Como ler Homero: segredos por trás da Ilíada e da Odisseia

ÊIA, marinheiros! Têm vontade de começar uma leitura inesquecível por águas misteriosas ou terras distantes? Então você veio ao lugar certo! Abaixo eu separei algumas dicas – sem deixar de lado o bom humor – de como vocês podem começar a ler tanto a Ilíada bem como a Odisseia originais, textos de Homero, cantados alguns séculos antes de Cristo, na Grécia antiga.

Aos navegantes que preferem os manuais em outras mídias, nós fizemos uma síntese desta publicação em forma de vídeo, que pode ser acessada pelo Youtube. Além disso, se sua dúvida é sobre por onde você deve começar, oh, nobre navegante, então é melhor você tomar um outro barco, também aqui em nosso porto:

No mais, se você está certo de que quer seguir esta viagem em forma de texto, prepare-se para a aventura e vamos abordo nessas lições!

Preparando a nau

É comum que os navegantes de primeira viagem, em contato com a Ilíada ou com a Odisseia, enfrentem tormentas terríveis devido à complexidade das construções dos versos. Alguns dos navegantes naufragam, e abandonam a obra (para retomar mais tarde, talvez), mas outros seguem adiante, por mais difícil que seja, e não conseguem aproveitar a experiência por completo ao chegar ao fim da jornada.

Isso não vai acontecer com você, porque existem algumas formas de preparar melhor seu navio para velejar por essas águas misteriosas. Antes, no entanto, é bom lembrar que apesar de hoje serem obras divulgadas em papel e mídia digital, tanto a Ilíada quanto a Odisseia, em seus primórdios eram peças pertencentes à literatura oral, responsáveis por construir, entre outras coisas, um retrato cultural da sociedade grega daquele tempo. Isso quer dizer que quanto mais informações você tiver da cultura e mitologia gregas, mais pontos de reconhecimento aparecerão na hora da leitura.

Separe as provisões para a viagem

Se você já tem um repertório clássico construído, um bom primeiro passo para a leitura é começar por uma edição/tradução que não parta diretamente dos versos homéricos na forma original. As edições que comportam o estilo épico em romances e prosa são muito boas para um contato mais imediato com esses textos tão antigos.

Entre as minhas preferidas, estão a Odisseia, com apresentação de Ana Maria Machado e adaptação de Geraldine McCaughrean; e a Ilíada, em quadrinhos, adaptação feita por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, Andreza Caetano e Paulo Corrêa, com ilustrações de Piero Bagnariol. Mas existem muitas outras edições e com os níveis mais variados; as que estou indicando, tornam a experiência de leitura bem divertida, não só por terem imagens, mas por darem atenção especial às narrativas e brincarem um pouco com a forma clássica de escrita.

Mas o que seria essa forma clássica? Vamos descobrir no próximo tópico!

Coloque seu barco na água. Veja a maré

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Agora, que você já tem conhecimento das histórias de Homero e leu uma versão simplificada, pode partir para as traduções que têm como matriz os versos homéricos diretos do grego. É bom atentar para o fato de que, para a composição dos cantos clássicos, os gregos cantadores (aedos) desenvolveram várias técnicas (jogos e estruturas pré-elaboradas) que pudessem ser utilizados na composição das passagens cantadas.

O símile, as cenas típicas e os epítetos, somados à estrutura versificada em hexâmetro datílico, compõem o grupo de recursos aos quais os aedos lançam mão para incrementarem seu repertório.

Hexâmetro datílico

Analisemos, então, cada uma dessas técnicas citadas. Vou utilizar, para isso, o Canto XIX da Ilíada, com tradução de Carlos Alberto Nunes, tradutor que respeita a metrificação dos versos de Homero, que, como citado no parágrafo anterior, são escritos em hexâmetro datílico, verso que possui a estrutura breve-breve-longa ( – – u ).

Uma dica que facilita sua identificação é estabelecer um ritmo para cantá-lo
como faz Leonardo Antunes, neste vídeo:

Tendo isso feito, vamos à escanção do primeiro verso da Ilíada, que ilustra visualmente a métrica:

CAN – ta – me(a) – – le – ra(ó) – DEU – sa – fu – NES – ta – de(A) – QUI – les – pe – LI [da]

Todos os versos tanto da Ilíada como da Odisseia possuem essa estrutura, que contribui para a poeticidade e continuidade dos cantos, apesar de não interferirem diretamente no sentido da história, diferentemente dos outros elementos, que possuem um impacto direto na narrativa.

Içar velas! Remem!

Antes de entrarmos nesses outros elementos, façamos um breve resumo do que acontece no Canto XIX: Aquiles, após saber da morte de Pátroclo e ter em mãos seu cadáver, recebe de Tétis, sua mãe, uma nova armadura, que é vestida por ele para que pudesse guerrear. Em seguida, o grande herói volta para a batalha após uma reunião com os chefes gregos. No canto aparecem seis símiles, alguns objetos significantes, uma cena típica de vestimenta e vários epítetos que recheiam a fábula cantada; além disso, alguns traços da cultura grega, como a relação particular com a morte, também estão presentes.

Símile

Podemos caracterizá-lo como uma comparação feita, geralmente, entre um fenômeno e uma ação ou traço, e que não tem tamanho delimitado, podendo ser extenso ou frasal. Outro traço importante desse recurso é seu uso, que está atrelado à importância ou beleza do que é narrado. Por isso mesmo, o símile é muito importante e auxilia na caracterização das passagens:

Tal como chega no mar, até os nautas aflitos o brilho
que, da fogueira acendida no cimo de um monte, se espalha
em solitária paragem, enquanto nas ondas piscosas
a tempestade a afastarem-se os força dos caros parentes:
do mesmo modo até o éter atinge o esplendor que do escudo
belo de Aquiles se expande. […] (XIX, 375-380, Homero)

Nesse trecho, vemos a comparação entre o escudo de Aquiles e o brilho de um farol (uma fogueira em cima de um monte), o que realça ainda mais o guerreiro grego, que, como uma luz no fim do túnel, volta a guerrear contra os troianos, depois de tantos dias afastado.

Por fim, o símile também pode ter relação com uma fábula, conhecimento comum e frase informativa, o que faz com que obtenha em certas horas um caráter didático, ensinando costumes, tradições e histórias a partir de uma unidade menor.

Epítetos

Os epítetos (construções que acompanham um nome próprio) também possuem essa característica de serem elementos pequenos que carregam muitas qualidades. Para além de uma adjetivação qualquer, os epítetos são capazes de construir metáforas complexas, como no caso de “Atenas, a de olhos de coruja” ou carregar informações relevantes, como no caso de “Aquiles Pelida”, em que Pelida significa filho de Peleu.

Ring composition (‘composição em anéis’ ou ‘corrente’)

Como dito no breve resumo do canto, é nesse capítulo que Aquiles receberá a nova armadura, feita por Hefesto, de sua mãe, Tétis. Essa armadura, da qual um escudo é o item significativo, tem uma descrição que toma grande parte do Canto XVIII. A importância desse objeto de destaque está relacionada ao ring composition da obra, em que Aquiles enfrentará Heitor, que veste a antiga armadura daquele, e que não pode ser inferior à deste. Ambos são portadores de uma armadura única e de grande valor, a de Heitor usada outrora pelo Pelida, ou seja, a luta entre os dois personagens será uma luta espelhada, esta que acontece no Canto XXII, e completa o anel, quando Aquiles, ao matar Heitor, acaba por matar a si mesmo.

A cena típica ou tipificada

Geralmente, o aedo descreve sucintamente como é vestida a armadura, o que configura uma cena tipificada para tal gesto; além de vestir, pode ser também que o personagem esteja se despindo e, em qualquer uma das duas situações, cria um efeito cinematográfico para o evento narrado. No Canto XIX, os versos em que Aquiles coloca seu novo equipamento vão do 369 até o 399 e são utilizados símiles para melhor caracterizar a vestimenta.

Essas descrições são responsáveis por dar consistência a toda a obra, pois o narrado passa para um plano paralelo ao como é narrado. Tal característica, entretanto, não diminui a qualidade da história que está sendo contada se em relação com sua forma, haja vista a atenção que o aedo dá para a veracidade – as realidades – da guerra. Ainda neste canto, por exemplo, Odisseu orienta Aquiles e Agamenon a alimentarem o exército que há dias lutava na pugna sem descanso; a ideia de saciar-se para a batalha, para manter o vigor, dá um tom realístico para a cena e em muito a enriquece.

Sendo assim, pode-se dizer que a forma e o conteúdo entram em sintonia nas composições épicas de Homero. A técnica, aliada ao contexto, não aparece apenas no Canto XIX, utilizado como exemplo no parágrafo anterior, é um traço que perpassa toda a obra. Esse cotejo é justamente o responsável pelo encanto da narrativa, pois, se de um lado temos as construções estéticas de grande valor, do outro temos os ensinamentos de toda uma cultura que já não mais nos pertence, mas, apesar disso, entra em sintonia com a nossa.

De náufrago a capitão

Uma coisa que pode ajudá-lo nessa jornada por esses textos clássicos é viajar com uma frota! Não se acanhe! Monte sua tripulação: convide colegas; procure grupos de leitura coletiva; vídeos de explicação dos capítulos e das obras em geral; chame sua mãe, pai, avós, tios, primos, namorados ou irmãos para ouvi-lo, enquanto você lê as obras em voz alta. Enfim, compartilhe essa experiência! As trocas de impressão ajudam bastante a clarear o texto, e vocês poderão se emocionar juntos a cada novo oceano vencido.

No Youtube existem vários vídeos e até cursos inteiros sobre a Ilíada e sobre a Odisseia e eles são ótimos remos para a sua novíssima embarcação. Lembre-se: as obras homéricas são um Triângulo das Bermudas, ou seja, se você for sem conhecer aquelas águas corre grandes riscos de naufragar ou ser pego por monstros! Procure, então, um capitão experiente, que já fez o trajeto antes e que pode orientá-lo!

Entre os meus cursos favoritos está o de Fundamentos de Literatura Grega, do professor Rafael Silva, do departamento de Letras Clássicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Rafael, no vídeo abaixo, sobre a Ilíada, se atenta de forma mais aprofundada aos elementos citados neste texto e vai muito além em sua análise, trazendo referências do original em grego, explicando contextos e passagens, e fazendo pontes entre as obras de Homero e outras obras clássicas.

Terra à vista!

Espero que este texto sirva de motivação para você começar (ou retomar) sua jornada meio aos versos homéricos! Não precisa ter pressa na leitura; leia um canto por vez, pesquise se não estiver entendendo os pontos chave, e não se martirize com suas dificuldades, pois os textos são complexos apesar de prazerosos e, afinal de contas, nós precisamos começar de algum lugar e de alguma forma, mesmo que seja tropeçando ou naufragando.

Texto atualizado em 26/04/2023.

Mães e mulheres de Dublin sob a lente de James Joyce

Sobre um tal de James Joyce

James Joyce (1882-1941) foi um escritor irlandês que continua a assombrar a literatura universal e que permanece como uma ferida aberta na tradição literária que o sucedeu devido a complexidade de obras como Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Reconhecido por mesclar ficção e biografia, o autor propõe grandes dificuldades para a leitura de seus textos, pois, além das inúmeras referências internas e externas à cultura, sociedade e política da Irlanda, é importante que também se conheça a vida do escritor, pois isso joga luz sobre diversos aspectos que uma leitura desavisada ignora.

Exemplo disso aparece na relação com os familiares, com a fé cristã e com a língua inglesa, três pontos capitais que Stephen Dedalus – alter-ego e personagem de Joyce – tenta contornar em Retrato de um artista quando jovem (1916); os mesmos que o escritor problematizará em seus textos. 

“Eu e meus dublinenses”

Apesar de pouco produtivo quantitativamente (Joyce escreveu pouco mais que cinco obras completas), o autor irlandês captou, ao longo de sua escrita, inúmeros retratos da sociedade de Dublin, destilados eles sob a linguagem estilisticamente pessoal e bem trabalhada. Frases que a primeira vista são simples, ganham dimensões profundas nas palavras do narrador joyceano, como no caso da frase que abre o quarto conto de Dublinenses, Eveline:

She sat at the window watching the evening invade avenue

A sonoridade dessa sentença é nítida e dificílima de se traduzir para o português, por conta do excesso das consoantes S, W, V e T nas palavras, que se perdem quando passadas para o português. Ainda assim, se por um lado temos esse trabalho lindo e complexo com os termos de Joyce, por outro há um de fácil adaptação e tradução: o conteúdo das histórias.

Mesmo tratando-se de experiências vividas ao longo da primeira metade do século XX, os contos de Dubliners (1914) ainda possuem forte ressonância com acontecimentos do dia a dia nas cidades contemporâneas. A solidão, a paralisia, a morte e o suicídio, os abusos e o medo e as questões familiares são temas que orientam os pequenos contos da coletânea escrita por Joyce, e é sobre questões familiares que figuram, mais especificamente, em dois contos que falarei agora.

Entre mães e filhas

Casa de Pensão e Uma mãe (The Boarding House e A Mother, títulos originais) são duas das quinze estórias que compõem o livro Dublinenses. A relação entre mãe e filha é protagonista dos conflitos em ambos, e, de forma sutil, Joyce evidencia traços obscuros da convivência das personagens na sociedade da qual fazem parte.

Apesar de apresentarem desfechos diferentes, em ambos os contos, o “motor” que coloca o conflito principal para funcionar é o plano que as mães de Polly e Kathleen traçam para a vida das filhas. Matriarcas obstinadas, essas mães descritas por Joyce mostram-se como personagens-autoridade. As filhas, contudo, e também os outros personagens que aparecem ao longo das narrativas, configuram-se como submissas e omissas.

Tanto a Sra. Mooney, mãe de Polly, bem como a Sra. Kearney, mãe de Kathleen, casaram-se não pelos sentimentos que tinham com o cônjuge, mas pelos negócios da família. Ambas querem o bem estar próprio, tomando atitudes que não prejudiquem a imagem de madame que construíram e valorizam. Elas tratam a vida e as relações pessoais como mercadoria; além de apresentarem uma crença de que imagem e status são mais importantes que o sentimentalismo, pois dariam conta de solucionar os problemas pessoais.

Por outro lado, as filhas passam uma imagem de graça e classe e não se preocupam com a própria vida. Polly, em Casa de Pensão, escuta e executa as exigências da mãe, mesmo tendo consciência de que está sendo manipulada por ela. Kathleen, por sua vez, sempre foi tratada como um objeto de status: a mãe a preparara mandando-a jovem para um convento onde aprendeu música e francês, além de ter feito tudo para que o nome da filha fosse reconhecido por todos. Assim, as duas filhas se anulam frente a vontade de suas mães e não expressam seus desejos; seguem os planos estipulados pelas “chefes” e muitas vezes apresentam uma cumplicidade cega.

É para orientar nosso olhar, suscitando essas conclusões sobre as personagens, que o irlandês coloca pequenas passagens – pontos de singularidade – em seu texto. Esses pontos condensam muito da complexidade dos personagens, e acabam por definir o seu comportamento. No caso da Sra. Mooney, Joyce pontua que ela:

“lidava com questões morais da mesma forma como um cutelo lida com a carne”

Em outras palavras, de forma objetiva e fria, precisa e apática.

A pensão e o concerto, cenários dos respectivos contos, são um microcosmo da sociedade daquela época: ou as personagens são duras – tratando de questões morais feito o facão cortando a carne – ou seriam elas o pedaço de carne a ser cortado. Assim, apresenta-se um lado cruel existente não só na forma familiar, em que não há espaço para a boa convivência entre os pares, como também na sociedade em que essas famílias existem. A culpa de tamanha crueza está no peso social, o fardo, carregado pelas mães dos contos: a açougueira que deve manter a imagem de dama, e a senhora que luta pelos direitos da filha e pelos próprios direitos.

Em uma leitura contemporânea dessas histórias, Joyce constata para nós leitores e leitoras o fato de que a mulher precisava ser forte e calculista ou a sociedade as destruiria. Mas essas são as impressões do escritor: um homem! As personagens por si só não podem falar, pois só existem nas histórias; já vocês podem muito bem extrair, da melhor forma, as próprias sobre o mundo observado por Joyce: lendo sua obra!

Você encontra, aqui, o Dublinenses!

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