O que a Música Popular Brasileira tem a ver com literatura?

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Abertura

Qual é a música mais antiga que você conhece? E o poema? Você sabia que o Epitáfio de Seikilos é uma composição grega, gravada em uma lápide construída há mais ou menos 2000 anos atrás? Ele é considerado uma das canções mais antigas do mundo e, curiosamente, é entendido tanto quanto música, bem como literatura.

Essa caracterização só é possível porque música e literatura estão, desde os tempos mais antigos, ligadas entre si. Se pegarmos, por exemplo, o caso dos poemas épicos de Homero ou as cantigas medievais, observamos que a relação entre uma melodia e uma letra é antiga e não exclusiva de nossos tempos modernos e contemporâneos. Na esteira dessa antiga tradição, criada pela soma de duas artes, é que se desenvolveu a muito custo a canção popular, tipo de composição que coloca em interdependência e harmonia a poesia e a música.

A proposta deste texto é apresentar para você três pontos de contato entre a música popular e a literatura. Evidentemente, as produções de canção ao redor do mundo remontam história tão distintas quanto antigas. Mas nos detenhamos no caso específico do Brasil!

Estudo

Primeiro movimento – histórias

Não cabe aqui fazer uma longa introdução à história da canção em terras brasileiras, basta saber que sua criação e desenvolvimento está intimamente ligada ao processo de modernização do país, acompanhando de perto a evolução das redes de comunicação, como o jornal, o rádio e a televisão. Mais importante que a historiografia musical em si, parece ser a convivência íntima entre letristas e poetas ao longo do século XX, alimentando reciprocamente seus campos de produção (lembro aqui o caso de destaque de Vinicius de Moraes, que migrou do poema impresso para a música popular e o poema falado) o que contribuiu para o desenvolvimento de uma história da canção comunicante com a história da literatura.

Eis uma primeira relação entre a Música Popular Brasileira e a literatura: suas histórias e produções interdisciplinares.

Musicalização do soneto São demais os perigos desta vida

Neste texto, ainda que limite a descrição histórica aos dois parágrafos anteriores, deixarei a indicação de alguns trabalhos que não podem faltar em sua biblioteca sobre a canção popular do Brasil.

Caso você procure uma abordagem mais histórico-social, os trabalhos de Franklin Martins (à direita), de Jairo Severiano (Uma história da Música Popular Brasileira, 2008) e de José Ramos Tinhorão são indispensáveis. Eles nos contam, de forma minuciosa, a trajetória e as mutações pelas quais a canção passou, até que encontrasse formas consolidadas: o samba, a canção de protesto, o sertanejo etc.

Para os fãs de análises literárias e de flertes entre teoria da literatura e música popular, temos autores como Affonso Romano de Sant’Anna, com seu livro Música popular e moderna poesia brasileira, de título autoexplicativo, e também temos Augusto de Campos, célebre poeta e crítico brasileiro, que, em seu Balanço da bossa e outras bossas (1974), tece relações muito perspicazes sobre a canção, a literatura e os movimentos de vanguarda.

Evidentemente, existem outras perspectivas tão instigantes como as mencionadas acima. É o caso da abordagem intermidiática, à qual nos apresenta a pesquisadora Solange Ribeiro, no texto Canção: letra x estrutura musical; e da semiótica da canção, que tem Luiz Tatit como seu patrono.

Cada um desses percursos nos oferece uma gama de possibilidades para interpretar a canção brasileira e, pensando que a proposta deste texto é aproximar a MPB e a literatura, eu o incluo na segunda das chaves de pesquisa que mencionei acima: uma abordagem literária da canção.

Segundo movimento – Letra de canção é poema?

Com o constante intercâmbio de leituras entre os letristas e os grandes poetas da literatura moderna no Brasil, as letras de canção passaram a ser analisadas por alguns pensadores a partir de recursos que antes eram utilizados exclusivamente para o estudo literário. Esse tipo de análise pode ou não incluir a melodia da canção, e essa opção é o primeiro passo para responder à pergunta: letra de canção é poema? E aproximar, outra vez, os dois grandes campos de estudos, musical e literário.

Se você considerar a integração entre letra e melodia, a resposta para a pergunta certamente é não. Isso se dá, porque uma nova camada de significados e linguagens entra na análise, tornando necessária a utilização de uma abordagem como a da semiótica da canção, eficaz na construção de sentidos suscitada pela integração entre o que é falado e o que é tocado. No entanto, se optarmos pelo caso contrário, separada a melodia das letras, essa pode muito bem vir a ser chamada de poema. E, abaixo, demonstrarei o porquê.

Em termos de literatura, a crítica construiu, ao longo de muitos anos de tradição e crítica, um repertório de conceitos para análise, em que estão presentes tanto elementos técnicos de composição e classificações de acordo com a estrutura (sonetos e redondilhas, por exemplo); bem como elementos de análise do sentido – os lexemas, as metáforas, as imagens – remoídos e talhados pelas incontáveis poéticas ao longo dos séculos.

A título de confirmar a validade de uma leitura das letras a partir dos procedimentos mencionados acima, vejamos como eles aparecem em um pequeno trecho, retirado da clássica canção Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Trata-se dos versos finais da canção:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Começando por uma abordagem formal, identificamos já de saída um grupo de rimas – em -ÃO e em -IDA – e uma estrutura fixa, que se repete em todos os versos: decassílabos, construídos com a primazia de um parnasiano, com marcação nas sílabas 3-6-8-10, podendo ser caracterizado como metro martelo, típico de cantigas e cordéis:

mas – a – LU – a – fu – RAN – do – NOS – so – ZIN (co)
sal – pi – CA – va – d’es – TRE – las – NOS – so – CHÃO

Além disso, a letra presenteia o leitor/ouvinte com um enjambement – corte de um verso para o outro – belíssimo nas duas estrofes finais:

sem saber que a ventura dessa vida
é a cabrocha, o luar e o violão.

Já no que diz respeito à semântica do texto, temos a metáfora principal, que inclusive dá seu título, chão de estrelas. É uma imagem extremamente inovadora e muito rica, que, além de propor a equivalência entre o universo popular do morro e o erudito das escolas literárias – no qual uma cena própria à natureza e ao bucolismo irrompe em um barracão –, concede ainda mais força à outra personagem da canção: a mulher. Retratada pela voz principal como pomba-rola que voou, essa antagonista pisa nos astros distraidamente, gesto que inclusive alcança seu admirador, graças à polissemia da palavra “estrela”, que também é utilizada como adjetivo para artistas, sinônimo de “famoso”, “popular” etc.

Tu pisavas nos astros, distraída

A partir de uma análise que leva em conta os dois aspectos – formal e semântico – para a leitura das letras de canção, observamos como os elementos constitutivos das letras são muito similares, para não dizer idênticos, àqueles próprios à poesia impressa. Só que, além dessa aproximação por via das técnicas, temos também um similaridade de tradições e de referências, o que nos leva ao próximo tópico.

Variação

Terceiro movimento – tradição e intertextos

A ideia de apropriação das formas e imagens é comum e natural para os desdobramentos de qualquer arte e, sendo tão próximas na forma e na técnica, as correntes literárias e os ciclos de canção com toda certeza criaram pontos de comunicação.

Um artista que faz frequentemente deslocamentos da tradição literária para a musical em suas canções é Chico Buarque de Holanda. Em vários dos álbuns, e até mesmo em suas composições para o teatro, encontramos letras que são traduções de outros textos e melodias. É o caso da composição de Joe Darion e Mitch Leigh, The imposible dream, para a qual o compositor brasileiro, junto de Ruy Guerra, propõe uma tradução curiosa.

Sendo também escritor e um grande leitor dos poetas modernos, Chico Buarque, para a tradução feita com Ruy Guerra, insere nos versos finais uma imagem que pode ser lida como referência a um célebre poema de Carlos Drummond de Andrade:

E assim, seja lá como for
vai ter fim a infinita aflição
e o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão.

A imagem da flor que brota do chão entra em sintonia direta com aquela que o poeta itabirano utiliza “A flor e a náusea”, de A Rosa do Povo (1945):

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Encontramos um caso parecido de referência sutil na canção “Disparada”, de Geraldo Vandré. Se trata de uma intertextualidade ou menção velada à umas das passagens mais célebres da peça Hamlet, dita pelo próprio príncipe da Dinamarca.

The time is out of joint. Oh, cursed spite,
that ever i was born to set it right

Muitos tradutores de Shakespeare encararam com dificuldade a complexidade e a dimensão que os versos do dramaturgo inglês suscitam. Na tradução de Millôr Fernandes, por exemplo, temos o seguinte:

Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina
Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!

Ele consegue preservar o sentido principal da frase e a rima entre os versos passa a ser interna e toante, entre desnorteado e consertá-lo. No caso da letra de Vandré, a solução aparece de forma distinta e é particularmente encantadora a simplicidade com que ele a constrói:

E a morte, o destino, tudo,
a morte e o destino, tudo
estava fora do lugar,
eu vivo pra consertar

Desdobrado em quatro versos, a rima é rica, como no caso shakespeariano, e está nos dois últimos. Intencional ou não, há claramente uma sintonia com as palavras de Hamlet, recontextualizada e adaptada para a jornada retirante que a canção expressa.

Além dessas referências pontuais, existem ainda aquelas que são diretas, como a canção Lobo bobo, interpretada por João Gilberto em 1959; ou mesmo a Terceira margem do rio, de Milton Nascimento e Caetano Veloso, canções que se apropriam diretamente de um texto literário e lhe concedem nova roupagem.

Nos exemplos acima, observamos com nitidez o alinhamento entre a música popular e a literatura, o que se dá, nesse caso, por vias da referência e da intertextualidade. Gostaria de acrescentar, ainda, que há também a constituição de uma tradição interna na canção, na qual as referências são próprias ao seu universo:

Lembremo-nos rapidamente dos seguintes versos de Chão de estrelas:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão

Agora, vejamos outra composição, Como dois e dois, escrita por Caetano Veloso, e consagrada na voz de Roberto Carlos:

A mesma porta sem trinco
O mesmo teto,
E a mesma lua a furar
Nosso zinco

Fugindo da estrutura fixa de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, e se apoiando em versos escritos com maior liberdade métrica e rítmica, essa repetição da imagem da lua furando o teto de zinco aponta para a formação de um repertório próprio à canção popular. Esse diálogo se intensificou com o avançar do século XX e com a consolidação dos meios de distribuição e gravação das canções.

Cabe lembrar que, se de um lado temos esse movimento no qual a canção vai ao encontro da literatura, do outro a literatura vai ao encontro da canção.

Machado de Assis é um bom exemplo de literato que se interessava pelo meio popular e mais especificamente pelo ritmo e musicalidade populares. O conto Um homem célebre, objeto de estudo de José Miguel Wisnik, no livro Machado Maxixe, está entre as narrativas do autor que apresentam claramente esse interesse. Também, um escritor contemporâneo – Luiz Antônio de Assis Brasil – faz essas aproximações entre música e literatura (apesar de as letras de canção não serem o destaque em seus textos).

É preciso dizer, ainda, que, no Brasil, as duas artes já participaram abertamente de um mesmo movimento estético: o tropicalismo, que muito contribuiu para a criação de um cenário rico tanto teoricamente quanto artisticamente, e isso beneficiou ambas as artes.

Fuga

Por fim, compartilhando os métodos e lançando mão de tantas referências e minúcias, as letras de canção são um objeto instigante para a análise literária e esse olhar analítico (para ler poemas, principalmente) concede a elas uma roupagem nova, um novo olhar, que contribui para a expansão do conceito de literatura e de poesia e para uma melhor compreensão dos traços específicos que separam e aproximam as duas artes.

E que tal curtir uma playlist que conta uma história do Brasil através da música?

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