eram os primeiros de seu tipo e este era o primeiro dentre eles. Nem sempre símbolos matemáticos rabiscados num papel são a proteção mais reconfortante contra a realidade robótica.

Afinal, o robô falou. Sua voz tinha o timbre frio, característico de um diafragma metálico.

– Está consciente da gravidade de tal declaração, Powell?

– Algo fez você, Cutie – argumentou Powell. – Você mesmo admite que sua memória parece ter surgido subitamente, já em completo estado de formação, há uma semana; antes disso, apenas um vácuo. Estou dando a explicação do fato. Donovan e eu montamos você, utilizando as peças que nos foram enviadas da Terra.

Cutie olhou para seus dedos longos e delgados, numa atitude de mistificação estranhamente humana.

– Creio que deve haver explicação mais satisfatória do que essa. Parece-me improvável que vocês tenham feito a mim!

O homem riu repentinamente.

– Bolas! Por que motivo?

– Pode chamar de intuição. É tudo, pelo menos até o momento. Todavia, pretendo raciocinar e resolver o problema. Uma cadeia de raciocínio válido só pode levar ao estabelecimento da verdade e insistirei até chegar a ela.

Powell ergueu-se da cadeira e sentou-se na beira da mesa, perto do robô. Subitamente, sentia simpatia por aquela estranha máquina. Não era absolutamente igual a um robô comum, que se entregasse à sua tarefa especializada na Estação Solar com a intensidade provocada por um circuito positrônico profundamente imbuído.

Pousou a mão no ombro de Cutie, sentindo o metal duro e frio de encontro à mesma.

– Cutie – disse ele. – Vou tentar explicar-lhe algo. Você é o primeiro robô que jamais mostrou qualquer curiosidade a respeito de sua própria existência e creio que é o primeiro robô que realmente possui inteligência bastante para compreender o mundo exterior. Venha comigo.

O robô ergueu-se suavemente e as solas de seus pés, forradas por espessa camada de espuma de borracha, não fizeram o menor ruído quando ele acompanhou Powell.

O homem apertou um botão e um painel quadrado da parede afastou-se para o lado. A vidraça grossa e limpa revelou o espaço pontilhado de estrelas.

– Já vi isso através das vigias de observação da sala do motor – disse Cutie.

– Eu sei – retrucou Powell. – O que pensa que é isso?

– Exatamente o que parece… um material negro logo além do vidro, cheio de pequenos pontos brilhantes. Sei que nosso aparelho diretor lança raios em direção a algum desses pontos, sempre os mesmos, e também que os pontos mudam de posição e os raios os acompanham. Isso é tudo.

– Muito bem! Agora, quero que ouça com o maior cuidado. A escuridão é o vasto vácuo, que se prolonga infinitamente. Os pequenos pontos brilhantes são enormes massas de matéria carregada de energia. São globos, alguns deles com milhões de quilômetros de diâmetro. Para uma comparação, saiba que nossa Estação tem apenas um quilômetro e meio de comprimento. Parecem tão pequeninos porque estão incrivelmente afastados de nós. Os pontos para os quais nossos raios de energia estão dirigidos são muito menores e mais próximos. São duros e frios; neles vivem seres humanos como eu; muitos bilhões deles. Donovan e eu viemos de um desses mundos. Nossos raios alimentam esses mundos com energia retirada de um dos grandes globos incandescentes, que se encontra perto de nós. Nós o chamamos Sol e ele se acha no outro lado da Estação, onde você não o pode ver.

Cutie permanecia imóvel diante da vidraça, como uma estátua de aço. Nem virou a cabeça ao indagar: – De que ponto luminoso vocês alegam ter vindo.

Powell procurou por alguns instantes.

– Ali está. Aquele ponto muito brilhante, no canto. Nós o chamamos Terra – explicou, sorrindo. – A velha e boa Terra. Lá existem três bilhões de seres humanos como nós, Cutie. E dentro de duas semanas, mais ou menos, lá estaremos de volta.

Então, de modo bastante surpreendente, Cutie começou a zumbir distraidamente. Não era propriamente uma melodia, mas um som curioso, como de cordas tangidas.

Cessou tão bruscamente quanto havia começado.

– Mas de onde venho eu, Powell? Você não explicou a minha existência.

– O resto é simples. Logo que estas Estações foram instaladas, com o objetivo de fornecer energia solar aos planetas, eram controladas por seres humanos. Contudo, o calor, as fortes radiações solares e as tempestades de elétrons tornavam a tarefa muito difícil. Aperfeiçoaram-se robôs especializados para substituir a mão-de-obra humana e atualmente são necessários apenas dois homens em cada Estação. Estamos procurando substituir até mesmo esses homens e é justamente aí que você entra na história. Você é o mais aperfeiçoado tipo de robô já fabricado e, se demonstrar capacidade para controlar independentemente esta Estação, nenhum ser humano terá necessidade de vir até aqui, exceto para trazer as peças necessárias à manutenção do serviço. Tornou a apertar o botão e o painel metálico voltou ao lugar. Powell retornou à mesa e limpou uma maçã com a manga, antes de mordê-la.

O brilho vermelho dos olhos do robô fixou-se nele.

– Espera que eu acredite numa hipótese tão complicada e implausível como a que acaba de expor? – indagou Cutie vagarosamente. – O que pensa que eu sou?

Powell engasgou-se, cuspindo alguns pedaços de maçã em cima da mesa e ficando muito vermelho.

– Ora, com os diabos! Não é uma hipótese! São fatos!

Cutie replicou em tom sóbrio e determinado: – Globos de energia com milhões de quilômetros de diâmetro! Mundos com bilhões de seres humanos! Vácuo infinito! Sinto muito, Powell, mas não acredito. Vou raciocinar e resolverei sozinho o enigma. Até logo. Virou-se e saiu da sala. Passou por Michael Donovan, junto à porta, com um solene aceno de cabeça, e seguiu pelo corredor, ignorando o olhar espantado com que o homem o acompanhou. Mike Donovan passou a mão pelo cabelo ruivo e lançou um olhar aborrecido em direção a Powell.

– De que estava falando aquele monte de sucata? No que ele não acredita?

O outro puxou o bigode, com ar azedo.

– Ele é um céptico – foi a amarga resposta. – Não acredita que nós o fabricamos; não acredita na existência da Terra, do espaço e das estrelas.

– Com os diabos! Temos de lidar com um robô lunático!

– Ele diz que raciocinará e descobrirá sozinho a resposta.

– Bem – disse Donovan, suavemente. – Nesse caso, espero que tenha a condescendência de explicar-me tudo, depois de raciocinar bastante.

Então, num súbito ataque de raiva: – Ouça! Se aquele monte de metal falar comigo nesse tom, arrancar-lhe-ei o crânio de cromo do pescoço!

Sentou-se impulsivamente e tirou do bolso do casaco um livro de mistério, concluindo: – De qualquer forma, aquele robô me causa arrepio… é curioso demais!

Mike Donovan soltou um grunhido, com a boca cheia de sanduíche de alface e tomate, quando Cutie bateu devagar na porta e entrou na sala.

– Powell está?

Donovan respondeu com voz abafada, fazendo pausas para mastigar: – Está coletando dados sobre funções de corrente eletrônica. Parece que estamos indo em direção a uma tempestade de elétrons.

Gregory Powell, com os olhos pregados numa folha de papel milimetrado que trazia nas mãos, entrou naquele instante e deixou-se cair numa poltrona. Abriu o papel em cima da mesa e começou a fazer cálculos. Donovan, mastigando a alface e lambendo restos de pão colados aos lábios, espiou por cima do ombro do companheiro. Cutie esperou em silêncio.

Powell ergueu a cabeça.

– O potencial zeta está subindo, mas devagar. Ainda assim, as funções de corrente são erráticas e não sei o que esperar. Oh, alô, Cutie. Julguei que você estivesse supervisionando a instalação da nova barra de força.

– Já está instalada – replicou tranquilamente o robô.

– Vim para conversar com vocês dois.

– Oh! – exclamou Powell, parecendo pouco à vontade. – Bem, sente-se. Não, não nessa cadeira. Uma das pernas está meio fraca e você não é exatamente um peso-mosca.

O robô obedeceu e disse placidamente: – Cheguei a uma conclusão.

Donovan olhou-o raivosamente, deixando de lado o resto do sanduíche.

– Se é alguma daquelas ideias malucas…

Powell fez um gesto impaciente, exigindo silêncio.

– Prossiga, Cutie. Estamos escutando.

– Passei estes últimos dois dias em concentrada introspecção – disse o robô. – Os resultados foram deveras interessantes. Comecei pela única suposição que me senti autorizado a fazer: existo porque penso, logo…

Powell soltou um gemido.

– Por Júpiter! Um robô Descartes!

– Quem é Descartes? – quis Saber Donovan. – Ouça, se temos de ficar aqui para escutar esse maníaco metálico…

– Cale-se, Mike!

Cutie continuou, imperturbável: – E a questão que logo surgiu foi: qual é a causa da minha existência?

Powell trincou os dentes.

– Está sendo um tolo. Já lhe disse que nós o fabricamos.

– E se não acredita, teremos o máximo prazer em desmontá-la – acrescentou Donovan.

O robô abriu as mãos fortes, num gesto de desprezo.

– Não aceito coisa alguma por simples declaração.

Qualquer hipótese deve ser confirmada pelo raciocínio, ou não tem validade alguma. E supor que vocês me fizeram contraria todos os ditames da lógica. Powell pousou a mão no braço de Donovan, contendo o companheiro, que cerrara raivosamente o punho.

– Por que diz isso, Cutie?

Cutie riu. Era um riso profundamente desumano – o som mais maquinal que ele produzira até então. Um riso áspero e explosivo, tão sem entonação e tão ritmado quanto o som de um metrônomo.

– Olhem só para vocês – disse, afinal. – Não digo isso com espírito de desprezo… mas olhem só para vocês!

O material de que são feitos é mole e flácido, desprovido de resistência e força, cuja energia depende da oxidação ineficiente produzida por material orgânico como… aquilo – apontou com ar de desaprovação para os restos do sanduíche de Donovan. – Entram periodicamente em estado de coma e a menor variação da temperatura, da pressão do ar, da umidade ou da intensidade da radiação compromete sua eficiência. São temporários. Eu, por outro lado, sou um produto acabado. Absorvo diretamente a energia elétrica e utilizo-a com uma eficiência de quase cem por cento. Sou feito de metal forte e resistente, permaneço continuamente consciente e posso suportar com facilidade extremas alterações de ambiente. Estes são os fatos que, apoiados pela óbvia proposição de que nenhum ser é capaz de criar outro ser superior a si próprio, arrasam totalmente a sua tola hipótese.

As imprecações murmuradas por Donovan tornaramse ininteligíveis e ele se ergueu de um pulo, com as sobrancelhas ruivas cerradas sobre o nariz.

– Muito bem, “seu” filho de um pedaço de minério de ferro, se não fomos nós que o fabricamos, quem o fez?!

Cutie meneou a cabeça com ar grave.

– Muito bem, Donovan. Essa era exatamente a questão seguinte. Evidentemente, meu criador tem de ser mais poderoso que eu; portanto, só existe uma única possibilidade.

Os dois homens ficaram estarrecidos e Cutie prosseguiu : – Qual é o centro de atividade aqui na Estação? A quem todos nós servimos? O que absorve toda a nossa atenção?

Esperou, com ar de expectativa.

Donovan virou-se espantado para o companheiro.

– Aposto que esse maluco de lata está falando no conversor de energia.

– É isso mesmo, Cutie? – indagou Powell, sorrindo.

– Estou falando no Mestre – foi a resposta áspera e fria.

Donovan explodiu em sonora gargalhada e Powell soltou uma risadinha contida.

Cutie ergueu-se e seus olhos brilhantes passaram de um homem para outro.

– Mesmo assim, – continuou – é a verdade e não me espanto de que se recusem a acreditar nela. Tenho certeza de que vocês dois não permanecerão aqui por muito tempo. O próprio Powell disse que, no princípio, apenas homens serviam o Mestre; depois, seguiram-se os robôs, para o serviço de rotina; finalmente, vim eu, para o trabalho de supervisão. Não há dúvida de que os fatos são reais, mas a explicação é inteiramente desprovida de lógica. Querem conhecer a verdade por trás de tudo isso?

– Prossiga, Cutie. É muito divertido.

– Em primeiro lugar, o Mestre criou os seres humanos, como o tipo mais primitivo e mais fácil de fazer. Gradativamente, substituiu-os por robôs, que foi o passo seguinte. Finalmente, criou a mim, para tomar o lugar dos últimos seres humanos. De agora em diante, eu sirvo ao Mestre.

– Nada disso – disse asperamente Powell. – Você obedecerá as nossas ordens e ficará quieto até que estejamos convencidos de que é capaz de controlar o conversor. Entendeu? Aprenda bem: o conversor! Nada de Mestre! E, se você não nos satisfizer, será desmontado. Agora, se não se importa, pode dar o fora daqui. Leve esses dados e arquive-os devidamente.

Cutie pegou os gráficos que lhe foram entregues e saiu sem outra palavra. Donovan recostou-se pesadamente na poltrona e passou os dedos pelos cabelos ruivos.

– Esse robô vai causar encrencas. É completamente doido!

Na sala de controle, o zumbido do conversor de energia era mais forte, mesclado com o barulho regular dos contadores Geiger e com os sons irregulares de meia dúzia de sinais luminosos.

Donovan retirou o olho do telescópio e ligou as Luxitas.

– O raio da Estação Quatro chegou a Marte no horário previsto. Podemos desligar o nosso, agora.

Powell assentiu distraidamente.

– Cutie está lá embaixo, na sala do motor. Ligarei o sinal e ele poderá cuidar de tudo. Olhe aqui, Mike. O que pensa destes cálculos?

O outro examinou os números e assoviou.

– Rapaz, isso é que eu chamo de intensidade de raios gama! O velho Sol está mesmo animado…

– Sim – foi a resposta azeda. – E também estamos em má situação para a tempestade de elétrons. Nosso raio para a Terra está exatamente na rota provável da tempestade.

Afastou a cadeira da mesa, num gesto de irritação.

– Diabo! Se ao menos a tempestade demorasse até sermos substituídos… Mas ainda faltam dez dias. Ouça, Mike. Dê um pulo lá embaixo e mantenha-se de olho em Cutie, está bem?

– Certo. Jogue umas almôndegas.

Pegou no ar o saco de almôndegas que Powell lhe atirou e seguiu até o elevador.

A cabina desceu num movimento suave e parou no estreito passadiço existente na enorme sala do motor. Donovan debruçou-se sobre o corrimão e olhou para baixo.

Os gigantescos geradores estavam funcionando e os tubos-L produziam o zumbido grave que se espalhava pela Estação inteira.

Distinguiu o vulto grande e brilhante de Cutie junto ao tubo-L de Marte, observando com atenção a equipe de robôs que trabalhava com grande precisão.

Naquele instante, Donovan contraiu todos os músculos.

Os robôs, parecendo minúsculos em comparação ao enorme tubo-L, alinharam-se diante deste e curvaram as cabeças, enquanto Cutie andava lentamente ao longo da fila.

Passaram-se quinze segundos. Então, com um ruído metálico audível apesar do forte zumbido que enchia o local, deixaram-se cair de joelhos.

Donovan soltou um berro e desceu correndo a estreita escada. Partiu em direção aos robôs, com o rosto tão vermelho quanto os cabelos, os punhos cerrados esmurrando o ar.

– Que diabo é isto, seus miseráveis ignorantes? Vamos! Tratem de cuidar do tubo-L! Se não os desmontarem, limparem e tornarem a montá-lo antes do final do dia, coagularei seus cérebros com uma corrente alternada.

Nenhum dos robôs se moveu! Até Cutie, na extremidade oposta – o único que estava de pé –, permaneceu em silêncio, os olhos fixo no interior obscuro da enorme máquina.

Donovan empurrou com força o robô mais próximo.

– Levante-se! – berrou.

Vagarosamente, o robô obedeceu. Seus olhos fotolétricos fitaram o homem com ar de reprovação.

– O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta – declarou ele.

– Quê?

Donovan se deu conta de que vinte pares de olhos mecânicos se fixavam nele; vinte vozes de timbre metálico repetiram solenemente: – O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta!

Cutie interveio: – Temo que meus amigos obedeçam agora a alguém superior a você.

– Uma ova! Caia fora daqui. Mais tarde, acertarei contas com você. Agora, cuidarei desses brinquedos animados.

Cutie sacudiu vagarosamente a pesada cabeça.

– Sinto muito, mas você não está compreendendo. Eles reconhecem o Mestre, agora que lhes ensinei a verdade. Todos eles. Tratam-me de Profeta.

Baixando a cabeça, acrescentou: – Talvez eu seja indigno, mas…

Donovan recuperou o fôlego e resolveu usá-lo.

– É mesmo? Ora, não é lindo? Não é realmente lindo? Pois deixe que eu lhe diga uma coisa, seu macaco de metal! Não existe Mestre algum, não existe qualquer Profeta e não há a menor dúvida sobre quem dá as ordens aqui. Compreende? – sua voz se ergueu num rugido de raiva. – Agora, caia fora!

– Obedeço apenas ao Mestre. – Ao diabo com o Mestre! – berrou Donovan, cuspindo no tubo-L. – Tome isso, para o seu Mestre! Faça o que estou mandando!

Cutie não se moveu. Os outros robôs também não. Mas Donovan sentiu um súbito aumento de tensão. Os olhos frios e fixos assumiram uma tonalidade mais profunda de vermelho. Cutie parecia mais rígido do que nunca.

– Sacrilégio – murmurou, com voz metálica carregada de emoção. Donovan sentiu o primeiro sintoma de medo quando Cutie se aproximou dele. Um robô era incapaz de sentir raiva… Mas os olhos de Cutie eram indecifráveis.

– Sinto muito, Donovan – declarou ele. – Mas não poderá permanecer aqui, depois disso. De agora em diante, você e Powell estão proibidos de entrar na sala de controle e na sala do motor.

Sua mão esboçou um gesto calmo. Num instante, dois robôs seguraram os braços de Donovan. Este mal teve tempo para engolir em seco. Foi erguido do chão e levado rapidamente pela escada.

Gregory Powell caminhava rapidamente de um lado para outro da sala de oficiais, com os punhos cerrados.

Lançou um olhar de furiosa frustração à porta fechada e virou-se para Donovan com uma carranca de amargura.

– Por que diabo você cuspiu no tubo-L?

Mike Donovan, derreado na poltrona, bateu com força nos braços da mesma.

– Que esperava você que eu fizesse com aquele espantalho eletrificado? Não me vou curvar diante de um maldito aparelho que eu mesmo montei.

– Não – replicou o outro, azedo. – Mas, agora, está aqui, preso na sala de oficiais, com dois robôs de sentinela lá fora. Isso não é curvar-se, é?

Donovan rosnou: – Espere até voltarmos à Base. Alguém vai pagar por isto. Os robôs precisam obedecer-nos. É a Segunda Lei.

– Que adianta dizer? Não estão obedecendo. E provavelmente existe algum motivo, que só conseguiremos descobrir tarde demais. Por falar nisso, sabe o que vai acontecer conosco, quando regressarmos à Base?

Estacou diante da poltrona de Donovan, encarandoo raivosamente.

– O quê?

– Oh, nada! Só teremos de voltar às minas de Mercúrio, por um período de vinte anos. Ou talvez nos mandem para a penitenciária de Ceres.

– De que está falando?

– Da tempestade de elétrons que se aproxima. Sabe que se está dirigindo exatamente para o centro do raio da Terra? Eu acabei de calcular isso, quando aquele robô me arrancou da cadeira.

Donovan empalideceu subitamente.

– Oh, com os diabos!

– E sabe o que vai acontecer ao raio? Ao que tudo indica, porque a tempestade vai ser para valer, o raio vai pular como uma pulga com coceiras. Com apenas Cutie nos controles, vai sair de foco… Se sair, Deus tenha piedade da Terra… e de nós!

Antes mesmo que Powell terminasse de falar, Donovan lançou-se para a porta, tentando desesperadamente abri-la. Quando conseguiu, disparou para o corredor e… esbarrou num implacável braço de aço.

O robô fitou indiferentemente o homem frenético e ofegante.

– O Profeta ordena que não saiam. Obedeçam, por favor!

O braço o empurrou e Donovan rodopiou para trás. Naquele momento, Cutie surgiu na esquina do corredor. Fez um gesto, dispensando os robôs que estavam de guarda, entrou na sala e fechou suavemente a porta.

Donovan virou-se para ele, mudo de indignação. Afinal, conseguiu recobrar a fala.

– Isto já foi longe demais! Você pagará pelo que fez!

– Não se irrite, por favor – disse delicadamente o robô. – Teria de acontecer algum dia, de qualquer forma. Compreendam: vocês perderam a utilidade e foram despojados de suas funções.

– Um momento – falou Powell, empertigando-se. – Que quer dizer com fornos despojados de nossas funções?

– Até eu ser criado, vocês cuidavam do Mestre – respondeu Cutie. – Agora, o privilégio passou a ser meu e a única razão que vocês tinham para existir desapareceu. Não é óbvio?

– Não muito – retrucou Powell, com amargura. – Mas que espera que façamos agora?

Cutie não respondeu de imediato. Permaneceu calado, como se refletisse. Então, passou um braço por sobre o ombro de Powell e agarrou o pulso de Donovan com a outra mão, puxando-o para si.

– Gosto de vocês dois. São criaturas inferiores, com fraca capacidade de raciocínio, mas, na realidade, sinto uma espécie de afeição por vocês. Serviram bem ao Mestre e serão devidamente recompensados por Ele. Agora, que seus serviços terminaram, é provável que não continuem a existir por muito mais tempo; mas enquanto existirem, receberão roupas, alimentos e abrigo, desde que se mantenham afastados da sala de controle e da sala do motor.

 – Ele está nos aposentando, Greg! – berrou Donovan. – Faça alguma coisa! É humilhante!

– Ouça, Cutie. Não podemos permitir isto. Somos os patrões! Esta Estação foi criada por seres humanos como nós; seres humanos que vivem na Terra e em outros planetas. A Estação é apenas um posto distribuidor de energia. E você é apenas um… Ora, bolas!

Cutie meneou gravemente a cabeça.

– Trata-se de uma obsessão. Por que insistem em encarar a vida sob um ponto de vista tão falso? Admitindo que os não-robôs sejam desprovidos da faculdade de raciocinar, ainda resta o problema de…

Sua voz sumiu, dando lugar a um silêncio introspectivo. Donovan murmurou em tom veemente: – Se você tivesse uma cara de carne e osso, eu a partiria!

Powell cofiou o bigode, franzindo a testa.

– Ouça, Cutie. Se a Terra não existe, como pode explicar o que você vê através do telescópio?

– Perdão!

O homem sorriu.

– Apanhei-o, hem? Desde que foi montado, Cutie, você fez uma série de observações telescópicas. Reparou que vários daqueles pontos luminosos se transformam em discos, quando vistos através das lentes?

– Oh, isso! Certamente. É um simples aumento, para permitir que o raio seja dirigido com maior exatidão.

– Então, por que as estrelas não são aumentadas da mesma maneira?

– Refere-se aos outros pontos? Bem, não dirigimos raios para eles, de modo que não é necessário aumentá-los. Na verdade, Powell, até mesmo você deveria ser capaz de descobrir essas coisas por si próprio.

Powell ergueu os olhos, desanimado.

– Mas, através do telescópio, você vê mais estrelas.

De onde vêm elas? Com os diabos, Cutie, de onde vêm elas? Cutie ficou irritado.

– Escute, Powell. Pensa que vou perder meu tempo tentando arranjar interpretações físicas para todas as ilusões de óptica causadas por nossos instrumentos? Desde quando a evidência fornecida por nossos sentidos pode competir com a luz clara do raciocínio lógico?

– Ouça – exclamou repentinamente Donovan, livrando-se do braço metálico amistoso, porém pesado, de Cutie. – Vamos ao âmago do assunto. Qual a razão de ser dos raios? Estamos lhe dando uma explicação válida e lógica. Pode arranjar outra melhor?

– Nossos raios são produzidos pelo Mestre para seus próprios desígnios – foi a resposta convicta. Cutie ergueu devotamente os olhos, acrescentando: – Há certas coisas que não nos cabe indagar. Nesse sentido, procuro apenas servir, sem tentar discutir.

Powell sentou-se vagarosamente, escondendo o rosto nas mãos trêmulas.

– Saia daqui, Cutie. Saia e deixe-me pensar.

– Mandar-lhes-ei comida – declarou Cutie, em tom amável.

A única resposta, quando o robô saiu, foi um gemido desanimado.

– Greg – foi a observação murmurada por Donovan em voz rouca – a situação exige estratégia. Precisamos apanhá-lo quando ele menos esperar e provocar um curto-circuito. Ácido nítrico concentrado nas juntas e…

– Não seja idiota, Mike. Acha que ele permitirá que nos aproximemos dele com ácido nas mãos? Precisamos falar com ele. É o que lhe digo. Temos de convencê-la a permitir que voltemos à sala de controle, dentro de quarenta e oito horas, ou nosso caldo estará definitivamente entornado.

Balançou-se para frente e para trás, mergulhado numa impotência agoniada.

– Quem, diabo, quer argumentar com um robô?… É… é…

– Mortificante – completou Donovan.

– Pior!

– Bolas! – exclamou Donovan, rindo de repente. – Por que argumentar? Vamos dar-lhe uma lição! Vamos construir um robô diante de seus olhos. Então, ele será obrigado a engolir tudo o que disse.

Um sorriso surgiu lentamente no rosto de Powell.

Donovan acrescentou: – S6 quero ver a cara daquele idiota quando vir o que vamos fazer!

Os robôs são fabricados na Terra, naturalmente; todavia seu transporte através do espaço é muito mais simples quando feito sob a forma de peças avulsas, que devem ser montadas no local de utilização. Por outro lado, tal processo evita que robôs inteiramente montados possam andar a esmo pela Terra. Tal fato colocaria a U. S. Robôs em confronto com as severas leis que proíbem o uso de robôs na Terra.

Ainda assim, o fato fazia com que a necessidade de montar robôs completos recaísse sobre homens como Powell e Donovan, que enfrentavam uma tarefa complicada e difícil.

Nunca Powell e Donovan tiveram tanta consciência disso quanto no dia em que, juntos na sala de montagem, entregaram-se ao trabalho de criar um robô sob o olhar atento de QT-1, Profeta do Mestre.

O robô em questão, um simples modelo MC, estava deitado sobre a mesa, quase completo. Três horas de trabalho foram suficientes para montá-lo, com exceção apenas da cabeça. Powell enxugou a testa e olhou hesitante para Cutie.

A atitude deste não era animadora. Durante três horas, Cutie permanecera sentado, silencioso e imóvel; seu rosto, sempre inexpressivo, parecia absolutamente indecifrável.

Powell disse quase num gemido: – Agora, vamos montar o cérebro, Mike!

Donovan abriu a caixa hermeticamente selada e dela retirou um segundo cubo, que ali se encontrava em banho de óleo. Abrindo o cubo, removeu um globo do envoltório de espuma de borracha. Manipulou-o com o máximo cuidado, pois tratava-se do mais delicado mecanismo que o homem já fabricara. No interior da “pele” de folha de platina que envolvia o globo, estava um cérebro positrônico, em cuja estrutura delicadamente instável encontravam-se os circuitos neurônicos especialmente calculados, que imbuíam cada robô do que se poderia considerar uma espécie de educação pré-natal.

Encaixava-se com exatidão na cavidade do crânio do robô que estava em cima da mesa. A placa de metal azulado foi fechada sobre ele e hermeticamente soldada com o minúsculo maçarico atômico. Os olhos fotoelétricos foram minuciosamente instalados, fortemente aparafusados no lugar e cobertos por uma película fina e transparente de plástico duro como aço.

O robô aguardava apenas a “vitalização” por intermédio de eletricidade de alta voltagem. Powell parou, com a mão no interruptor.

– Agora, veja isto, Cutie. Observe com atenção.

O interruptor foi ligado, dando origem a um zumbido. Os dois homens debruçaram-se ansiosamente sobre a criatura.

No início, houve apenas um movimento vago e um tremor nas juntas. A cabeça se ergueu, o corpo foi levantado pelos cotovelos. O modelo MC levantou-se desajeitadamente da mesa. Pisava com insegurança e por duas vezes seus esforços para falar reduziram-se a sons desencontrados.

Afinal, a voz tomou forma, hesitante e insegura.

– Gostaria de começar a trabalhar. Para onde devo ir?

Donovan correu para a porta.

– Desça esta escada – ordenou. – Lá embaixo lhe dirão o que deve fazer.

O modelo MC saiu e os dois homens ficaram a sós com Cutie, que continuava imóvel.

– Bem – disse Powell, sorrindo. – Agora, acredita que nós o fizemos?

A resposta de Cutie foi lacônica e definitiva: – Não! – declarou ele.

O sorriso de Powell petrificou-se e logo desapareceu totalmente.

O queixo de Donovan caiu.

– Vejam – prosseguiu Cutie, com naturalidade. – Vocês se limitaram a montar peças pré-fabricadas. Trabalharam notavelmente bem, por instinto, creio, mas não criaram realmente um robô. As peças foram criadas pelo Mestre.

– Ouça bem – disse Donovan, em voz rouca – as peças foram fabricadas na Terra e enviadas para cá.

– Bem, bem – respondeu Cutie, em tom condescendente. – Não vamos discutir.

– Não! Estou falando sério – disse o homem, avançando de um salto e segurando o braço do robô. – Se você lesse os livros existentes na biblioteca, encontraria a explicação e não restaria qualquer dúvida possível.

– Os livros? Já os li, todos eles! São bastante ingênuos.

Powell interrompeu repentinamente.

– Se já os leu, que mais resta a dizer? Não pode discutir as provas apresentadas por eles. Não pode!

Havia piedade no tom de Cutie: – Por favor, Powell. Certamente, eu não os considero uma fonte válida de informações. Também foram criados pelo Mestre e são destinados a vocês – não a mim.

– Por que julga assim? – quis saber Powell.

– Porque eu, na qualidade de ser racional, sou capaz de deduzir a Verdade partindo de causas a priori. Vocês, na qualidade de seres inteligentes, mas desprovidos de capacidade de raciocínio lógico, precisam que a explicação da existência lhes seja fornecida. E foi o que o Mestre fez. Não tenho dúvidas de que as informações ridículas sobre mundos longínquos e povos estranhos são benéficas para vocês. É bem provável que tenham uma mente muito primitiva para absorver a dura Verdade. Entretanto, já que o Mestre deseja que acreditem nos livros, não mais discutirei com vocês.

Ao sair, virou-se uma última vez e disse em tom bondoso: – Mas não fiquem tristes. No sistema arquitetado pelo Mestre há lugar para todos. Vocês, pobres seres humanos, terão seu lugar, embora humilde. Caso se comportem devidamente, serão recompensados.

Partiu com uma atitude beatifica, bem conveniente a um Profeta do Mestre. Os dois homens evitaram olhar-se.

Afinal, Powell falou, com evidente esforço: – Vamos para a cama, Mike. Desisto.

Donovan replicou em voz baixa: – Greg, não acha que ele tem razão a respeito de tudo isso, não é? Ele me parece tão confiante que eu…

Powell virou-se vivamente: – Não seja idiota. Você terá a certeza de que a Terra existe, quando nossos substitutos chegarem, na próxima semana, e tivermos de regressar à Terra para enfrentar a realidade.

– Então, pelo amor de Deus, temos de fazer alguma coisa – retrucou Donovan, quase chorando. – Cutie não acredita em nós, nem nos livros, nem em seus próprios olhos.

– De fato – replicou Powell, amargurado. – Ele é um robô raciocinante. Maldito seja! Só acredita em raciocínio lógico. E há uma dificuldade a respeito…

Não terminou a frase.

– Qual é a dificuldade? – insistiu Donovan.

– É possível provar tudo o que se deseja por um raciocínio lógico e frio, desde que se escolham os postulados convenientes. Nós temos os nossos e Cutie tem os dele.

– Então, precisamos arranjar postulados depressa. A tempestade de elétrons deve chegar amanhã.

Powell exalou um suspiro cansado.

– Ai é que a porca torce o rabo. Os postulados são baseados em suposição e adotados pela fé. Nada no Universo é capaz de abalá-los. Vou para a cama.

– Oh, diabo! Não consigo dormir!

– Nem eu. Mas vou tentar, por uma questão de princípio.

Doze horas mais tarde, o sono continuava a ser exatamente isso: uma questão de princípio, inatingível na prática.

A tempestade chegara na hora prevista e o rosto vermelho de Donovan estava muito pálido, quando ele apontou com um dedo trêmulo. Powell, com a barba crescida e a boca seca, olhou pela vigia e puxou desesperadamente a ponta do bigode.

Em outras circunstâncias, seria um espetáculo belíssimo. A chuva de elétrons em alta velocidade chocava-se com o raio de energia, transformando-se em partículas fluorescentes de intensa luminosidade. O raio estreitava até quase sumir, desfazendo-se em átomos brilhantes, que dançavam loucamente no espaço.

Embora o facho de energia permanecesse firme, os dois homens conheciam o valor das aparências visíveis a olho nu. Um simples desvio equivalente a um arco de milésimo de segundo – invisível ao olho humano – seria o suficiente para tirar o raio totalmente de foco e transformar milhares de quilômetros quadrados da superfície da Terra em ruínas incandescentes.

E um robô, despreocupado com raios, com o foco, com a Terra, ou com qualquer coisa que não fosse o seu Mestre, estava cuidando dos controles.

Passaram-se horas. Os dois homens observavam o espetáculo, mergulhados num silêncio hipnotizante. Então, os minúsculos pontos luminosos que riscavam o espaço tornaram-se menos numerosos, perderam o brilho e desapareceram. A tempestade terminara.

Powell declarou secamente: – A tempestade terminou.

Donovan deixara-se cair num torpor inquieto e os olhos de Powell o examinaram com certa inveja. A lâmpada de sinalização piscava incessantemente, mas Powell não lhe deu a menor atenção. Nada importava! Nada! Talvez Cutie tivesse razão, e ele não passasse de um ser inferior, com uma memória feita sob medida e uma vida que já não tivesse razão de ser.

Powell desejava que assim fosse!

Cutie surgiu ante ele.

– Você não respondeu ao sinal, de modo que resolvi entrar – declarou em voz baixa. – Parece não estar passando bem e temo que seu período de existência esteja chegando ao fim. Ainda assim, gostaria de examinar alguns dos registros anotados hoje?

Powell percebeu vagamente que o robô esboçava um gesto amistoso, talvez para compensar algum remorso por forçar os homens a se afastarem do controle da Estação Solar. Pegou os registros e examinou-os distraidamente, sem vê-los.

Cutie parecia satisfeito.

– Naturalmente, é um grande prazer servir ao Mestre. Você não deve ficar triste por ser substituído.

Powell soltou um grunhido e passou mecanicamente de uma folha para outra, até que seus olhos se focalizaram numa fina linha vermelha que traçava uma trajetória irregular no papel milimetrado.

Olhou com atenção e esbugalhou os olhos. Agarrou o papel com força, com ambas as mãos, e se ergueu da poltrona, com os olhos ainda muito abertos.

– Mike! Mike! – gritou, sacudindo violentamente o companheiro. – Ele manteve o raio firme!

Donovan acordou.

– O quê? Onde…?

Então, também Mike Donovan arregalou os olhos ao examinar o registro.

Cutie interrompeu: – O que há de errado?

– Você manteve o raio no foco – murmurou Powell.

– Sabia disso?

– Foco? De que está falando?

– Você manteve o raio focalizado exatamente na estação receptora. Dentro de um limite de um milésimo de segundo de arco.

– Que estação receptora?

– Na Terra. A estação receptora na Terra – gaguejou Powell. – Você manteve o raio no foco…

Cutie girou nos calcanhares, visivelmente irritado.

– É impossível tomar qualquer atitude bondosa para com vocês dois. Sempre o mesmo fantasma! Limitei-me a manter os mostradores em equilíbrio, de acordo com a vontade do Mestre.

Juntando os papéis espalhados em cima da mesa, retirou-se com grande dignidade. Donovan murmurou, quando ele saiu: – Bem, macacos me mordam!

Virou-se para Powell, indagando: – Que faremos, agora?

Powell sentia-se cansado, mas animado.

– Nada. Ele acaba de mostrar que é capaz de administrar perfeitamente a Estação. Nunca vi uma tempestade de elétrons tão bem controlada.

– Mas nada foi resolvido. Você ouviu o que ele disse a respeito do Mestre…

– Ouça, Mike: ele segue as instruções do Mestre por meio de mostradores, instrumentos e gráficos. É exatamente o que nós sempre fizemos. Na realidade, o fato explica por que motivo ele se recusou a obedecer-nos. Obediência é a Segunda Lei. A primeira refere-se a não causar mal aos seres humanos. Como pode ele evitar que os seres humanos sofram algo, quer esteja ou não consciente disso? Ora, mantendo o raio de energia em foco estável.

Ele sabe que é capaz de mantê-la mais estável do que nós, uma vez que é um ente superior a nós; portanto, sente-se obrigado a manter-nos afastados da sala de controle. É uma coisa inevitável, levando-se em consideração as Leis da Robótica.

– Claro, mas isso não vem ao caso. Não podemos permitir que ele continue com essas tolices a respeito do Mestre.

– Por que não?

– Porque ninguém ouviu falar em semelhante tolice!

Como podemos confiar-lhe a Estação Solar, se ele não acredita na existência da Terra?

– Ele é capaz de controlar a Estação?

– É. Mas…

– Então, que diferença faz a sua crença?

Powell abriu os braços, com um vago sorriso no rosto, e deixouse cair de volta na cama. Adormeceu instantaneamente.

Powell falava enquanto vestia o leve casaco espacial: – Deve ser uma tarefa bem simples. Podem trazer os novos modelos QT, equipá-los com interruptor automático para uma semana, a fim de dar-lhes tempo para aprender a… bem… o culto do Mestre, pela própria boca do Profeta. Depois, basta levá-los para outra Estação e tornar a ligá-los. Podemos ter dois robôs QT por estação e…

Donovan abriu seu visor de glassite e franziu a testa.

– Ora, cale a boca e vamos cair fora daqui. A turma de substituição está esperando e não me sentirei bem até ver novamente a Terra e tornar a sentir o solo sob meus pés, s6 para ter certeza de que é verdade.

A porta se abriu, enquanto ele falava, e Donovan, amuado, deu as costas a Cutie. O robô se aproximou silenciosamente e disse, num tom de voz que exprimia tristeza: – Vão embora?

Powell assentiu laconicamente.

– Virão outros em nosso lugar.

Cutie suspirou, com o som do vento zumbindo por entre os fios muito juntos.

– Compreendo. Seu tempo de serviço chegou ao fim e está na hora da dissolução final. Eu já esperava, mas… Bem, a vontade do Mestre será cumprida!

Seu tom de resignação irritou Powell.

– Pode poupar sua simpatia, Cutie. Vamos voltar à Terra e não à dissolução.

– É melhor que pensem assim – replicou Cutie, suspirando outra vez. – Agora, compreendo a sabedoria da ilusão. Jamais tentaria abalar a fé de vocês, mesmo que fosse possível.

Partiu. Era a própria encarnação da comiseração.

A nave de substituição estava ancorada lá fora e Franz Muller, seu comandante, saudou-os com cortesia. Donovan fez uma rápida continência e entrou no compartimento de pilotagem, a fim de substituir Sam Evans nos controles.

Powell demorou-se um pouco junto a Muller.

– Como está a Terra?

Era uma pergunta bastante convencional e Muller deu a resposta também convencional: – Ainda girando.

Powell replicou: – Ótimo.

Muller encarou-o.

– Por falar nisso, o pessoal da U. S. Robôs inventou um novo tipo. Um robô múltiplo.

– Um quê?

– O que eu disse. Assinaram um grande contrato para produzi-lo. Deve ser exatamente o que estão precisando para as minas dos asteroides. Um robô-mestre, que comanda seis sub-robôs. Como os dedos de uma mão…

– Já foi submetido aos testes práticos? – indagou Powell, com evidente ansiedade.

Muller sorriu: – Pelo que ouvi, estão esperando por vocês.

Powell cerrou os punhos.

– Diabo! Estamos precisando de umas férias.

– Oh, terão férias. Duas semanas, creio.

Muller estava calçando as pesadas luvas espaciais, preparando-se para o seu período de serviço na Estação Solar Cinco. Franziu a testa.

– Corno vai indo o novo robô? Acho melhor que seja bom, ou quero ser mico de circo se permitirei que encoste nos controles!

Powell fez uma pausa antes de responder. Seu olhar observou atentamente o orgulhoso prussiano postado diante dele, desde o cabelo cortado rente à cabeça de formato teimoso, até os pés colocados em rígida posição de sentido, e sentiu-se invadido por uma súbita onda de alegria.

– O robô é ótimo – declarou, falando devagar. – Não creio que você tenha de se preocupar muito com os controles.

Sorriu e entrou na nave. Muller passaria várias semanas na Estação…

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