Violão em harmonia: uma valiosa aula de Paulinho Nogueira

Enquanto escrevia um artigo, deixando a playlist do Youtube Music rodar, eis que de repente escuto uma gravação antiga, o som um tanto quanto sujo, que eu já tinha ouvido não sei nem em qual altura da vida. Parei o teclado e fui ao reprodutor para ver o que estava ouvindo, e foi então que vi Paulinho Nogueira tocando “Samba em prelúdio”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell, em uma versão única e completamente instrumental dessa canção. Esse pequeno fragmento de vídeo me deixou muito interessado, por isso, me lancei na pesquisa de materiais relacionados a ele e finalmente descobri o Violão em harmonia, uma gravação de mais ou menos uma hora, na qual Paulinho Nogueira explica, misturando teoria e prática, alguns conceitos musicais relacionados à harmonização.

Método para violão [clique na imagem]

Não sei quando isso aconteceu – digo, quando assisti pela primeira vez ao Violão em harmonia – e também não sei o quanto aprendi daquilo que Paulinho explicava, porque, além de jovem, eu entendia bulhufas de teoria musical e de violão erudito. (Na verdade, ainda hoje continuo apenas “arranhando”/arriscando o violão e a teoria musical em geral.) Mas essa obra prima em formato de vídeo se tornou muito querida por mim, a ponto de eu adquirir uma cópia sua e decidir disponibilizá-la aqui no Duras Letras, já que sempre existe o risco de o vídeo desaparecer do Youtube.

Não se trata apenas de um material didático para músicos: Violão em harmonia é, antes de tudo, um show de Paulinho Nogueira, feito em formato de conversa, no aconchego de sua casa. Enquanto estamos na plateia, “do outro lado”, tomando um café, ou escrevendo artigos, Paulinho nos conduz pela seara da canção popular, relembrando nomes como Noel Rosa, João Gilberto, Tom Jobim, Cartola e Ernesto Nazareth, tentando enfiar em nossa cabeça distraída qualquer tantinho da especificidade de cada um desses músicos ímpares e de sua importância para uma história nacional do violão.

Então, se você gosta de canção, teoria musical ou de simples simpatia de um senhor muito jeitoso, dê play no vídeo abaixo e confira, em versão integral, o Violão em harmonia.

Violão em harmonia – Paulinho Nogueira [Completo]

O que a Música Popular Brasileira tem a ver com literatura?

Confira nossa série de vídeos sobre Literatura e MPB no YouTube.

Abertura

Qual é a música mais antiga que você conhece? E o poema? Você sabia que o Epitáfio de Seikilos é uma composição grega, gravada em uma lápide construída há mais ou menos 2000 anos atrás? Ele é considerado uma das canções mais antigas do mundo e, curiosamente, é entendido tanto quanto música, bem como literatura.

Essa caracterização só é possível porque música e literatura estão, desde os tempos mais antigos, ligadas entre si. Se pegarmos, por exemplo, o caso dos poemas épicos de Homero ou as cantigas medievais, observamos que a relação entre uma melodia e uma letra é antiga e não exclusiva de nossos tempos modernos e contemporâneos. Na esteira dessa antiga tradição, criada pela soma de duas artes, é que se desenvolveu a muito custo a canção popular, tipo de composição que coloca em interdependência e harmonia a poesia e a música.

A proposta deste texto é apresentar para você três pontos de contato entre a música popular e a literatura. Evidentemente, as produções de canção ao redor do mundo remontam história tão distintas quanto antigas. Mas nos detenhamos no caso específico do Brasil!

Estudo

Primeiro movimento – histórias

Não cabe aqui fazer uma longa introdução à história da canção em terras brasileiras, basta saber que sua criação e desenvolvimento está intimamente ligada ao processo de modernização do país, acompanhando de perto a evolução das redes de comunicação, como o jornal, o rádio e a televisão. Mais importante que a historiografia musical em si, parece ser a convivência íntima entre letristas e poetas ao longo do século XX, alimentando reciprocamente seus campos de produção (lembro aqui o caso de destaque de Vinicius de Moraes, que migrou do poema impresso para a música popular e o poema falado) o que contribuiu para o desenvolvimento de uma história da canção comunicante com a história da literatura.

Eis uma primeira relação entre a Música Popular Brasileira e a literatura: suas histórias e produções interdisciplinares.

Musicalização do soneto São demais os perigos desta vida

Neste texto, ainda que limite a descrição histórica aos dois parágrafos anteriores, deixarei a indicação de alguns trabalhos que não podem faltar em sua biblioteca sobre a canção popular do Brasil.

Caso você procure uma abordagem mais histórico-social, os trabalhos de Franklin Martins (à direita), de Jairo Severiano (Uma história da Música Popular Brasileira, 2008) e de José Ramos Tinhorão são indispensáveis. Eles nos contam, de forma minuciosa, a trajetória e as mutações pelas quais a canção passou, até que encontrasse formas consolidadas: o samba, a canção de protesto, o sertanejo etc.

Para os fãs de análises literárias e de flertes entre teoria da literatura e música popular, temos autores como Affonso Romano de Sant’Anna, com seu livro Música popular e moderna poesia brasileira, de título autoexplicativo, e também temos Augusto de Campos, célebre poeta e crítico brasileiro, que, em seu Balanço da bossa e outras bossas (1974), tece relações muito perspicazes sobre a canção, a literatura e os movimentos de vanguarda.

Evidentemente, existem outras perspectivas tão instigantes como as mencionadas acima. É o caso da abordagem intermidiática, à qual nos apresenta a pesquisadora Solange Ribeiro, no texto Canção: letra x estrutura musical; e da semiótica da canção, que tem Luiz Tatit como seu patrono.

Cada um desses percursos nos oferece uma gama de possibilidades para interpretar a canção brasileira e, pensando que a proposta deste texto é aproximar a MPB e a literatura, eu o incluo na segunda das chaves de pesquisa que mencionei acima: uma abordagem literária da canção.

Segundo movimento – Letra de canção é poema?

Com o constante intercâmbio de leituras entre os letristas e os grandes poetas da literatura moderna no Brasil, as letras de canção passaram a ser analisadas por alguns pensadores a partir de recursos que antes eram utilizados exclusivamente para o estudo literário. Esse tipo de análise pode ou não incluir a melodia da canção, e essa opção é o primeiro passo para responder à pergunta: letra de canção é poema? E aproximar, outra vez, os dois grandes campos de estudos, musical e literário.

Se você considerar a integração entre letra e melodia, a resposta para a pergunta certamente é não. Isso se dá, porque uma nova camada de significados e linguagens entra na análise, tornando necessária a utilização de uma abordagem como a da semiótica da canção, eficaz na construção de sentidos suscitada pela integração entre o que é falado e o que é tocado. No entanto, se optarmos pelo caso contrário, separada a melodia das letras, essa pode muito bem vir a ser chamada de poema. E, abaixo, demonstrarei o porquê.

Em termos de literatura, a crítica construiu, ao longo de muitos anos de tradição e crítica, um repertório de conceitos para análise, em que estão presentes tanto elementos técnicos de composição e classificações de acordo com a estrutura (sonetos e redondilhas, por exemplo); bem como elementos de análise do sentido – os lexemas, as metáforas, as imagens – remoídos e talhados pelas incontáveis poéticas ao longo dos séculos.

A título de confirmar a validade de uma leitura das letras a partir dos procedimentos mencionados acima, vejamos como eles aparecem em um pequeno trecho, retirado da clássica canção Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Trata-se dos versos finais da canção:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Começando por uma abordagem formal, identificamos já de saída um grupo de rimas – em -ÃO e em -IDA – e uma estrutura fixa, que se repete em todos os versos: decassílabos, construídos com a primazia de um parnasiano, com marcação nas sílabas 3-6-8-10, podendo ser caracterizado como metro martelo, típico de cantigas e cordéis:

mas – a – LU – a – fu – RAN – do – NOS – so – ZIN (co)
sal – pi – CA – va – d’es – TRE – las – NOS – so – CHÃO

Além disso, a letra presenteia o leitor/ouvinte com um enjambement – corte de um verso para o outro – belíssimo nas duas estrofes finais:

sem saber que a ventura dessa vida
é a cabrocha, o luar e o violão.

Já no que diz respeito à semântica do texto, temos a metáfora principal, que inclusive dá seu título, chão de estrelas. É uma imagem extremamente inovadora e muito rica, que, além de propor a equivalência entre o universo popular do morro e o erudito das escolas literárias – no qual uma cena própria à natureza e ao bucolismo irrompe em um barracão –, concede ainda mais força à outra personagem da canção: a mulher. Retratada pela voz principal como pomba-rola que voou, essa antagonista pisa nos astros distraidamente, gesto que inclusive alcança seu admirador, graças à polissemia da palavra “estrela”, que também é utilizada como adjetivo para artistas, sinônimo de “famoso”, “popular” etc.

Tu pisavas nos astros, distraída

A partir de uma análise que leva em conta os dois aspectos – formal e semântico – para a leitura das letras de canção, observamos como os elementos constitutivos das letras são muito similares, para não dizer idênticos, àqueles próprios à poesia impressa. Só que, além dessa aproximação por via das técnicas, temos também um similaridade de tradições e de referências, o que nos leva ao próximo tópico.

Variação

Terceiro movimento – tradição e intertextos

A ideia de apropriação das formas e imagens é comum e natural para os desdobramentos de qualquer arte e, sendo tão próximas na forma e na técnica, as correntes literárias e os ciclos de canção com toda certeza criaram pontos de comunicação.

Um artista que faz frequentemente deslocamentos da tradição literária para a musical em suas canções é Chico Buarque de Holanda. Em vários dos álbuns, e até mesmo em suas composições para o teatro, encontramos letras que são traduções de outros textos e melodias. É o caso da composição de Joe Darion e Mitch Leigh, The imposible dream, para a qual o compositor brasileiro, junto de Ruy Guerra, propõe uma tradução curiosa.

Sendo também escritor e um grande leitor dos poetas modernos, Chico Buarque, para a tradução feita com Ruy Guerra, insere nos versos finais uma imagem que pode ser lida como referência a um célebre poema de Carlos Drummond de Andrade:

E assim, seja lá como for
vai ter fim a infinita aflição
e o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão.

A imagem da flor que brota do chão entra em sintonia direta com aquela que o poeta itabirano utiliza “A flor e a náusea”, de A Rosa do Povo (1945):

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Encontramos um caso parecido de referência sutil na canção “Disparada”, de Geraldo Vandré. Se trata de uma intertextualidade ou menção velada à umas das passagens mais célebres da peça Hamlet, dita pelo próprio príncipe da Dinamarca.

The time is out of joint. Oh, cursed spite,
that ever i was born to set it right

Muitos tradutores de Shakespeare encararam com dificuldade a complexidade e a dimensão que os versos do dramaturgo inglês suscitam. Na tradução de Millôr Fernandes, por exemplo, temos o seguinte:

Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina
Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!

Ele consegue preservar o sentido principal da frase e a rima entre os versos passa a ser interna e toante, entre desnorteado e consertá-lo. No caso da letra de Vandré, a solução aparece de forma distinta e é particularmente encantadora a simplicidade com que ele a constrói:

E a morte, o destino, tudo,
a morte e o destino, tudo
estava fora do lugar,
eu vivo pra consertar

Desdobrado em quatro versos, a rima é rica, como no caso shakespeariano, e está nos dois últimos. Intencional ou não, há claramente uma sintonia com as palavras de Hamlet, recontextualizada e adaptada para a jornada retirante que a canção expressa.

Além dessas referências pontuais, existem ainda aquelas que são diretas, como a canção Lobo bobo, interpretada por João Gilberto em 1959; ou mesmo a Terceira margem do rio, de Milton Nascimento e Caetano Veloso, canções que se apropriam diretamente de um texto literário e lhe concedem nova roupagem.

Nos exemplos acima, observamos com nitidez o alinhamento entre a música popular e a literatura, o que se dá, nesse caso, por vias da referência e da intertextualidade. Gostaria de acrescentar, ainda, que há também a constituição de uma tradição interna na canção, na qual as referências são próprias ao seu universo:

Lembremo-nos rapidamente dos seguintes versos de Chão de estrelas:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão

Agora, vejamos outra composição, Como dois e dois, escrita por Caetano Veloso, e consagrada na voz de Roberto Carlos:

A mesma porta sem trinco
O mesmo teto,
E a mesma lua a furar
Nosso zinco

Fugindo da estrutura fixa de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, e se apoiando em versos escritos com maior liberdade métrica e rítmica, essa repetição da imagem da lua furando o teto de zinco aponta para a formação de um repertório próprio à canção popular. Esse diálogo se intensificou com o avançar do século XX e com a consolidação dos meios de distribuição e gravação das canções.

Cabe lembrar que, se de um lado temos esse movimento no qual a canção vai ao encontro da literatura, do outro a literatura vai ao encontro da canção.

Machado de Assis é um bom exemplo de literato que se interessava pelo meio popular e mais especificamente pelo ritmo e musicalidade populares. O conto Um homem célebre, objeto de estudo de José Miguel Wisnik, no livro Machado Maxixe, está entre as narrativas do autor que apresentam claramente esse interesse. Também, um escritor contemporâneo – Luiz Antônio de Assis Brasil – faz essas aproximações entre música e literatura (apesar de as letras de canção não serem o destaque em seus textos).

É preciso dizer, ainda, que, no Brasil, as duas artes já participaram abertamente de um mesmo movimento estético: o tropicalismo, que muito contribuiu para a criação de um cenário rico tanto teoricamente quanto artisticamente, e isso beneficiou ambas as artes.

Fuga

Por fim, compartilhando os métodos e lançando mão de tantas referências e minúcias, as letras de canção são um objeto instigante para a análise literária e esse olhar analítico (para ler poemas, principalmente) concede a elas uma roupagem nova, um novo olhar, que contribui para a expansão do conceito de literatura e de poesia e para uma melhor compreensão dos traços específicos que separam e aproximam as duas artes.

E que tal curtir uma playlist que conta uma história do Brasil através da música?

Sair da versão mobile