Entre a literatura e o manifesto
Desde o momento em que li o título, vi a capa e li a sinopse de O som do rugido da onça (2021), livro de Micheliny Verunschk, tive vontade de lê-lo. Demorou, mas aconteceu, e agora trago essa pequena resenha, para a apreciação (ou não) de vocês.
Iatucasaua
Particularmente, acho difícil resumir a narrativa do livro de Micheliny – por ser fragmentada e costurada com uma linguagem única. Em síntese, eu diria que O som do rugido da onça faz uma reescritura da odisseia vivida pela personagem Iñe-e: uma jovem do grupo indígena Miranha, sequestrada – junto de outras crianças – por dois exploradores alemães que vieram ao Brasil, no século XIX. Tirada da família, de seu povo, terra e do mundo que conhecia, Iñe-e tem por companhia os espíritos e divindades de sua tradição, além dos pensamentos e impressões de um lugar cada vez mais estranho. Tem, também, como companheiro, o menino Juri, outra criança sequestrada, que, apesar de dividir o mesmo destino desgraçado, não fala a língua dela.
Mas não se trata só disso a história. Micheliny também amarra o passado ao presente, ao colocar a personagem Josefa (um alterego da própria autora?) em trânsito paralelo com as duas crianças, confrontando este nosso Brasil contemporâneo, que se mascara de “novo”, mas que continua, depois de tantos e tantos anos, massacrando as lutas e silenciando as reinvindicações indígenas sobre terra, sobre moradia, sobre dignidade, sobre seus direitos mais básicos.
“Ruindade não acaba” – diz Tipai uu, a Onça Grande, para Iñe-e.
Nheen eé, Nheen ayua
Como eu disse no começo, particularmente, eu não gostei do livro, porém acho que ele traz coisas de muita qualidade que precisam ser mencionadas. Para começar, acho que o adjetivo que melhor descreve a narrativa é: necessária, não só por tematizar e colocar como protagonistas personagens indígenas e feridas históricas ainda abertas, como também por lançar um novo olhar sobre estes machucados, lendo uma história do Brasil à contrapelo. Ao lado disso, está uma linguagem brilhante, que deixa evidente a inspiração no lirismo derramado que atravessa algumas das obras de Guimarães Rosa. O uso desta língua específica para narrar, que mescla prosa, poesia e vocabulário nheengatu, deixa a leitura dinâmica, rica e, por mais estranho que pareça, mais fácil: uma vez que a gente pega o ritmo, o livro flui muito bem.
Só que, para mim, O som do rugido da onça não teve apenas flores. Achei a narrativa incompatível com o nível da escrita, já que é excessivamente didática, a ponto de se transformar quase em um manifesto que afoga parte da força literária do livro. Trechos como: “como pode ser bom alguém que compra outras pessoas? Que as leva para longe dos seus parentes?” ou “por que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos?” aparecem com certa frequência e seriam totalmente dispensáveis, uma vez que fica claro o ponto de vista que o narrador (e a autora e nós, “leitores esperados”) defende. Fora que, com exceção de Iñe-e, os outros personagens que aparecem são pouquíssimo significantes e quase desaparecem da memória ao fim do texto, talvez por sua falta de complexidade na tomada de decisões e na forma como são percebidos pelo olhar de Iñe-e.
Mas nenhum desses pontos desqualifica ou dispensa a leitura do romance de Micheliny. Volto a dizer: leia Osom do rugido da onça e tire suas impressões; é extremamente necessário, como todas as releituras que propõem um questionamento da chamada “história oficial”, feita por mãos brancas, colonizadoras e patriarcalistas.