Entre Ramos e Rosa: os narradores do sertanejo em comparação

Guimarães Rosa (1908-1967) e Graciliano Ramos (1892-1953) são autores que dispensam longas apresentações. Cada um, em seu respectivo tempo, propôs um retrato cultural que se afastava dos lugares comuns da primeira metade do século XX, tematizando principalmente a vida sertaneja; entretanto, mesmo agindo de fora das convenções literárias, os dois tiveram contato e assimilaram traços da literatura moderna produzida no Brasil para desenvolver suas respectivas literaturas e alçarem lugar no cânone brasileiro.

Neste texto, vou tentar fugir das leituras que reduzem os autores a apenas suas supostas escolas literárias (neo-realismo, no caso de Graciliano Ramos; e, para alguns, pós-modernismo no caso de Guimarães Rosa). Por isso mesmo estou comparando rapidamente alguns elementos que colocam esses dois autores distintos em sintonia, sem deixar, contudo, de apontar também aqueles traços que os diferenciam. A pedra angular será o signo do Sertão, junto aos personagens que habitam essa região mitológica da literatura de Rosa e de Ramos, e que, por conta não só da experiência geográfica de cada um deles, é tão diferente e ao mesmo tempo tão próximo.

O povo e a terra

Pois bem, começo por uma das semelhanças mais claras: o uso do Sertão como lugar e cultura.

Rosa, assim como Graciliano, coloca os sertanejos e jagunços como peças centrais da maior parte de suas autorias, que costumam acontecer em cenários típicos do sertão. Como exemplo disso, podemos citar obras como Vidas Secas e São Bernardo, ambas de Graciliano Ramos, e Sagarana e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Mas não se engane por esse detalhe tão breve, porque, por mais que sejam autores do “sertão”, cada um deles dá características bem particulares para seus personagens e para esse cenário! Portanto, o que os aproxima, nesse uso, é que, ao fazerem esse movimento que busca centralizar os sertanejos, os dois autores abrem espaço para que as complexas narrativas dos marginalizados apareçam em primeiro plano, tornando os narradores em coletores dos discursos de indivíduos não citadinos, como Riobaldo e Fabiano e sua família.

De um lado está Graciliano Ramos, com uma linguagem crua, que se dedica a enfatizar as mazelas causadas pela seca, pela fome e pela miséria vividas no sertão nordestino, que lança o indivíduo à procura de soluções extremas, violentas e desesperadas, rumo ao sul. Já no outro lado, está Guimarães Rosa, evidenciando com neologismos e hiper-referências um sertão oceânico, vasto e enigmático, com uma teia enorme de culturas e pequenas narrativas encantadoras.

É importante destacar que esses tratamentos praticamente opostos não são excludentes: eles são simultâneos (colocados em paralelo já pelo uso da mesma palavra: “Sertão”) e estão diretamente ligados à intenção que cada autor dá para o texto e sua recepção no meio literário. Enquanto Ramos faz uma espécie de denúncia e retratação fria de uma realidade social perturbadora, Rosa alça a cultura sertaneja ao divino e ao canônico ocidental, criando versos opostos de uma mesma folha de papel, que funciona de forma complementar, ainda que contraditória.

A língua

Nesse ponto, a linguagem possui lugar de destaque, pois é a principal ferramenta de que dispõem os autores para compor esse cenário recheado de intensões particulares. Assim, Graciliano se ocupa com o uso da norma culta, preocupação talvez relacionada com a frieza mencionada anteriormente: a mensagem que se quer passar em seus textos não pode ser opaca. Desse modo, podemos interpretar esse uso de uma linguagem mais técnica e que respeita a gramaticalidade, como uma maneira de comunicar de forma clara, objetiva, episódios de repressão (Memórias do Cárcere e Angústia), a condição de diferentes sertanejos (Vidas Secas e São Bernardo) ou ainda uma infância nebulosa e distante (Infância), interpretação essa que se soma à leitura que o crítico brasileiro Antônio Cândido faz de Graciliano: uma ficção de tom confessional.

Rosa, pelo contrário, traz consigo uma grande liberdade de composição lexical, com a elaboração de muitos neologismos e a subversão da sintaxe tradicional, que, diferente de comunicar com clareza, aprofunda e expande os signos e as imagens descritas no texto, a exemplo do que acontece em Grande Sertão: Veredas e Primeiras estórias. Além disso, a aproximação intencional com a oralidade acrescenta a suas narrativas uma fluidez, propiciado por lembrar justamente a fala, traço que não é encontrado recorrentemente nas obras de Graciliano, ainda que, também este, faça uma simulação da fala dos sertanejos.

Essa proximidade com a tradição oral é uma das técnicas utilizadas por Rosa para transferir o protagonismo da voz do citadino (o “doutor da cidade”) para o jagunço (Riobaldo) que conta a narrativa para aquele. 

A mente por trás da escrivaninha

Apesar dessa transposição de voz, Rosa, diferente de Graciliano, deixa transparecer sua grande intelectualidade nos diversos textos que escreveu. No caso de Ramos, o escritor só aparecerá com mais clareza nas obras de cunho biográfico (Infância e Memórias do Cárcere) e naquela em que o trabalho de revisão foi menor do que ele gostaria (Angústia).

O autor de Grande Sertão expõe de forma mais aberta a sua proximidade com o cânone ocidental, recheando a narrativa de alusões aos textos fundadores, como a Odisseia e a Ilíada, de Homero, e ao Fausto, de Goete, o que devolve a narrativa um tom intelectualizado. Esse mesmo tom não se quer presente e não se deixa aparecer frequentemente em histórias como Vidas Secas, porque, como vimos, a história precisa ser o mais comunicativa e objetiva possível.

Mais que um Sertão alagado em linguagens distintas ao colocarmos Ramos e Rosa lado a lado, deparamo-nos com um Sertão – de linguagem – alargado, expandido em suas inúmeras diferenças.

Interrompo o texto por aqui, sabendo que poderia trazer ainda mais aproximações e distanciamentos desses dois autores; isso fugiria à proposta deste texto, que é analisá-los de forma concisa, mostrando apenas a ponta de um iceberg sem fim, que flutua no oceano de nossa imensa literatura brasileira.


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Elementos tipicamente homéricos: uma análise do canto XVIII da Ilíada

CANTO XVIII da Ilíada

A FEITURA DAS ARMAS

Resumo do canto: Aquiles, o Pelida, toma conhecimento, enfim, da morte do companheiro Pátroclo, com o que se desespera. Tétis, mãe do Peleio, vem consolá-lo, juntamente com todas as outras nereides do oceano, e lhe promete uma nova armadura, para que possa retornar ao combate. As maneiras de Aquiles espantam os Teucros, que fogem assustados com seu aspecto; por sua vez, os Aquivos lastimam a perda do amigo. Ao final, Tétis vai até a casa de Hefesto para pedir-lhe a nova armadura do filho; o deus se dispõe a fazê-la e o canto termina com uma descrição bela e minuciosa do escudo de Aquiles.

Um dos primeiros entre os elementos típicos da literatura homérica a ser reconhecido neste canto é o epíteto (cf. verso 18), que aparece no desígnio de Aquiles pelo nome de “Pelida”, que significa “filho de Peleu”, pois o sufixo -ida determina filiação (assim, Pelida = filho de Peleu, Tidida = filho de Tideu, Nestórida = filho de Nestor, Atrida = filho de Atreu, etc.) O epíteto é um recurso utilizado para evitar a repetição do nome próprio, mas também para atribuir qualidades aos personagens que os caracterizem, além de possibilitar ao aedo uma sonoridade e repetição que proveem conforto maior para a oralidade com que essa literatura era composta. Diversos epítetos estão presentes na obra de Homero, como Agamémnone, rei poderoso; Hera, de olhos bovinos; Febo Apolo; entre outros.

Outro elemento recorrente que está no canto XVIII é o catálogo, presente entre os versos 39 e 49, utilizado para evocar todas as nereides que cercam Tétis e se juntam a ela em seus lamentos pela morte de Pátroclo. Esse recurso utilizado pelo aedo se vale da enumeração de vários nomes, em sequência, muitas vezes acrescidos dos seus respectivos epítetos, como em “Cimódoce, a amiga das ondas” (cf. verso 39). O autor brasileiro João Guimarães Rosa também utiliza essa técnica para a composição de passagens de Grande Sertão Veredas, como ilustra a passagem abaixo, na qual o autor enumera os companheiros de Riobaldo:

Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, por todos, estes: Capixum – caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe; Fonfredo – que cantava todas as rezas de padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfredo, desse já lhe contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe, vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito “o Caridoso”, queria sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catocho, mulato claro – era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro minasnovense, com mania de aforrar dinheiro. O Diolo, preto de beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para que que eu fui querer começar a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto, José Amigo

Também está presente no canto XVIII o objeto significativo (cf. verso 82), que aparece com a perda da armadura de Aquiles para Heitor, sendo que se constituía não apenas num objeto utilitário ou de grandeza material, mas como um presente dos deuses para Peleu, como se pode ver em sua conversa com a mãe (cf. versos 81 e 85). A armadura, assim como o cetro de Agamémnone e a taça de Nestor, é um objeto significativo por ter forte ligação com os eternos e ser entre os mortais símbolo de grande valor.

Além desses, é possível identificar diversos símiles (cf. versos 161 a 164). Essa fórmula é usada pelo aedo para comparar elementos da natureza, muitas vezes animais ou formações como montanhas e mares, aos heróis da narrativa e seus feitos. No símile exemplificado, Heitor é comparado a um leão do qual os Ajazes, comparados por sua vez a pastores, tentam sem sucesso, repelir da presa – no caso, o cadáver de Pátroclo.

Mais à frente (cf. versos 343 a 353), há também a cena da limpeza do corpo de Pátroclo, que exemplifica a relação cultural dos Aqueus com seus mortos. A partir da cena, podemos observar a relevância que davam à prestação de honras ao morto, pela forma como o limpam, unguem, e passam a noite a lamentar sua morte ao redor de seu cadáver, numa demonstração forte de ternura e reverência pelo guerreiro e por seus feitos.

Posteriormente, quando se dá a descrição do escudo que Hefesto forja para o filho de Tétis, muitas características fundamentais da cultura dos Dânaos são ilustradas. Uma delas, de grande importância para aquela sociedade, era a dança, a qual aparece representada no escudo mais de uma vez (cf. versos 569 a 572 e versos 593 a 604), sendo um importante meio de união para o povo grego. Também neste último verso há menção à figura do aedo, o cantor das epopéias antigas ー no caso, o próprio Homero, referindo-se a si mesmo ー, que aparece no escudo cantando “ao som da cítara” (cf. verso 605) e é colocado, por seu epíteto, no patamar de divindade.

Assim, apenas no canto XVIII, podemos encontrar um número considerável de recursos da literatura homérica, como epíteto, catálogo, objeto significativo e símiles, além de fragmentos da cultura grega como a homenagem aos mortos e a importância que se dava à dança. Vários desses itens podem ser também encontrados em outros trechos da Ilíada e da Odisseia, e são até hoje utilizados por autores que retomam essa tradição nas suas construções literárias.

Referência:

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

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