Poema em prosa – “Quimera”, de Otávio Moraes

Foto de capa: Reflection with Two Children (Self-portrait) (1965) – Lucian Freud. Disponível em: dasartes.

Manhã, domingo, céu bembranco, o tempo preguiçando. Homem velho, contra o espelho, assemelhando avô velho. Homem velho é o desde sempre. Posição desigual cabe ao moço, mocidade é o mundo no novo, Deus, antes da canseira, brincandopracimadaságuas. Moço, ainda verde, é pai e mãe do próprio umbigo. Assim ruminava; assim nebulava; assim deduzia; o homem velho concreto e irreversível, tudo isso estanciado na cama. Homem velho, felino malpropício despelando preguiçoso, coçava as costas, ainda cabia n’um corpo. Filhos? Dois’homem pais d’outros home num sem-fim de picas ao leu. Casado? Uma vez, depois amasiado, depois desacompanhado de tudo. Sobraram zolhos molhados d’um vermelho raivechoro. O homem velho absurdava, nos redemonomes: Zumira, Raian, Bonifácio, Almeida, Soraia, Luzia, Carlão, Lucinda, Jeremias, Itamar, Clarice, Emília, Josué, Euclides, Nair, Leopoldo, Nara, Tadeu, Zumira, Pedro Henrique, Margareth, Lu… O homem velho trepava sonambulento o corpo das putas, ancas cor de canela, pernabraços, língua enorme avançando, seu sexo, um colar, cabeças de homem, febrava, ardia, água, mel e leite.  Nublava no catre, arquipélago de nomes, calava. Domingo é o breu, as águas bem frias. Domingo, folgava. Homem velho é mundo, mundo desalumiando gato manso,

Homemvelh…

Nem isso.

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“O homem velho” – em Velô (1985), de Caetano Veloso

“Eu não sei. Acho que viajo muito.” – Entrevista e poemas de Marina Naves

Conversamos hoje com a poeta Marina Naves, que está em vias de lançar seu primeiro livro de poemas, Voyager (editora Escaleras). Marina (21), é poeta, tradutora e pesquisadora. Seu caminho na poesia começou ainda na infância, quando passou a se interessar pelos poemas do seu avô, João Naves de Melo. Cecília Meireles também foi de grande importância para o seu despertar literário. Na adolescência, com a leitura de poetas ultrarromânticos, Marina começou a criar gosto pela rima e pela métrica. Já na Universidade Federal de Minas Gerais, onde se formou bacharela em Estudos Literários, a autora conheceu suas duas grandes inspirações: o irlandês W. B. Yeats e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Atualmente, Marina estuda e desenvolve pesquisa nas áreas de Literatura Portuguesa, Intertextualidade e Recepção dos Clássicos.

Isadora – Marina, obrigada por conversar com a gente hoje! Vamos começar com a criação: como é seu processo criativo? E como nasceu o Voyager?

Marina – O prazer em ter essa conversa é todo meu, Isadora! Sobre o meu processo criativo, gosto de dizer que tenho apreço em construir versos e estrofes a partir de imagens que me aparecem (às vezes claras, às vezes mais obscuras). A intertextualidade com outros autores também me ajuda bastante a me destravar de qualquer bloqueio criativo em que eu possa me encontrar em algum momento! Assim, posso partir para a segunda pergunta: Voyager nasceu do propósito de fazer uma espécie de “diário de viagens” que narrasse as jornadas que já fiz para diversos lugares. Mas, claro, tal conceito foi mudando e tornando-se mais abstrato, dando espaço para viagens mais estáticas e conceituais – que não nos tiram do lugar físico em que nos encontramos, mas que nos levam a pensar e conhecer novos horizontes.

Isadora – Muitos dos seus poemas trazem referências da cultura clássica, por meio de menções a personagens e mitos, por exemplo. Como você enxerga a sua relação com essa tradição e de que maneira seus poemas dialogam com ela?

Marina – Minha relação com os mitos clássicos é bem forte por diversos motivos. O primeiro deles, talvez, seja puro gosto. Tenho imensa curiosidade e afeição pela cultura greco-romana, o que até me levou a pesquisá-la com mais afinco enquanto estudante de Letras. Um segundo motivo para construir diálogos com a tradição em meus poemas, seria o fato de que eu acredito fortemente que os clássicos são inesgotáveis em tema e em forma. Podemos aproveitá-los para tratar de quase qualquer assunto. Os mitos gregos, por exemplo, até hoje podem ser abordados com temáticas reavivadas. Assim, eu diria que o arcabouço criativo que a tradição nos dispõe é algo tão valioso que não pode ser ignorado.

Isadora – Outro ponto que me chamou muita atenção na leitura de Voyager foi a presença marcante de alguns lugares que inspiram vários dos poemas do livro, como Montes Claros, Curitiba e Dublin, por exemplo. Como foi a escolha desses locais? O que são esses lugares para você?

Marina – Esses lugares foram escolhidos e receberam tanto destaque por causa de uma grande memória afetiva que tenho por eles: por exemplo, morei anos em Montes Claros, sonhei desde a infância em visitar a Irlanda… as imagens, ou lembranças, que eu tinha deles eram fortes e vívidas, então pensei em começar a escrita bruta do livro por esses lugares.

Isadora – E quanto à ordem dos poemas? Como foi essa curadoria?

Marina – A ordem dos poemas foi pensada para seguir uma trilha. A intenção é dar ao leitor a sensação de que está fazendo uma viagem dentro do próprio livro, seguindo pelo mundo greco-romano, depois por um ambiente de verão, depois pelo rio São Francisco e por aí vai. Tive também a ideia de fazer com que o livro terminasse num tom cíclico, como se a viagem pela vida não acabasse senão na morte.

Isadora – Obrigada, Marina! Gostaria de acrescentar alguma mensagem para os leitores de Voyager?

Marina – Eu que agradeço, Isadora! Acho que gostaria de falar mais algumas coisinhas sobre Voyager. Este pequeno livro de poemas trata de várias questões ligadas ao mundo das viagens (sejam estas introspectivas – ocorrendo no âmago de quem narra –, metalinguísticas – passando pela própria linguagem – ou concretas – ou seja, que ocorreram de fato). Os poemas selecionados para compor esta obra são reflexo de lembranças de viagens passadas, desejos de viagens vindouras e elucubrações que são, antes de tudo, viagens dentro da própria alma e da própria mente. Os poemas mais empíricos não deixam de trazer temas mais amplos, mesmo que tratando de eventos vividos por mim: tudo é construído tendo como base sensações e impressões.


Com vocês, três poemas de Voyager, por Marina Naves.

Dublin, 2014

“Dublin made me and no little town
with the country closing in on its streets”
(Donagh MacDonagh)

Por muitos anos sonhei conhecer-te,
ver em tuas vias fadas voarem…
sentir teu ar encantado e ancestral
invadir-me os poros, narinas virgens.

Mas tudo foi diferente. Contigo
aprendi algo do futuro também.
Nas tuas estradas de alvos casebres
caminhavam juntos cabras e carros.

Leprechauns escondidos em Dame Street
ouvem Brigid em igrejas cristãs;
eu também ouço, e ouço mais: Oisin

tocando sua harpa em Saint Stephen’s Green.
Há tradições nestas ruas — ocultas —
que não perecem com o andar dos anos.

Lua

Alvo corpo de Ártemis destemida,
minhas mãos buscam tua branca pedra.
Que minhas cinzas sejam em ti, vida —
expostas como as mentiras de Fedra.

Com um vestido pesado e robusto
(que me seja leve como o universo
— tão macio como o materno busto)
Quero visitar-te em sonhos imerso.

Em uma feliz cadeira de praia
quero descansar sobre tua carne,
observando a doce dança de Gaia.

Que teu irmão, Febo Apolo, não me encare;
que sua flecha-luz em mim não caia,
pois só no escuro brilha tua face.

Via-Láctea

“Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”
(Olavo Bilac)

O som das letrinhas dessa palavra
me lembra o amor: é leite na tigela
com cereal — e o cereal tem a cor
dos cabelinhos amarelos dela.

Ou pelo menos era isso que eu achava
quando tinha uns sete anos. Hoje apenas
me intrigam as estrelas; tão pesadas
mas tão macias — leves como penas.

Pensando bem, igualmente intrigantes
são as flores. Tão cedo nascem e
logo morrem. O que é melhor então

prometer a galáxia fria e eterna
ou as rubras rosas quentes e perenes?
Eu não sei. Acho que viajo muito.
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Leia ainda: posts de Marina Naves no Duras Letras!

Três poemas de Edimilson de Almeida Pereira

A voz de Edimilson Pereira já figura entre os leitores de poesia como uma das mais precisas, ásperas e poderosas que os últimos tempos produziram. Com publicações que vêm se colocando paulatinamente desde 1985, o poeta, nascido em Juiz de Fora, produz uma poesia que, dialogando com suas andanças de pesquisador pelo interior mineiro, subverte a ordem natural da linguagem e cria uma fala que – para emprestar a expressão de João Cabral – se fala dolorosa aos olhos e aos ouvidos do leitor.

Os três poemas a seguir foram retirados do livro Qvasi (“como se”, em latim), lançado pela Editora 34, em 2017. Nesta obra, o poeta repete algumas experimentações de poetas anteriores, despersonalizando sua poesia e dando voz aos objetos ou indivíduos marginalizados, além de encontrar, nas margens e limites desses procedimentos, o espaço necessário para colocar sua própria voz e seu estilo.

CORTE

O trigo não tem a cabeça
alta
depois que a foice passeia.

Quem está no campo,
a essa hora,
não volta com a notícia.

Quem fica à espera,
embora
creia no arco da mudança,

quando muito, vai à porta
e nutre,
em vão, a própria saúde.

Se há beleza em tal obra
(e existe,
no outro lado, uma

janela com as bandeiras
em eclipse),
em ruínas se esculpe.

MALES, NÃO

A mão da cura pensa que é livre, não é. 
Essa é mão do perigo.

Não fosse a derrota da carne, seria ociosa. 

Não me deito com a doença.

A mão que me acompanha pensa igual.
Se a roupa ainda está sã,
o dono não perdeu a alegria.

Não nos foi dado galgar largos o lençol.

Pensa que é livre o cavaleiro.

Pensa, mas
ninguém é arrieiro de sua bagem.

A ferida é amiga da mão, quem pode saber?
Sua guirlanda
e seu farnel são tudo o que importa.

A mão guarda as horas demônias 

ANÚNCIO

o lazáro se apalpa, depois de tantas mudas,
não é
a pele
que o abriga.

vindo pela rua,
distrai nossa atenção de outros cadáveres.

nessa freguesia, à margem do rio
das velhas, velhas não se querem bordados
de penélope.

aviam o que se move sob a crosta,
fortuna
e miséria
para delírio dos amordaçados.

o lázaro pertence à espécie das coisas invisíveis.

nenhum de nós o conhece sem a mácula.
— vingai a mácula e a carroceria
que a transporta.

o lázaro administra esse legado e outros
disfarçados em matrimônio.

o lázaro
apazigua os carneiros com a coragem de quem
escala o monte de vênus.

no lázaro a dor se inocenta e prova a semente
prometida.

não se humilha, o lázaro.
o que se diz sobre ele, ele mesmo no que diz,
é duplo.
se o separassem, a sombra e a moça padeceriam,
obedientes às parcas.

não se deem ao lázaro.
sua funilaria deixou de funcionar, o timbre
em suas arcadas não.

Ouça o poema

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Quatro poemas de Sebastião Uchoa Leite

ELOGIO DA PROSA

A prosa é uma bala. Cabala
controversa, cabala inversa.
A prosa é uma razão rasa,
sem melopeia ou centopeia.

A prosa é rara e clara, e fica,
transpondo o que a clarifica.
A prosa é uma rota ativa:
linha reta e não rotativa.

A prosa não é rosa nem glosa,
e, sem ser hasta, não é casta.
Dura, perdura, e sem ser pura,
A prosa é uma coisa ciosa.

A prosa não condiz, mas diz,
sem dicções nem condições.
Não tem emblemas, nem problemas:
A prosa é uma causa cabal.

ENCORE

por trás dos vidros como o peixe de miss moore
que me importa
a paisagem e a glória ou a linha do horizonte?
o que vejo são objetos não identificados
metáforas em língua d’oc
em que li – não sei onde –
que o mundo é uma metáfora
o ventre do universo está cheio de metáforas
que poetas escreverão sobre o kohoutec?
toneladas de versos
ainda serão despejados
no wc da (vaga) literatura
ploft!
é preciso apertar o botão da descarga
que tal essas metáforas?
“sua poesia é um fenômeno existencial”
olha aqui
o fenômeno existencial

A VERDADEIRA DIALÉTICA

aí os caçadores chegaram
mataram o lobo e abriram a barriga
e encontraram a vovozinha
toda mastigadinha
quanto a chapeuzinho vermelho
eles comeram

ENROSCADOS NO SERPENS

Eis-me: o eu-em-si
monstro
enroscado em silepses
ensimesmudo
no sono eulemental
entre as vias venenosas
de pesadelos cogumelos
apocalípticos euclípticos.
Eis-me: todos-os-eus
euscatológico
eucríptico
eu-fim.

Sebastião Uchoa Leite

Sebastião Uchoa Leite (1935-2003) nasceu em Timbaúba, em Pernambuco. Estudou direito e filosofia na Universidade Federal de Pernambuco. Foi membro de uma pequena editora chamada O Gráfico Amador, por onde publicou seu livro de estreia, Dez sonetos sem matéria (1960). Além desta obra, também escreveu outros livros de poesia, como Antilogia (1979), Isso não é aquilo (1982), Obra em obras (1989), A uma incógnita (1991), A ficção da vida (1993), A espreita (2000) e A regra secreta (2002). Uchoa Leite teve sua obra integralmente publicada pela editora CosacNaify no ano de 2015, em parceria com a Cepe Editora. Intitulado Poesia completa, o livro conta com uma apresentação de Frederico Barbosa, que explica a trajetória estética do autor pernambucano. 

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