“Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena

Três de Maio de 1808 em Madrid – Francisco Goya (1746-1828). Museu do Prado.
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya - de Jorge de Sena

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juizo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Foi apenas no ano de 2020 que comecei a “ler de verdade” o gênero poesia, quando, por acaso do mestrado, participei de duas disciplinas que se propunham a estudar (teoricamente) poemas da língua portuguesa. Não que antes disso eu lesse “de mentira”, mas a questão é que, por hábito, formação ou simples desinteresse, eu só lia da poesia o que já conhecia ou, pior, só aquilo que pulasse no meu colo e implorasse por minha atenção. Enfim, o poema acima – Carta aos meus filhos sobre o fuzilamento de Goya – estava entre os apresentados em uma das disciplinas e, tendo lido tantas e tantas vezes, e encarado a tela de Goya que inspirou a escrita de Jorge de Sena, aceitei de que se trata de um dos meus poemas favoritos.

Relação luzidia: sintonia dos versos de Waly Salomão e de Florbela Espanca

“Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo”
(Fado Tropical – Chico Buarque e Ruy Guerra)

Poetas que versam o versar, Florbela Espanca e Waly Salomão compuseram dois célebres poemas que conversam entre si num diálogo sobre o fazer poético, o sonho e sua dissolução na realidade: Vaidade e A fábrica do poema, cujas relações mais próximas tentaremos evidenciar.

I – O sonho

Ambos os poemas destacam uma grave inquietação com a própria arte poética, refletindo acerca de sua condição de poemas imperfeitos pelo viés do desejo frustrado, que os submete à humanidade de seus poetas. Cada qual buscando a perfeição, Florbela e Waly partem do sonho para a criação, sonho que os leva à fantasia de totalizar a instância da poesia por meio de seus versos:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

(FLORBELA ESPANCA, Vaidade)

Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,
Tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras.

(WALY SALOMÃO, A fábrica do poema)

É interessante notar que, no poema de Waly Salomão, a preocupação é quase inteiramente voltada à “arquitetura ideal” do poema, que se desenvolva com perfeição e coerência, ao passo que os versos de Florbela expressam uma perceptível e maior inquietude com a posição que o próprio eu-poético deseja alçar, de “Poetisa eleita” como se pode observar ainda nos versos abaixo, do mesmo poema:

Sonho que sou Alguém cá neste mundo…
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

Nesse sentido, a poetisa portuguesa nos apresenta um desejo, ou vaidade, como o título nos anuncia, de alcançar um prestígio e uma habilidades sobre-humanas, cujos poemas pudessem “reunir num verso a imensidade” e preencher toda alma capaz de ler poesia, mesmo a mais “profunda e insatisfeita”, curvando a Terra aos seus pés com seu saber vasto e profundo.

Waly, por sua vez, parece estar mais preocupado com a estrutura da própria poesia que com a condição ou estatuto do poeta, este que não é o Poeta eleito, mas mero “perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras”, posição menor cuja insatisfação vem não de um problema de auto-imagem, mas de uma tentativa de captar um poema que escapa, como vemos a seguir, no segundo movimento de ambos os escritos em análise.

II – A ruína

Acordo.
E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.

Acordo.
O prédio, pedra e cal, esvoaça
Como um leve papel solto à mercê do vento
E evola-se, cinza de um corpo esvaído
De qualquer sentido.

Acordo,
E o poema-miragem se desfaz
Desconstruído como se nunca houvera sido.

Acordo!
Os olhos chumbados
Pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
Assim é que saio dos sucessivos sonos:
Vão-se os anéis de fumo de ópio
E ficam-se os dedos estarrecidos.

Sinédoques, catacreses,
Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
Sumidos no sorvedouro.
Não deve adiantar grande coisa
Permanecer à espreita no topo fantasma
Da torre de vigia.
Nem a simulação de se afundar no sono.
Nem dormir deveras.
Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou restaurá-la daqui do poema.)

Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará?

Chama atenção que no poema de Florbela a extensão do primeiro movimento – aquele que se configura no sonho do poema/poeta ideal – é muito maior que em A fábrica do poema, tendo três estrofes se medindo com apenas três versos do poeta baiano, enquanto o segundo movimento – a derrocada – ganha muito mais relevo neste que em Vaidade.

Waly narra o processo de acordar como aquele em que o poema-miragem, com todos os seus recursos líricos (sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros) somem no sorvedouro, desconstruindo-se como se nunca houvessem existido, deixando apenas apenas anéis de ópio e fumaça em dedos estarrecidos.

Enquanto isso, o acordar do eu-poético de Florbela não evoca a perda do poema como no caso anterior, mas a obriga a uma reimaginação de si que, frente ao sonho, a leva à queda e à descoberta da sua realidade, na qual não é nada:

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho… E não sou nada!…

Observamos, assim, que os dois poemas partilham de uma forte sintonia em suas temáticas, com nuances da relação entre o sonho, a realidade e o poeta ou o poema se apresentando pelo viés da desilusão. Vaidade e A fábrica do poema crescem no ambiente onírico que lhes oferece inspiração e qualidade poética, na busca pela totalização da poesia e de seu criador, mas perdem para a vigília que os priva dessa possibilidade.

Por isso mesmo, a metarreflexão nos dois casos constrói a salvaguarda pela qual o poeta e a poetisa indicam o contraponto entre a incapacidade de se arquitetar a totalização de um poema de inspiração perfeita, ou tornar-se o poeta capaz de fazê-lo, a as possibilidades concretas por meio das quais eles podem se realizar: tanto Vaidade como A fábrica do poema afirmam, portanto, não o entrave que impede a poesia, mas a matéria dos sonhos do poeta, e a sua solubilidade.

Para mais

Adriana Calcanhoto manteve um parceria longa com Waly Salomão, parceria esta que resultou algumas grandes obras da canção popular brasileira, como o próprio A Fábrica do Poema

Já o poema de Florbela Espanca é possível ouvir nesse link, pela voz de Rubens Caribé, em leitura feita no programa Café Filosófico.

Alexander Search: a face anglófona de Fernando Pessoa

Texto por Marina Naves

Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis… muitos são os poetas — os famosos “heterônimos” —  que habitam o seio de Fernando Pessoa, exaustivamente (ou nem tanto) estudados nas universidades e, quiçá, nas escolas brasileiras. Porém, pouco se fala e estuda sobre uma figura que, embora nascida do grande poeta português, teve toda a sua obra escrita em inglês. Alexander Search é o seu nome, e sua poética não é peculiar apenas pelo idioma utilizado, mas por apresentar características e temas de caráter único.

Um primeiro tema a se abordar é a questão do regicídio e da situação política em Portugal. Escrevendo em um momento conturbado da história do seu país – em que revoltas republicanas ameaçavam o sistema monárquico –, Search incorpora parte do contexto histórico ao seu fazer poético, o que tornou tal tema recorrente em sua obra. Como exemplo da importância do assunto, tem-se o seguinte trecho do poema Epitaphs for the Future, traduzido por mim mesma:

Monarquia

O Inferno que na Terra estava jaz-se aqui
(Muito ele custou a ir
com seu ardil de Justiça)
O Regicídio de Lisboa pela imprensa francesa

Neste excerto nota-se a evidente preocupação do autor de se posicionar acerca dos fatos políticos e sociais que lhe cercavam, que é ainda mais evidenciada pelo fato de tal poema citado ter sido escrito em 1908, ano em que o rei e o príncipe portugueses foram assassinados por militares republicanos.  

Paralelamente, a filosofia do racionalismo é, também, outro tema de considerável importância na obra poética do heterónimo. Sob a influência do pensamento tecnicista, tal corrente filosófica buscava a razão por meio do método científico, da técnica e do concreto. Em Search, este projeto pode ser visto nos seu conjunto de poemas Death of God, que questionam a Igreja Católica e elevam o valor da Ciência. O soneto a seguir, na íntegra, é um exemplo que sintetiza todos os aspectos dessa temática:

Men of science

To toil through time and hate and to consume
Far more than life in Error's hard defeat,
Seeking e'er for the true, for the complete,
Careless of faith and misery and doom -

Is there a nobler task, while life doth fleet,
Than this, to strive to make light amid gloom,
And with hands bleeding to part and make room
In tire for weaker and more unsure feet?

The void o'th' world must with an arch be spanned,
The ways of Nature must be read aright
That there may be a wise and friendly hand

To make this dark world better and more bright.
Oh, with what joy and love I understand
These master-souls that ache for truth and light.

Outros dois temas recorrentes na poesia de Search são a perturbação mental de Jesus e o delírio. O primeiro é sutil e encontra-se diluído em diversos poemas com outras temáticas, principalmente aqueles que tratam sobre questões referentes à Igreja Católica. Por outro lado, a temática de delírio é mais consistente e visível em diversos escritos poéticos do autor, tal como o epigrama a seguir, traduzido por Luísa Freire, que enfatiza a opção de se poder viver em uma realidade onírica:

"Eu amo os meus sonhos", disse eu para alguém
Prosaico, em manhã de inverno, que com desdém
Replicou: «Não sou escravo de Ideal
E, como gente sensata, amo o Real.»
Pobre tolo, o ser e o parecer trocando -
É que eu amo o Real meus sonhos amando.
Three Studies for a Portrait of Henriquetta Moraes, por Francis Bacon (1963)

Para finalizar, o último tema que deve ser mencionado é a questão da agonia, tão presente na obra de Alexander Search. Os poemas de tal tema recordam o ortônimo Fernando Pessoa, com a sua agonia causada pela consciência (e inconsciência) do pensamento. Além disso, os poemas dessa temática evocam um existencialismo profundo, como pode ser notado no exemplo seguinte, traduzido, também, por Luísa Freire:

Dor suprema

Um amigo me disse: «O que tu crias
É sonho e pretensão, tudo fingido;
O pranto com que a mente sã desvias
É decerto forçado e pretendido!

Em toda a canção e conto que fazes
Porquê palavra dura, amargurada?
Por que ao vero e bom não te comprazes
E, jovem, a alegria é desdenhada?»

Porque, amigo, embora seja a loucura
Ora doce, ora dor inominada,
Nunca a dor humana a dor atura

Da mente louca, da loucura ciente;
Porque a ciência ganha é completada
Com o saber dum mal sempre iminente.

Referências:

FREIRE, L. Poesia: Alexander Search. 04-1999. Lisboa: Assírio & Alvim.

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