Fim de partida: de Beckett à pandemia

Membros de uma família que não se suportam, convivendo 24 horas por dia. Recursos acabando na dispensa. Cenário apocalíptico no mundo exterior. Todos presos em casa, esperando acabar.

Assim se passa a peça “Fim de partida”, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, que a escreveu em 1957. Mas aposto que você pensou que eu estava falando da quarentena durante esse período em que enfrentamos o coronavírus. É nesses termos que a atualidade e a força da peça em questão nos espanta, especialmente quando nos deparamos com cenários como esse em que nos encontramos agora: medo, aprisionamento, fim do mundo. (E sabemos que ainda vem a nuvem de gafanhotos por aí.)

Em “Fim de Partida”, que muito bem poderia se passar no interior de uma casa qualquer dos nossos dias, quatro pessoas têm de se haver com uma situação extrema de confinamento. São eles Hamm, um homem perverso, cego e paralítico, cuja vida gira em torno de atormentar Clov, seu filho adotivo e renegado que não consegue se decidir se parte ou não daquela casa; além deles, temos Nagg e Nell, os idosos pais de Hamm, cujas pernas foram mutiladas em um acidente de anos antes e agora, além de amputados, estão quase cegos, quase surdos e vivem em latas de lixo, sobrevivendo à base de papa e biscoitos. Todos eles esperam, desesperadamente, que acabe logo, como Clov nos diz na sua primeira fala da peça:

“Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando.”

Assim como nós, que ficamos no aguardo de novas notícias sobre a pandemia, a quarentena, o lockdown, a invenção de vacinas, a pesquisa de medicações (eficazes!), e a segurança para poder retornar às nossas vidas fora das quatro paredes, as personagens de “Fim de partida” precisam se resguardar em seu confinamento indefinido para sobreviver.

Foto por Edwin Reichert. À esquerda, Ernst Schroeder (Hamm); no meio, de pé, Samuel Beckett; à direita Horst Bollmann (Clov). Primeira performance em 26 de setembro de 1967: SAMUEL BECKETT’S “FIN DE PARTIE”. Teatro Schiller, em Berlim.

Enquanto isso, na casa, a dinâmica familiar inclui os hábitos de contar histórias, alfinetar, rebaixar os outros e fazer exigências implausíveis. Isso da parte de Hamm, que é o centro desse pequeno núcleo. Por sua vez, Clov, Nagg e Nell ficam à mercê de suas exigências e chantagens, que não seguem a lógica do mundo comum.

Germaine de France (Nell) e Georges Adet (Nagg). Studio des Champs Elysées, 1957.

Como é de praxe nas peças de Beckett, os personagens em questão constituem duplos que ora se repetem, ora se confrontam, sendo Hamm e Clov o par principal, Nell e Nagg o par periférico. Para passar o tempo, eles se aporrinham e tiram pequenas revanches de suas implicâncias pessoais. Um pouco como nós mesmos muitas vezes nos pegamos fazendo com as pessoas de nossas convivências. Em parte, isso se deve, como podemos reconhecer, à dificuldade de lidar com a passagem do tempo quando o próprio tempo regulamentar deixa de ser importante. Coisa que, logo no começo da peça, sabemos que é o caso:

HAMM – Que horas são?
CLOV – A mesma de sempre.

Aliada a essa cena primordial no interior da casa, há ainda a apreensão quanto ao que ainda existe lá fora. Assim como hoje, no Brasil de 2020, em que contamos 55.961 mortes por coronavírus. E 100 dias de quarentena (desta que vos escreve). Na peça, isso é regido pela norma do “não existe mais”, que, ao longo dos diálogos, se repete infinitamente nas formas de “Não existe mais”… “natureza”, “não existem mais”… “biscoitos”, “bicicletas”, “calmantes”, “velhos como antigamente”, “papa”, “caramelos”, “cobertores”, nem mesmo “caixões”.

À medida que o tempo teatral vai passando, percebemos o grande estado de calamidade e melancolia em que tais seres se encontram. Ainda que busquem de diversas formas contornar o absurdo dos tempos em que vivem. De certo modo – derrisório, sarcástico, ácido e doloroso -, eles procuram encontrar um mínimo de presença na situação que vivenciam. A fala de Nell, ao relembrar junto ao marido seus infortúnios, é contundente na sua percepção terrível da vida:

“Nada é mais engraçado que a infelicidade.”

Na tentativa de sobreviver às suas limitações, as próprias e as impostas pelo mundo, as personagens fazem esforços para conseguir pequenas alegrias, passeando dentro da própria casa ou indo até debaixo das janelas apenas para tomar um pouco de sol. Nesses dias, essas talvez sejam as frestas de felicidade que ainda estão à nossa disposição.

Procurando uma boa pedida para a sessão cinema de hoje? Com vocês, Fim de partida.

* Todas as citações da peça foram traduzidas por Fábio de Souza Andrade, que assina a edição da Cosac Naify, de 2010.

Três poemas de Robert Frost

Pensar em Robert Frost no Brasil é, antes de qualquer outra coisa, pensar na ausência dos poemas de Robert Frost nas estantes das livrarias, mesmo porque a vasta obra desse importante nome da poesia estadunidense encontrou pouquíssimo lugar entre as edições em português, chegando aos leitores brasileiros apenas como mais um nome dentro de algumas antologias. Acredito eu que isso esteja relacionado a dois motivos principais: uma associação feita entre a figura de Frost e um discurso conservador (fortemente combatido no meio intelectual do Brasil) e também o desinteresse editorial por um escritor já distante de nosso tempo e que é muito pouco falado em terras brasileiras, diferente de seus conterrâneos Ezra Pound, Walt Whitman ou Emily Dickinson.

Da rápida pesquisa que fiz aqui na internet, descobri que, no Brasil, a única publicação em livro que contempla com maior compromisso a obra desse poeta é Poemas escolhidos de Robert Frost (1969), com tradução para o português de Marisa Murray. O trabalho de Murray é uma joia ante a dívida com Frost, mas traz, entre alguns acertos, problemas na tradução, sejam ligados à linguagem, ou mesmo à atmosfera construída pelos poemas tão particulares. De qualquer maneira, à parte Poemas escolhidos (que não foi reeditado desde 69), não existe publicação em livro que seja exclusiva do autor.

Ainda assim, existem trabalhos acadêmicos ligados à obra de Frost, e dedico atenção especial para a dissertação de Ana Cristina Gambarotto, defendida em 2016, na qual ela disponibiliza a tradução integral de A Boy’s Will (1913), primeiro livro do poeta norte-americano:

Depois desse rápido desabafo, longe de dar conta da tarefa árdua que é traduzir a obra completa de Frost, trago para você três poemas do autor, traduzidos para o português por pesquisadores diferentes. Os poemas Into my own, Stopping by woods on a snowy evening e Mending wall foram pinçados da obra do poeta, escolhidos apenas pelo gosto pessoal desse redator que vos escreve. De qualquer maneira, eles demonstram o rigor com que Frost desenvolveu sua obra, compondo versos de métrica exemplar e consonante com nomes importantes da literatura ocidental, a exemplo de Omar Khayyam. Também, com o terceiro dos poemas, já fica claro o domínio que o autor de North of Boston (1914) tem tanto da linguagem, como da liberdade métrica.

Espero que as palavras precisas do poeta ianque despertem em você a mesma curiosidade que despertaram em mim, a ponto de procurar novos poemas e, quem sabe, uma edição completa de tão belos versos.


Poemas de Robert Frost

INTO MY OWN
(Dentro de mim)

O meu desejo é que essa selva escura,
tão fixa que a brisa mal a mistura,
não fosse a mera máscara das trevas,
mas se estendesse até o fim das eras.

E no dia em que não me deterão,
fugirei furtivo na vastidão,
sem temer jamais encontrar clareira,
ou estrada onde a roda deita a areia.

Não vejo motivos para retornar,
ou para que os saudosos ao meu lugar
não me sigam, nem me alcancem a trilha
curiosos se inda os tenho em alta estima.

Eles não me encontrarão diferente –
só mais seguro do que trago em mente.

Tradução: Ana Cristina Gambarotto

STOPPING BY WOODS ON A SNOWY EVENING
(Parando na mata numa noite de neve)

O dono dessa mata que vejo,
acho que mora além, no vilarejo,
e não me verá aqui parado
na mata, olhando a neve em cortejo.

Meu cavalo acha estranho e inusitado
parar assim sem casa ao lado
entre o lago duro e o desterro
no meio do escuro mais fechado.

Ele balança o seu cincerro
e me pergunta se há algum erro.
Só se ouve o vento a zunir
E os flocos caindo num aterro.

A mata escura e fundo a me sorrir,
mas eu tenho promessas a cumprir,
e muitas milhas antes de dormir,
e muitas milhas antes de dormir.

Tradução: Marcus Vinicius de Freitas

MENDING WALL
(O Conserto do Muro)

Existe alguma coisa que detesta os muros,
Sob eles faz inchar a terra congelada,
Ao sol derrama as pedras superiores,
E rasga brechas em que dois passam de frente.
A obra dos caçadores é outra coisa:
Tenho seguido as suas pegadas, trabalhando
Onde não deixam pedra sobre pedra
Até espantarem o coelho de sua toca
Para o agrado dos cães sempre a latir. Tais brechas
A que me referi, ninguém viu serem feitas,
Nem ouviu serem feitas, mas na primavera
Eu as encontro lá, no tempo dos consertos.
Aviso meu vizinho lá detrás do monte,
E marcamos um dia para vistoriar
E levantar de novo o muro entre nós dois.
E vamos juntos, com o muro entre nós dois.
Cada um repõe o que rolou para seu lado.
Umas pedras são pães e outras parecem bolas,
E só por mágica as mantemos no lugar:
“Até que nos viremos, fiquem onde estão!”
Os dedos criam calos ao lidar com elas.
Com um de cada lado, isto não passa
De outro jogo ao ar livre. E nada mais talvez:
Desnecessário é o muro onde se encontra:
Além há um pinheiral e aqui há macieiras.
As macieiras, digo-lhe, não vão passar
E comer seus pinhões. Mas ele secamente
Responde: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.
A primavera é a minha malvadeza, e penso
Ser capaz de enfiar-lhe ideias na cabeça:
“Mas por que fazem bons vizinhos? Não seria
Apenas onde há gado? E aqui não temos gado.
Antes de erguer um muro, sempre me pergunto
O que busco reter e o que busco deter
E a quem ofenderia, se não o fizesse.
Existe alguma coisa que detesta os muros,
E os quer ver arrasados!” Dir-lhe-ia que os “elfos”;
Mas não são elfos propriamente, e eu gostaria
Que ele mesmo o dissesse. E observo como traz
Firmemente uma pedra em cada mão, pelo alto,
Igual a um homem das cavernas bem armado.
Caminha pelas trevas, me parece,
Que não são as dos bosques ou das sombras de árvores,
E, sem nunca ir além do dito de seu pai,
Satisfeito de nele haver pensado tanto,
Repete: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.

Tradução: Paulo Vizioli


Robert Lee Frost

Robert Frost foi um poeta estadunidense que influenciou gerações de escritores posteriores a ele, considerado, portanto, como um dos principais nomes do modernismo na poesia anglo-americana. Tem entre suas obras mais conceituadas A Boy’s Will (1913) e North of Boston (1914), reconhecidas pelo bom trato de temas ligados à natureza e aos elementos que a compõem e a percepção do mundo moderno pelos olhos de um sujeito lirico fragmentado – traços que o poeta preserva até mesmo em suas últimas publicações. Além de poesias, Frost também escreveu textos para teatro.

Além dos três poemas citados acima, nós também fizemos, aqui no Duras Letras, uma tradução e uma análise do poema “The Pasture”, de Robert Frost, poema esse que abre a coletânea de textos do seu segundo livro – North of Boston –, além de ter sido escolhido como epígrafe para a obra completa do autor, publicada em 1964.

Arquivos da Patrulha: uma rapsódia multidimensional de Rafael Zorzal

Gosta de alienígenas, zumbis, guerras, demônios, viagem no tempo, universos paralelos… enfim, tudo que envolve literatura de horror e sci-fi? Então Arquivos da Patrulha é perfeito para você!

Breve apresentação

Com texto e edição de áudio feitos por Rafael Zorzal, os fragmentos e episódios de Arquivos da Patrulha são lançados em formato podcast, disponível em diversas plataformas de áudio. Essas cenas são narradas por Superintendente (com a voz de Felipe Xavier) e outros personagens, e vão de dramáticas à cômicas, feitas com muita qualidade e toda aquela parafernália científica e fantasmagórica que nós adoramos: criaturas desconhecidas, armas a laser, naves espaciais, viagens em tempo relativo… enfim, já deu pra sacar, não é?!

Arte criada por Henrique Garzon

Plot

A Patrulha é um órgão ou instituição de estudos paranormais criada com o suposto objetivo de conter e entender atividades que saem do controle e da compreensão humana. Com tecnologias de capacidades inimagináveis (como chaves que abrem portas para qualquer lugar que se queira ir), os patrulheiros agem por debaixo dos panos da nossa “realidade real” de apenas três dimensões, fazendo o possível para preservá-la (será mesmo?).

A série começa com a reprodução das gravações feitas pelo Superintendente da Patrulha sobre algumas das muitas missões enfrentadas sob a regência dele. A partir disso, toda a primeira temporada mescla ambientação e uma ponta de narrativa, que começa a se desenvolver melhor com a aparição de Trax (na voz de Andrezza Schilling), junto da conexão entre algumas informações dispersas nos vários episódios.

Todos eles são produzidos no formato de “diários de bordo”, gravados seja por um patrulheiro que enfrenta uma missão, ou um por registro no HD de um robô. Esse traço de gravação ajuda a construir a atmosfera e o cenário no qual a história vai se desenvolvendo, além de não deixar que fique monótona a narração, recheada de efeitos sonoros divertidíssimos e complementares.

Universo em expansão

A narrativa fragmentada e as múltiplas viradas de personagem e dimensão criam muitas portas de entrada para interpretações diferentes. Pode parecer fácil para o Superintendente ou para Isaac dizer que “sabem como funciona o tempo relativo”, mas nós, que os observamos e ouvimos de fora, não conseguimos conectar todos os pontos e fechar as lacunas que o vai e vem da história cria. Ficamos na expectativa de que o próximo episódio nos responda, cada vez mais ansioso por um pouco mais de informação.

Ainda temos muitos mistérios quanto às Esferas, Trax e outros patrulheiros ou mesmo o tão temido e esperado Krow!

Arquivos da Patrulha está em desenvolvimento e tem seus capítulos publicados semanalmente. Eles estão disponíveis para download e acesso em diversas plataformas, confira no link abaixo:

Disponível também no Spotify.

https://open.spotify.com/episode/1juIRkAjHykif0ffBvYtnh

Não deixe de conferir!

Créditos

Equipe de produção de arquivos da Patrulha

Dramaturgia e edição:
Rafael Zorzal

Com as vozes de:
Andrezza Schilling
Cinara Salvi
Euller Gasparoni
Felipe Xavier
Flávia Ward
Henrique Garzon
Ivan A.
Marcelo Guaxinim
Rafael Zorzal
Ricardo Nespoli
Tâmara Lopes
Verônica Mendes

Arte de capa:
Henrique Garzon

Unicórnio (Unicorn), poema de Angela Carter

*Este poema foi traduzido em abril de 2019. Caso queiram compartilhá-lo, gentileza dar os créditos de autoria e de tradução.

UNICORN, by Angela Carter

Dos manuscritos de Angela Carter.
Disponível no acervo digital da Biblioteca Britânica.

Quer saber mais sobre poesia?

Quatro poemas de Sebastião Uchoa Leite

ELOGIO DA PROSA

A prosa é uma bala. Cabala
controversa, cabala inversa.
A prosa é uma razão rasa,
sem melopeia ou centopeia.

A prosa é rara e clara, e fica,
transpondo o que a clarifica.
A prosa é uma rota ativa:
linha reta e não rotativa.

A prosa não é rosa nem glosa,
e, sem ser hasta, não é casta.
Dura, perdura, e sem ser pura,
A prosa é uma coisa ciosa.

A prosa não condiz, mas diz,
sem dicções nem condições.
Não tem emblemas, nem problemas:
A prosa é uma causa cabal.

ENCORE

por trás dos vidros como o peixe de miss moore
que me importa
a paisagem e a glória ou a linha do horizonte?
o que vejo são objetos não identificados
metáforas em língua d’oc
em que li – não sei onde –
que o mundo é uma metáfora
o ventre do universo está cheio de metáforas
que poetas escreverão sobre o kohoutec?
toneladas de versos
ainda serão despejados
no wc da (vaga) literatura
ploft!
é preciso apertar o botão da descarga
que tal essas metáforas?
“sua poesia é um fenômeno existencial”
olha aqui
o fenômeno existencial

A VERDADEIRA DIALÉTICA

aí os caçadores chegaram
mataram o lobo e abriram a barriga
e encontraram a vovozinha
toda mastigadinha
quanto a chapeuzinho vermelho
eles comeram

ENROSCADOS NO SERPENS

Eis-me: o eu-em-si
monstro
enroscado em silepses
ensimesmudo
no sono eulemental
entre as vias venenosas
de pesadelos cogumelos
apocalípticos euclípticos.
Eis-me: todos-os-eus
euscatológico
eucríptico
eu-fim.

Sebastião Uchoa Leite

Sebastião Uchoa Leite (1935-2003) nasceu em Timbaúba, em Pernambuco. Estudou direito e filosofia na Universidade Federal de Pernambuco. Foi membro de uma pequena editora chamada O Gráfico Amador, por onde publicou seu livro de estreia, Dez sonetos sem matéria (1960). Além desta obra, também escreveu outros livros de poesia, como Antilogia (1979), Isso não é aquilo (1982), Obra em obras (1989), A uma incógnita (1991), A ficção da vida (1993), A espreita (2000) e A regra secreta (2002). Uchoa Leite teve sua obra integralmente publicada pela editora CosacNaify no ano de 2015, em parceria com a Cepe Editora. Intitulado Poesia completa, o livro conta com uma apresentação de Frederico Barbosa, que explica a trajetória estética do autor pernambucano. 

Conto – “Um homem célebre”, de Machado de Assis

– Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe meu modo, mas… é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875… Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

– Diga, minha senhora.
– É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

– Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

– Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

– A bengala.
– Mas parece que hoje chove.
– Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
– Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

– Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

– Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, – ou por alusão a algum sucesso do dia, – ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

– Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.
– Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

– E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil…

– As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

– Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
– Vai casar com uma viúva.
– Velha?
– Vinte e sete anos.
– Bonita?
– Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, – mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

– Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

– Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas… Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação… Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, – uma clara e fresca manhã de maio de 1876, – eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

– Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

– Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
– Nada.
– Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

– Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
– Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

– Adeus.
– Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Referência

ASSIS, Machado de. Um homem célebre. In: Várias Histórias. W. M. Jackson Inc Editores, 1946.

* Este célebre conto de um de nossos maiores autores é utilizado frequentemente por pesquisadores que associam a história da literatura com a história da canção brasileira. O texto que talvez mais se detenha sobre esse relação é Machado Maxixe, de José Miguel Wisnik, que estuda o “caso Pestana”.

Três leituras da quarentena: Vila-Matas, Mary Shelley e Garcia Márquez

Tenho visto por aí vários blogs, sites e perfis divulgando listas de leitura para a quarentena: são enormes listas de livros que pensam essa condição de aprisionamento entre quatro paredes. Nelas, aparecem nomes como Kafka, Tolstoi, Atwood, Orwell, Huxlei etc. Também, vi algumas listas de obras que nos levam em viagens divertidas, para esquecer ou nos aliviar desses problemas vividos agora: em lugares que nos encontramos com Aquiles e Diomedes, ou sentamos à mesa de um Hobbit e alguns anões.

Pensei em montar minha lista de indicações também, mas, já que têm tantas por aí, e tão diversas, preferi fazer uma coisa diferente (mas vou deixar uma listinha no final). Por isso, escolhi três livros que andei lendo nesses dias reclusos, que me passaram mensagens distintas sobre os tempos em que vivemos.

Dublinesca, de Enrique Vila-Matas

VILA-MATAS, Enrique. Dublinesca. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Dublinesca é monótono, lento e maravilhoso! Uma obra que acompanha a decadente trajetória do ex-editor Samuel Ribas, um homem de sessenta anos, que se sente fracassado por não ter encontrado para publicar – durante todos os anos de editoração – “o escritor”, o gênio literário. É um livro que tem como pilares os irlandeses James Joyce e Samuel Beckett; recheado também de referências à cultura pop e ao cenário literário contemporâneo internacional, mesclando personagens que existem com outros inventados por Vila-Matas.

O que mais me interessa nesse livro, com relação à quarentena, é a amargura de Ribas em sua condição de hikikomori, um termo japonês que se refere ao comportamento de extremo isolamento doméstico.

E nós não estamos assim durante esses tantos dias em casa?

Existem dias em que não se faz nada; o almoço não sai (ou sai tarde); o catálogo da Netflix é um saco; meu livro novo ainda não chegou; não sei o que fazer; já estou de saco cheio disso tudo… e o que antes era divertido e ajudava a passar o tempo esfriou, ficou cru, e nem podemos, como Ribas, fazer uma viagem para Dublin, virar a vida de cabeça para baixo: estamos presos, somos hikikomoris involuntariamente, acompanhando notícias terríveis sobre o número de mortos e contaminados pelo Covid-19, paralelas às declarações desbocadas e infantis e idiotas do presidente da república em exercício: Bolsonaro. Não vejo como separar toda a situação trágica de pandemia da crise política que o Brasil está enfrentando.

Frankenstein, de Mary Shelley

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Tradução de Márcia Xavier de Brito. Rio de Janeiro: Darkside, 2017.

Frankenstein é um livro que dispensa apresentações longas. O romance de Mary Shelley, escrito em 1823, conta em forma de cartas a história de Viktor Frankenstein, um jovem estudante de Filosofia Natural, que, com seu apetite ilimitado de conhecimento e transformação, dá vida a sua própria ruína.

A mudança era uma ânsia que atravessava o coração dos brasileiros desde 2013, cansados de escândalos de corrupção e desesperançados com o cenário político. Por isso, assim como Viktor Frankenstein, o desejo os cegou e conduziu à criação da Criatura, que hoje está sentada na cadeira máxima do Executivo. Em 2018, velados pela paixão descontrolada de mudança a qualquer custo, 57.797.847 brasileiros elegeram a própria ruína nacional, que está aí, como a criatura, em nossa interminável noite de núpcias com o país.

Seguimos confinados, acompanhando de perto (mas longe), ansiosos pelo próximo passo da criatura, pela próxima vítima de um sistema racista, canalha e corrupto desse monstro que ateia fogo em si mesmo e em todos nós, que votaram ou não votamos nele. Mas existe uma diferença abismal na situação da criatura e a de Bolsonaro: o ser que Viktor criou é um injustiçado, inteligente e persuasivo, ainda que se torne terrível durante a narrativa, afetado pelos próprios desejos. Enquanto isso, o 38º presidente do Brasil é desprezível, ignorante e mesquinho, e o era mesmo antes de ser eleito, só que, para a grande maioria, não parecia, ou eles preferiam que fosse mentira, apenas suposição e fofoca de uma mídia corrompida.

E isso me conduz ao próximo livro.

O veneno da madrugada, de Gabriel Garcia Márquez

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O veneno da madrugada. Rio de Janeiro: Editora Record, 1974.

Ainda estou lendo essa novela que não está entre os textos mais famosos do Gabo, e foi ela que me motivou a começar esse post e me colocou para pensar ainda mais na relação entre literatura e realidade.

O livro conta a história de um pequeno vilarejo na América do Sul e seus diversos personagens: Padre Ángel, o alcaide, Dr. Giraldo, Juiz Arcádio, Trindade, Rebeca Assis etc. que se veem confrontados quando subitamente começam a aparecer pequenos papeis que denunciam a injustiça, a infidelidade e a ganância, pregados nas portas dos casebres durante as madrugadas de chuva.

O ponto chave, que me tocou, e que também fala muito sobre nossa situação atual, tem a ver com a passagem dos problemas de esfera privada para a pública. Explico-me. Na história, todo mundo sabia que César Monteiro era traído, que sua esposa se deitava com o Pastor (cogita-se que até ele mesmo tenha sabido da infidelidade da esposa), mas é apenas quando o papel é colado em sua porta que ele passa a agir: antes, era um problema da porta de sua casa para dentro, mas, com o pasquim (como são chamados os papeis) o problema vem a público.

É como se o que antes era apenas um boato ou mera fofoca passasse a ser notícia/fato, e, aos poucos, as tensões entre as famílias e os políticos do vilarejo foram aumentando e aumentando e aumentado (ainda não cheguei ao fim do livro, então paro por aqui). Algo muito parecido acontece com a contínua tensão entre governo e mídia no Brasil, com escândalos diversos vindo à luz, associados à família Bolsonaro, que os nega e, assim como o alcaide da novela de Garcia Márquez, exige que “não se dê relevância ao que não tem”. Eu pergunto:

Não tem relevância para quem?

15 indicações

Por fim, como falei no começo, compartilho uma pequena lista de indicações literárias (e um teórico) com vocês. Mas antes, quero dizer que, para mim,

toda leitura está sendo uma leitura sobre a quarentena e sobre a situação política do país

que me ajuda a entender mais sobre estar isolado (seja pensando o que está distante, ou sobre as novidades dessa condição) e maneiras de contornar a enorme decepção com a política brasileira, que nos leva para o abismo.

Meu olhar está procurando nos livros soluções para esse cenário atípico que enfrentamos!

Por isso mesmo, leiamos!
Por isso mesmo, aqui está a lista de indicações:

  1. Outros, estranhos, de Isadora Urbano (kindle)
  2. A cor púrpura, Alice Walker
  3. A metamorfose, de Franz Kafka
  4. A câmara sangrenta, de Angela Carter
  5. Quarto de despejo, Maria Carolina de Jesus
  6. Esperando Godot, de Samuel Beckett
  7. O conto da aia, de Margaret Atwood
  8. As almas da gente negra, W. E. B. Du bois
  9. A morte de Ivan Illich, de Liev Tolstoi
  10. As alegrias da maternidade, Buchi Emecheta
  11. A redoma de vidro, de Sylvia Plath
  12. O castelo de vidro, Jeannette Walls
  13. As brumas de Avalon, de Maryon Zimmer Bradley
  14. Hibisco Roxo, Chimamanda Ngozi Adichie
  15. A queda dos heróis, de João Tomayno (kindle)
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