Resenha – “A pérola que rompeu a concha”, de Nadia Hashimi

Quando a história se repete, de novo, e mais uma vez

Recentemente, o Talibã assumiu novamente o controle do Afeganistão, gerando preocupações ao redor do mundo sobre a vida dos afegãos, e sobretudo das mulheres. Isso porque, após um primeiro conflito, que ocorreu em 1996, muitas delas se viram abandonadas, em um mundo à parte, onde seus gritos não eram ouvidos; seus corpos, desde então, deveriam ser totalmente cobertos, ao mesmo tempo em que eram violados frequentemente. Além disso, seus direitos de ir e vir foram restritos, e estudar e trabalhar deixou de ser uma opção para elas. Agora, em 2021, essas mulheres se veem novamente atacadas e abandonadas, entregues ao medo, por si mesmas e pelas suas semelhantes.

Eu compreendi algo que minha mãe já sabia: os homens podem fazer o que quiserem com as mulheres.

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Em A Pérola que rompeu a Concha, publicado em 2017, escrito por Nadia Hashimi, podemos conhecer de forma mais íntima a realidade feminina afegã. Rahima, a personagem central do romance, vive em meio à opressão do Talibã e, assim como suas irmãs, raramente é autorizada a ir a escola. Ela observa os meninos e os inveja: – Eles são livres. Devido aos empecilhos impostos pelo governo, é permitido a ela ser uma bacha posh, uma prática que consiste em “redefinir” o gênero e que permite a uma menina se vestir como um menino para ajudar sua família, até que a puberdade chegue e ela seja obrigada a se casar. Isso acontece com Rahima aos 13 anos, quando é dada em casamento para um homem, deixando para trás sua família para viver com um homem perigoso e com suas outras três esposas, mas o tempo todo se questionando quanto à injustiça contra ela e outras meninas.

Às vezes, as mulheres são humilhadas demais, chutadas demais, e não há saída para elas. Talvez ela achasse que era o único caminho.

Paralelamente aos problemas vividos por Rahima, conhecemos a história de Shekiba, que é trisavó da personagem. Shekiba era vista por todos como uma amaldiçoada – porque tem metade de seu rosto deformado por uma queimadura – e, pouco a pouco, perde cada um dos membros de sua família, vendo-se sozinha em uma sociedade desigual, cruel e impiedosa. Assim como Rahima, ela se “transforma” em homem e passa a trabalhar como guarda do harém do rei, que não admitia que suas concubinas fossem vigiadas por homens reais. A história de Shekiba inspira Rahima a buscar um futuro diferente para si e para seus filhos, desafiando as regras impostas pelo estado masculino e colocando sua vida em risco, assim como ocorre em diversos momentos com sua trisavó.

As pessoas que são atingidas pela tragédia uma, duas vezes, estão fadadas a sofrer outra vez. O destino acha mais fácil refazer o próprio caminho.

Principais Impressões

A história dessas duas meninas/mulheres nos mostra que, apesar de se falar na tendência ao progresso, ele não chega para todo mundo. A retomada do Talibã ao poder confirma que essa realidade cíclica e cruel não acontece apenas na literatura: está aí para quem quiser ver. O sofrimento das personagens é tangível: o medo constante, a solidão, a depressão, a desigualdade, tudo isso é apresentado de forma crua ao leitor. Apesar disso, é inspirador (mesmo que muito doloroso) perceber a força dessas duas mulheres, que de fato representam tantas por aí. Elas seguem em frente, carregando uma bagagem pesada de preconceitos e repressões.

No limite, A Pérola que rompeu a Concha é uma ficção-real, não necessariamente biográfica, que demonstra na prática aquilo que disse Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você tem que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.

Há um beijo que desejamos com todas as forças. O toque do espírito no corpo. A água do mar implora à pérola que rompa a sua concha.

Conto – “Estraven, o Traidor”, de Ursula K. Le Guin

Trata-se de uma lenda da região leste de Karhide, como foi contada em Gorinhering por Tobord Chorhawa e mais tarde registrada por Genly Ai, o Enviado. É uma história bem conhecida, tem diversas versões e há uma peça de teatro baseada nela e representada por grupos folclóricos ambulantes, no leste do Kargav.

Há muito tempo, antes da época de Argaven I, que unificou Karhide num reino único, havia inimizade de sangue entre o domínio de Stoke o domínio de Estre, na Terra de Kerm. Essa rivalidade se manteve através de saques e emboscadas durante três gerações, e não havia jeito de se apaziguarem, pois eram disputas em torno de terras. As terras férteis são abundantes em Kerm e o orgulho de um domínio reside na extensão de suas fronteiras, e os senhores das terras em Kerm são homens orgulhosos e suscetíveis, que vivem num ambiente sombrio.

Aconteceu então que o jovem herdeiro carnal do Lorde de Estre — da linhagem de Estraven —, ao esquiar no lago de Icefort, no mês de Irem, numa caçada de pesthry, chegou a um local em que a camada de gelo era fina e esta, com seu peso, rompeu-se e ele afundou no lago. Lutando contra o gelo, ele conseguiu emergir daquela água glacial e usou um esqui como alavanca sobre a borda mais firme do lago; suas condições, porém, eram péssimas, pois, molhado da cabeça aos pés, ficou exposto ao kurem. E a noite se aproximava.

Estre situava-se a oito milhas acima da encosta, e assim ele perdeu as esperanças de alcançá-la; dirigiu-se, com dificuldade, para o vilarejo de Ebos, na margem norte do lago. À proporção que anoitecia, um nevoeiro ia baixando das vertentes geladas e recobrindo o lago; tornando-se impossível encontrar a direção, ele nem sequer sabia para onde dirigir seus esquis. Continuou caminhando cuidadosamente com receio do gelo fino, tentando, ao mesmo tempo, agitar-se porque sabia que, gelado como estava até a medula dos ossos, em breve não se locomoveria mais. Finalmente, através da cerração intensa, vislumbrou uma luz incerta. Retirou os esquis, pois o terreno já estava áspero para deslizar e a neve era rala em muitos lugares. Suas pernas mal o sustentavam, mas o jovem reuniu toda a sua energia para chegar até a luz. Era uma cabana de floresta, rodeada de thore, única espécie de árvore que cresce nos bosques de Kerm. Bateu na porta com força e gritou por socorro; alguém abriu a porta e o levou até o calor do fogo. Não havia mais ninguém, apenas esta pessoa. Aproximou-se do jovem, e tirou-lhe a roupa encharcada, uma verdadeira armadura congelada. Depois o ajudou a deitar-se despido no leito quente, nas cobertas de pele, e com seu próprio corpo aqueceu-lhe os pés, as mãos, o rosto, e, a seguir, deu-lhe cerveja quente para beber. Afinal, recuperando a circulação, ele olhou para aquele que cuidava dele. Era um estrangeiro, mas tão jovem quanto ele. Olharam-se. Ambos eram graciosos, fortes de constituição, de traços delicados, morenos e de bela postura. O jovem de Estre percebeu que o fogo de kemmer estava marcado no rosto do outro. E falou:

— Eu sou Arek, de Estre, da linhagem Estraven.

— E eu — respondeu o outro — sou Therem, de Stock.

Então o jovem Arek de Estre esboçou um sorriso triste e disse, num murmúrio ainda fraco:

— Você me aqueceu e devolveu-me a vida para matar-me, Therem de Stok?

— Não! — respondeu firme o outro.

E estendendo a mão, tomou a mão de Arek procurando sentir se a frieza já havia desaparecido de seu corpo. A este contato, embora Arek estivesse ainda se aproximando do seu kemmer, ele sentiu o fogo do amor despertar em seu íntimo. Por algum tempo ficaram assim, imóveis, tocando-se nas mãos.

— Elas são iguais — disse Therem, e colocando a palma de sua mão de encontro à do outro, mostrou que ambas eram iguais em tamanho e forma, dedo por dedo, tão idênticas como as mãos de uma mesma pessoa.

— Eu nunca o vi antes… — disse Therem.

— Somos inimigos mortais… — respondeu Arek.

Surpreendido, ele se ergueu, ajeitou o fogo da lareira e voltou para junto de Arek.

— Somos inimigos mortais — murmurou Arek —, mas eu juraria kemmering com você. — E eu com você — retrucou o outro.

Assim, juraram laços eternos um com o outro e, justamente, nas terras de Kerm. Naquela época, como agora, aquele voto de fidelidade não podia ser quebrado nem substituído. Permaneceram juntos por alguns dias na cabana, às margens geladas do lago.

Certa manhã, um grupo de caçadores de Stok chegou à cabana. Um deles conhecia Arek de vista; nada disse. Repentinamente puxou seu punhal e, diante de Therem, esfaqueou o jovem na garganta e no peito. Ele caiu morto, banhado em sangue, ao pé da lareira.

— Ele era o herdeiro de Estre! — gritou o assassino.

— Ponha-o no trenó e leve-o à terra dele para ser enterrado lá! — ordenou Therem. E, abatido, deixou a cabana e voltou para Stok.

Mas os homens que partiram com o corpo de Arek no trenó abandonaram-no na floresta para ser comido pelas feras e retornaram, na mesma noite, para Stok. Therem compareceu em pessoa ante seu pai carnal, Lorde Harish rem ir Stokven, e interrogou os caçadores que tinham voltado da missão não cumprida:

— Obedeceram às minhas ordens?

— Obedecemos, senhor.

Mas Therem retrucou:

— Mentira! Se tivessem ido lá, jamais voltariam com vida das terras de Estre! Estes homens desobedeceram às minhas ordens e mentiram para ocultar sua insubordinação. Eu exijo seu banimento.

Lorde Harish o atendeu e eles foram expulsos de seus lares e perderam seus direitos.

Pouco tempo depois destes acontecimentos, Therem deixou os domínios e passou a residir no Monastério Rotherer. Só um ano mais tarde voltou a Stok. Naquele verão, no domínio de Estre, procuraram por Arek nas montanhas e planícies; por fim puseram luto por ele e lamentaram sua morte durante todo o verão e todo o outono, pois ele era o filho único do seu senhor.

No fim do mês de Therm, quando o inverno recobria, com seu pesado manto glacial, a superfície da terra, um homem desceu a encosta da montanha, em esqui, e entregou ao guardião do portão de Estre um vulto envolvido em peles, dizendo:

— Este é Therem, o filho do filho do senhor de Estre.

Logo em seguida desapareceu para o lado das montanhas, antes mesmo que alguém pensasse em detê-lo.

Embrulhado nas peles estava um recém-nascido chorando. Levaram a criança a Lorde Sorve e repetiram as palavras do forasteiro. O velho senhor, cheio de dor, viu nas feições da criança seu filho morto, Arek. Ordenou que o criassem como filho do lar e conservassem o nome de Therem, apesar de este nome nunca ter sido usado por seu clã.

A criança cresceu graciosa, elegante e forte; era morena e silenciosa. Todos encontravam nela muita semelhança com o falecido Arek. Adolescente, Lorde Sorve, na generosidade da velhice, nomeou-o herdeiro de Estre. Houve, então, corações partidos entre os filhos de kemmering de Lorde Sorve, todos homens fortes, no auge da pujança, e que haviam esperado por aquela regalia. Prepararam uma emboscada contra o jovem Therem e quando este saiu para caçar, no mês de Irrem, tentaram pegá-lo. Mas Therem não seria apanhado desprevenido. Atirou em dois irmãos de criação e os atingiu, apesar do espesso nevoeiro que recobria o lago. Com o terceiro, ele lutou a faca e o matou, por fim, ficando muito ferido no peito e no pescoço, com cortes profundos da luta. Permaneceu ao lado do corpo do meio-irmão morto ali no gelo e viu que a noite caía. Tornava-se fraco e nauseado à proporção que o sangue se lhe esvaía pelos ferimentos. Pensou, então, em dirigir-se a Ebos, em busca de socorro. Mas, na crescente escuridão, perdeu seu caminho e chegou à floresta de thore, na margem oriental do lago. Vendo ali uma cabana abandonada, entrou e, muito enfraquecido para acender o fogo, caiu sobre as pedras frias da lareira, e lá ficou, com as feridas sangrando.

Alguém veio à noite, um homem sozinho. Parou à soleira e ficou quieto, contemplando o homem ensanguentado na lareira. Entrou, então, apressadamente e fez uma cama de peles tiradas de uma velha arca, acendeu o fogo e fez curativos nos ferimentos de Therem. Quando ele viu o jovem olhar para ele, disse:

— Eu sou Therem de Stok.

— E eu sou Therem de Estre.

Houve um silêncio entre ambos. Então o jovem sorriu:

— Você tratou dos meus ferimentos para me matar, Stokven?

— Não — disse o mais velho.

— Como aconteceu que você, o Lorde de Stok, esteja aqui, sozinho, nesta terra em litígio?

— Eu venho muito aqui — replicou Stokven.

Procurou o pulso do jovem e sua mão para ver se tinha febre; por um instante a palma de sua mão se colocou contra a palma da mão do jovem, dedo por dedo; ambas eram iguais, como as mãos de um mesmo homem.

— Somos inimigos mortais — disse Stokven.

— Assim é, mas eu nunca o vi antes.

Stokven desviou o rosto para o lado e continuou:

— Eu já o vi, há muito tempo. Meu maior desejo é que haja paz entre nossas casas.

— Jurarei paz com você — respondeu o jovem Therem. Assim fizeram e não falaram mais, adormecendo, em seguida, o ferido. Pela manhã, o senhor de Stokven tinha ido embora. Um grupo de gente do vilarejo chegou à cabana e levou Therem de volta para seu lar, em Estre. Aí, ninguém ousou se opor à vontade do senhor, cuja decisão havia sido consumada, a sangue, no lago gelado. Por morte de Sorve, Therem tornou-se o senhor de Estre. Dentro de um ano, ele terminou com a velha rivalidade, dando metade das terras em litígio para o domínio de Stok. Por isto e pelo assassinato de seus irmãos de criação, ele passou a ser chamado Estraven, o Traidor. Entretanto, seu primeiro nome, Therem, continuou sendo dado às crianças desse domínio.


Esta história é um fragmento do livro A mão esquerda da escuridão, escrito e publicado por Ursula K. Le Guin em 1969. A versão que reproduzimos aqui foi tirada da edição da editora Círculo do Livro S. A., com tradução de Terezinha Eboli e Yeda Salles. O livro, porém, foi reeditado em 2019, saindo com nova produção gráfica e nova tradução, feita por Susana L. de Alexandria, pela Editora Aleph. Na narrativa geral do romance de Le Guin – que trata das aventuras de Genry Ai, um terráqueo, enviado a um planeta glacial chamado Inverno –, a autora mescla alguns gêneros, entre os quais figuram histórias como a de “Estraven, o Traidor”, que mimetiza os mitos ou lendas tradicionais.

Amarrados pela pátria: três belos poemas em português

Eu estava perdido entre as imagens e textos do Instagram, quando parei para ler o fragmento de uma canção, recortada e postada por um amigo (e também autor aqui no blog): o pesquisador Otávio Moraes, grande leitor e escritor exemplar de nossas belas letras. A foto dele era a reprodução de um trecho de “Língua”, famigerada música de Caetano Veloso, que deixo aqui, para servir de ruído de fundo às palavras suscitadas pela publicação de Otávio.

A proposta principal deste post é apresentar três poemas amarrados pelo signo da pátria: tema tão delicado a nós que vivemos essa lenta catástrofe do mundo contemporâneo – o mundo dos embargos e das diásporas, o mundo que definha cada dia um pouco mais, nas mãos de presidentes, facções e bancos. Mas antes de passar aos poemas propriamente escritos, gostaria de fazer uma breve contação (entre ficção e fato), para dar tempo não só de terminar a reprodução da canção, como também para contextualizar meu encontro com os versos que vou colocar adiante.

Pois bem, começo destacando que – à parte o relato pessoal de Otávio, que serve de legenda à foto postada em seu perfil – o trecho emprestado de Caetano é o seguinte:

E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua

O que me fisgou foram justamente os últimos versos: “E deixe os Portugais morrerem à míngua / Minha pátria é minha língua”, que, martelando em minha memória, fizeram de mim um inseto preso àquela teia de informações que a aranha da vida acabou tecendo, depois de tanto tempo aqui dentro da cabeça vazia. De repente, eu estava ali, diante dessa aranha, que amarrava outro verso àqueles últimos que li:

A pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações

E lá se foi uma manhã inteira, mastigando o tal verso, tentando adivinhar a autoria, porque têm horas que leitor é bicho orgulhoso e, contrariando a facilidade da internet, se empoleira na estante no exercício meticuloso de refazer os passos e as palavras que já leu. Sabia que era poeta de minha pátria (escrevia em português, é claro), mas quem podia ser? Perguntei à minha companheira, que também não se lembrava ou conhecia, e, daí, fui aos livros, tentando arrancar os segredos desde as lombadas.

Sempre que folheava e não encontrava nada parecido, eu me sentia exilado daquilo que restava só como algo familiar, mas pouco concreto, e quase cedi à vontade de ligar o computador e googlar aquelas poucas palavras de que me lembrava. Mas, apesar da demora do tomo a tomo, quando finalmente recuperei a possível origem daquele verso, o que encontrei foi uma surpresa feliz. Eu estava enganado: não se tratava apenas de um poema de qualquer brasileiro, na verdade, o verso se abriu em três joias raras de nossa seara lusófona, misturadas e picotadas pelo cotidiano e guardadas na forma simples que a memória encontrou: um pouco de “pátria” mais “língua” mais uns verbos mais umas nasais.

Eram três! Mário de Andrade, Rui Knopfli e Jorge de Sena… três nomes, três países, três continentes. Uma língua, uma pátria. O fato de serem poetas de lugares distintos reforçava a ideia que se fazia presente nos seus poemas e versos: o idioma como uma camisa, como a própria identidade (nacional e pessoal). Daí, o que antes era “a pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações” se tornou:

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der (Mário de Andrade – Brasileiro)
Pátria é só a língua em que me digo (Rui Knopfli – Moçambicano)
A pátria é a língua que escrevo por acaso de gerações (Jorge de Sena – Português)

Cada um deles pediria uma análise atenta e pausada, a que não me proponho nesta publicação. Por isso, faço só uma pequena consideração final, porque, ainda que me sinta compatriota de tão belos versos e poetas, tento não esquecer o lugar que ocupa essa nossa língua, o português (língua de colonizadores), que traz consigo toda uma tradição altissonante ocidental, e muitas vezes bárbara, construída a preço de muitas e muitas “outras pátrias”.

É isso… Contada a anedota e desenovelada essa divagação curta, deixo vocês na companhia dos poemas, dos poetas, da pátria que pode e que quer ser língua.

O poeta come amendoim, de Mário de Andrade

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurús conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...

Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
Pátria, de Rui Knopfli

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.
Em Creta, com o Minotauro, de Jorge de Sena 

I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.



III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.

Resenha – “Pais e Filhos”, de Ivan Turgueniev

O conflito de gerações desencadeando o conflito interno

A obra Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev, foi publicado em 1862 e refletiu um dos acontecimentos históricos mais importantes da Rússia do século XIX: o fim da servidão dos camponeses pelos senhores de terras. Como em qualquer movimento de transição, os conflitos de ideias aparecem, geralmente entre uma nova geração e a geração anterior. Em Pais e Filhos, Turgueniev dá ao leitor uma pequena amostra de como ocorre esse choque, dentro de um ambiente familiar e dentro também de cada personagem apresentado.

A viagem do leitor começa no ano de 1859, com Nikolai Petrócitch aguardando ansiosamente a chegada de seu amado filho, Arkádi, que traz consigo seu amigo Bázarov, uma figura peculiar, intrigante, que exerce grande influencia sobre o colega. Essa influencia se faz presente ao longo da maior parte da narrativa, e pode ser vista desde o primeiro momento, quando Arkádi, apesar de seu imenso apreço pelo pai, se comporta de maneira mais fria, sem condizer com a imensa felicidade do reencontro entre pai e filho. Acontece que Bázarov é um niilista: no contexto da obra, um sujeito que recusa toda e qualquer tradição, que vive de acordo com princípios práticos e úteis, não se rendendo a sentimentalismos que não servem para nada.

O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com bases na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito.

Bázarov age, frente à geração anterior, como um sujeito frio, distante, extremamente irônico e de fato com certa arrogância. Arkádi, que tanto admira o amigo, se esforça para agir de maneira semelhante. E enquanto os dois jovens negam toda e qualquer opinião emitida pelos pais, estes, por sua vez, se mostram abertos e mais do que dispostos a conhecer as ideias da nova geração. Pensando nos dias atuais, tendemos a enxergar os mais velhos como pessoas rígidas e inflexíveis: em Turgueniev esses papéis são invertidos, e os mais velhos se mostram mais sábios na medida em que tentam se adaptar, mesmo sem compreender, aos novos tempos.

No íntimo, alegrou-se muito com o convite do amigo, mas julgou-se na obrigação de esconder seu sentimento. Afinal, era um niilista!

Porém, no decorrer dos acontecimentos, percebemos uma mudança nos personagens. O encanto que Arkádi sente com relação ao amigo vai aos poucos se desfazendo quando ele passa a enxergar de forma mais crítica suas atitudes para com os outros. Bázarov parece se obrigar, em alguns momentos, a reprimir seus sentimentos e impulsos (tão inúteis para o niilista), algo que não combina com o “verdadeiro eu” de Arkádi. Assim, ele não segue nem os ideais do pai, nem os do amigo, criando para si aquilo que considera importante para uma vida plena, sendo talvez o verdadeiro “novo homem” que o autor pretendia apresentar. O niilismo de Bázarov também não se sustenta frente as adversidades da vida, se rendendo em alguns momentos à tradição e punindo-se por isso.

Principais Impressões

Para além do que o nome Pais e Filhos pode sugerir, a obra me parece mais uma profunda descrição de conflitos interiores relacionados às respectivas gerações velhas e novas. A possibilidade de mudança, que permeia os personagens e suas relações, foi algo que o autor propôs com uma sensibilidade muito interessante. Os personagens, antes tão limitados às ideologias geracionais, vão ganhando autonomia por meio de aprendizados individuais e compartilhados.

Um ponto que permanece para mim como um conflito são meus próprios sentimentos com relação a Bázarov: apesar de me admirar com sua convicção sobre seus ideais, me peguei odiando-o em diversos momentos da leitura, em especial nos que se referem à relação do jovem com seus pais. Olhei para ele com raiva e com carinho ao longo de toda a leitura, e creio que esse seja o ponto que mais me encantou na obra: a forma como a natureza humana do personagem desperta a minha própria, se choca com meus princípios e desperta empatia. Pais e Filhos foi meu primeiro contato com Turgueniev, autor tão diferente dos outros russos que já li, mas igualmente genial e que, de fato, traz para nosso tempo algumas reflexões ainda muito pertinentes.

“… as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza “indiferente”; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita…”

Conto – “Azrael e o príncipe”, de Ohran Pamuk

“Há muito tempo, havia um príncipe igual ao seu”, começou ele.

O príncipe era filho primogênito e favorito do rei. O rei amava muito o filho, fazia-lhe todas as vontades e promovia banquetes e festas em sua homenagem. Um dia, durante uma dessas festas, o príncipe viu um homem de barba preta e semblante sombrio ao lado de seu pai e percebeu que se tratava de Azrael, o anjo da morte. Os olhares do príncipe e de Azrael se cruzaram, e eles se fitaram surpresos. Depois da festa, o príncipe, aflito, disse ao pai que Azrael estava entre os convidados e que com certeza estava atrás dele: o príncipe percebera isso no semblante do anjo.

O rei ficou com medo: “Vá direto para a Pérsia, não conte nada a ninguém, mas esconda-se no palácio de Tabriz”, ele disse ao filho. “O xá de Tabriz é nosso amigo; ele não vai deixar ninguém pegar você.”

Então o príncipe foi enviado à Pérsia imediatamente. Depois disso, o rei deu outra festa e convidou o sombrio Azrael, como se nada tivesse acontecido.

“Meu rei, vejo que seu filho não está aqui esta noite”, disse Azrael, mostrando-se preocupado.

“Meu filho está na flor da juventude”, disse o rei. “Ele vai ter uma vida longa, se Deus quiser. Por que você pergunta por ele?”

“Três dias atrás, Deus me mandou ao palácio do xá de Tabriz, na Pérsia, para pegar seu filho, o príncipe!”, disse Azrael. “Foi por isso que fiquei muito surpreso e feliz ao vê-lo ontem aqui em Istambul. Seu filho viu o modo como olhei para ele, e acho que entendeu o que significava.”

Azrael deixou o palácio imediatamente.


Esta é uma famosa narrativa da cultura árabe, que aparece recontada nos livros religiosos islâmicos, e que ganhou algumas variações literárias. A versão aqui apresentada, por exemplo, foi redigida pelo autor turco Ohran Pamuk, sendo uma das muitas pequenas histórias que aparecem ao longo da obra A mulher ruiva, publicada pela editora Companhia das Letras, em parceria com a TAG – Experiências literárias, em 2021.

Deixamos, abaixo, uma suposta versão religiosa desta narrativa, um dos fragmentos do Corão. Infelizmente, não conseguimos determinar precisamente a fonte, portanto o texto é apresentado aqui apenas a título de curiosidade e não como material de pesquisa aprofundada.

Quando Asrael, o anjo da morte, passou certa vez por Salomão, dirigiu o olhar a um dos seus convivas. Este perguntou:

– “Quem é ele?”
– “O anjo da morte.” – respondeu Salomão.
– “Parece que ele pôs o olho em mim.” – continuou aquele. – “Por que não ordenas que o vento me leve daqui e me largue na Índia?”

Foi o que Salomão fez. Aí o anjo disse:

– “Se o fitei por tanto tempo, é porque ele me causou estranheza, uma vez que eu tinha ordens de buscar sua alma na Índia, ao passo que se encontrava contigo em Canaã.”

Esta história foi contada por Beidhawi, intérprete do Alcorão.

Conto – “A filha da neve”, de Angela Carter

⚠️ O conto abaixo possui linguagem sexual e obscena ⚠️

Pleno inverno – invencível, imaculado. O conde e sua esposa saem para cavalgar, ele numa égua cinzenta e ela numa preta, ela envolta em peles brilhantes de raposas pretas; e ela usava botas altas, pretas e brilhantes, com saltos escarlates, e esporas. Neve fresca caía sobre a neve já acumulada; quando cessou, o mundo inteiro estava branco.

— Gostaria de ter uma menina branca como a neve — diz o conde.

Seguem cavalgando. Chegam a um buraco na neve; o buraco está cheio de sangue. Ele diz:

— Gostaria de ter uma menina vermelha como sangue.

E seguem cavalgando; ali está um corvo, empoleirado num galho nu.

— Gostaria de ter uma menina negra como a pena daquele pássaro.

Assim que ele terminou sua descrição, lá estava ela, ao lado da estrada, pele branca, boca vermelha, cabelo preto e completamente nua; ela era a filha do seu desejo e a condessa a odiou. O conde ergueu-a e a sentou na frente dele na sela, mas a condessa tinha um único pensamento: como poderei me livrar dela?

A condessa deixou a luva cair na neve e disse à menina que fosse procurar; pretendia galopar para longe e deixá-la ali, mas o conde disse:

— Eu compro luvas novas.

Com isso, as peles saltaram dos ombros da condessa e se retorceram em volta da menina nua. A condessa então jogou seu broche de diamante através do gelo de um lago congelado.

— Mergulhe e vá buscá-lo para mim — disse ela, pensando que a menina fosse se afogar.

Mas o conde disse:

— Ela por acaso é um peixe para nadar num tempo tão frio?

Então as botas saltaram dos pés da condessa e foram para as pernas da menina. Agora, a condessa estava nua em pelo, e a menina coberta de peles e usando suas botas; o conde sentiu pena de sua esposa.

Chegaram a uma roseira, coberta de flores.

— Apanhe uma para mim — disse a condessa à menina.

— Não posso lhe negar isso — disse o conde.

Então, a menina apanha uma rosa; espeta o dedo no espinho; sangra; grita; cai.

Chorando, o conde desceu do cavalo, desabotoou as calças e colocou seu membro viril dentro da menina morta. A condessa freou sua égua, que batia com as patas no chão, e observou-o atentamente; ele logo terminou.

Então, a menina começou a derreter. Logo já não restava dela nada mais além da pena que um pássaro talvez tivesse deixado cair, uma mancha de sangue, como o rastro da caça de uma raposa na neve, e a rosa que ela tirara do arbusto. Agora a condessa estava com todas as suas roupas novamente. Com a longa mão, acariciou suas peles. O conde pegou a rosa, curvou-se e a entregou à mulher; quando ela a tocou, deixou-a cair:

— Ela morde! — disse.


“A filha da neve” é um dos contos que compõem o livro The bloody chamber (1979), da escritora inglesa Angela Carter. A obra teve sua primeira versão publicada no Brasil pela editora Rocco, sob o título de O quarto de Barba Azul (1999), com tradução de Carlos Nougué. Em 2017, o livro foi reeditado e publicado pela editora Dublinense, em parceria com a TAG – Experiências literárias, que o lançou com nova tradução, de Adriana Lisboa, e com o título A câmara sangrenta.

Resenha – “Lolita”, de Vladmir Nabokov

Entre a obsessão, a paixão e o crime

“Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta. Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita.”

Um leitor que nada ouviu falar sobre a obra Lolita pode, lendo essa sentença, se comover e se preparar para a leitura de uma história de amor. E digo sentença porque não se trata de um romance, mas da história de um crime. O livro Lolita, de Vladmir Nabokov, foi publicado pela primeira vez em 1955, e provocou um verdadeiro escândalo na época, sendo proibido e apreendido em diversos países, como Inglaterra e França. A história de “amor” entre Lolita e Humbert Humbert é contada por ele (Humbert) de forma poética, enquanto ele se prepara para seu julgamento final, e tem a tendência de chocar e nausear quem se arrisca a encarar uma realidade tão marcante nos dias de hoje. Trata-se não de uma história de amor, mas de abuso sexual, psicológico, de chantagens e de cárcere cometidos por um homem de 40 anos contra uma criança de 12 anos.

O abuso sexual infantil é um problema óbvio. No Brasil, percebeu-se um aumento expressivo no número de denúncias durante o período de isolamento social, sendo que, de janeiro a maio, foram registrados 6091 casos, sendo que 96% destes ocorreram dentro da casa das vítimas (dados divulgados pelo Extra Classe, em maio de 2021). A Terapia do Esquema, uma das grandes abordagens em crescimento na Psicologia, aponta para o alto nível de influencia que eventos traumáticos vivenciados na infância apresentam sobre a saúde mental dos indivíduos ao longo de toda a vida, sendo o abuso sexual e a negligencia os maiores indicadores de transtornos mentais que se apresentam na clínica. Portanto, acredito que Lolita, apesar do desconforto que causa, é uma obra importante para que possamos sair da nosso lugar de “tudo está bem no mundo”, iniciando um debate sobre a necessidade real de se discutir o tema da pedofilia nos diversos cenários sociais (inclusive, por favor, NAS ESCOLAS!).

“Ali estava uma criança solitária, inteiramente desamparada, com quem um adulto vigoroso, malcheiroso, tinha tido, naquela manhã, por três vezes, porfiadas relações.”

Clique na imagem.

Pois bem, como dito anteriormente, Lolita conta a história de abuso que se deu entre Lolita (Dolores, Lô), e Humbert Humbert (H.H), homem de cerca de 40 anos que sente atração por Ninfetas: “Em um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem garotas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas ‘nínfica’ (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets”. Tudo começa quando H.H, mudando-se para os EUA, se hospedando na casa de Charlote, mãe de Lolita, e lá permanecendo apenas devido a uma forte atração por Lo. Por “obra do destino”, Charlote acaba falecendo, e Humbert vê uma oportunidade para enfim vivenciar sua tão desejada história de amor. Durante alguns anos, portanto, H. H e Lolita embarcam em uma viagem de carro pelos Estados Unidos, vivendo uma relação muitas vezes denominada pela própria Lolita como “incesto, crime”, e por Humbert como “amor, paixão”. É óbvio, ao leitor e ao narrador, que Lolita não é feliz, mas se sujeita à situação por medo: medo de ser abandonada (ela, que já não tem ninguém) e de se ver trancafiada em reformatório ou internatos.

“No hotel, ficamos em quartos separados, mas no meio da noite ela vinha soluçando para o meu, e fazíamos a coisa muito suavemente. Como os senhores veem, ela não tinha, absolutamente, para onde ir.”

Principais impressões

Confesso que foi uma leitura muito difícil para mim. Foi algo lento, arrastado, e em diversos momentos me vi a ponto de desistir. A história em si é pesada, absurda, nauseante, e infelizmente apresenta muito da realidade. Me causou um incômodo que raramente me atinge em minhas leitura, e me tirou completamente da zona de conforto. Mas, para além da história em si, a forma narrativa é bem arrastada. Humbert se prende, em diversos momentos, em descrições detalhadas sobre os lugares pelos quais ele e Lolita passaram e sobre as pessoas com quem se encontraram. Para alguns, é uma verdadeira viagem pelos Estados Unidos, mas, para mim, foi maçante.

Apesar disso, foi interessante me ver na mente de um sujeito abusador e perceber como a situação impacta psicologicamente o autor do crime e sua vítima, Lolita, pensando principalmente em minha prática profissional (sou estudante de Psicologia). Os abusos físicos acontecem a todo momento, mas o que é de fato descrito no livro são os abusos psicológicos: o pavor que Humbert tem de perder Lolita (seja por ter seu crime descoberto ou pelo simples fato de saber que um dia Lô será adulta, e não mais sua ninfeta), as reações aversivas de Lolita às investidas dele e, por fim, a forma como ele mantém na memória a história que se passa entre eles. E isso, no fim das contas, foi o que me manteve na leitura: a vontade de compreender, clinicamente, o que se passa na cabeça de um abusador, e a curiosidade para saber que fim a vida de Lolita tem.

“Durante nossa singular e bestial coabitação, foi-se tornando claro à minha convencional Lolita que mesmo a mais miserável das vidas de família era preferível àquela paródia de incesto – que era, afinal de contas, o que de melhor eu poderia oferecer àquela criança abandonada.”

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