Como ler a Eneida de Virgílio?

Um dos livros que li no ano de 2023 foi a Eneida, de Virgílio, livro publicado postumamente no antigo Império Romano, por volta do século 1 A.C., que teve canonização quase imediata, sendo usado como material didático para jovens romanos serem alfabetizados na língua latina. Por ter achado a experiência definitivamente transformadora, decidi vir aqui compartilhar algumas dicas sobre como ler a Eneida de Virgílio, para aqueles que também querem enfrentar essa obra prima da literatura. Para isso nesta publicação decidi responder a algumas perguntas que as pessoas me fizeram, quando viam que o livro que eu estava lendo era a Eneida.

Sobre o que fala a Eneida?

A Eneida conta alguns anos da vida de de Eneias após a queda da cidade de Troia. Enquanto soldado troiano, inimigo dos gregos, Eneias é obrigado a reunir seu pai, seu filho, sua esposa, soldados e amigos para fugir de Ílio – outro nome para Troia – que tinha sido destruída durante os muitos anos da Guerra de Troia. 

O livro está dividido em doze capítulos (cantos ou livros, nome que varia de acordo com a tradução) e pode ser separado em duas grandes seções: a primeira, dos cantos 1 a 6, pode ser lida como inspirada pela Odisseia. Isso significa que nela assistimos a errância de Eneias pelo mar, passando por ilhas misteriosas e maravilhosas, e enfrentando desafios terríveis. Por sua vez, a segunda parte, cantos 7 a 12, se refere à seção “ilidíaca” do livro, na qual acontecem os confrontos em terra, nos quais Eneias é levado a enfrentar Turno, herói latino comparado a Aquiles. 

Para ler a Eneida é preciso ter lido a Ilíada e a Odisseia de Homero?

Essa é uma pergunta muito comum e a resposta é simples: NÃO

Apesar de essas três obras estarem em diálogo direto, você não necessariamente precisa lê-las na ordem cronológica de seus acontecimentos, que leva da Ilíada, passa pela Odisseia, para só então chegar a Eneida. Digo isso porque as três narrativas são autônomas e os poetas, Homero e Virgílio, oferecem tudo que você precisa saber em cada um dos seus poemas épicos.

Mas isso não significa, é claro, que as histórias não estão relacionadas. Porque, como eu disse antes, as três estão em diálogo direto e envolvem a famosa Guerra de Troia. 

Qual edição comprar?

Edição é um assunto realmente pessoal, porque cada uma das versões vai ter características particulares, que podem ou não chamar a nossa atenção. Por exemplo, eu gosto das traduções de poesia épica feitas por Carlos Alberto Nunes, porque o tradutor adota o verso hexâmetro dactílico: uma estrutura métrica formada por dezesseis sílabas, sempre intercalando uma sílaba forte (ou longa) com duas breves.

CAN – ta – me’a – -le -r’oh – DEU – sa – fu –NES – ta – d’a – QUI – les – pe – LI -da

De todo modo, se seu desejo é ler o texto em português, duas edições que gosto bastante são a da Editora 34 – que tem tradução justamente de Carlos Alberto Nunes – e a da Editora Autêntica, traduzida por João Carlos de Melo Mota. Ambas têm a vantagem de ser edições comentadas, que trazem detalhes interessantes e explicações para as passagens obscuras nos rodapés.



Vale à pena fazer leituras coletivas ou acompanhadas?

SIM! É claro que vale!

Na verdade, falando de minha própria experiência de leitura, ler em conjunto os poemas épicos faz com que eles sejam ainda mais… épicos! Esse gênero nasceu de uma tradição oral, ou seja, os poemas eram cantados, lidos em voz alta, fosse em momentos de celebração ou de memória. Por isso, trazer alguém para ler com você vai incrementar a experiência de recepção do texto. Fora que, de vez em quando, ler uma frase usando sua própria voz (e não o silêncio dos olhos) ajuda a entender melhor o que está sendo descrito.

Quanto às leituras guiadas e podcasts que procuram explicar o texto, eles são importantes e também têm o seu lugar no lado esquerdo do peito. Encarar sozinho um clássico da literatura nem sempre é tarefa fácil, e ter algum especialista ou leitor apaixonado destrinchando as passagens com você ameniza bastante o fardo que as páginas da Eneida podem trazer.

Inclusive, nós fizemos uma série de vídeos no canal do Duras Letras no Youtube, atravessando a Eneida, canto por canto, chamando a atenção para os detalhes.

Leitura da Eneida – Gabriel Reis Martins

12 Videos




Livro 1: Introdução à épica de Virgílio

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Livro 2: A queda e o Cavalo de Tróia

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Livro 3: Viagens de Eneias pelo mar

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Livro 4: Tragédia amorosa de Dido




Livro 5: Jogos para Anquises




Livro 6: Descida de Eneias ao mundo dos mortos




Livro 7: Ilíada de Virgílio e catálogo de heróis




Livro 8: O escudo de Eneias




Livro 9: O ataque dos rútulos e a aristeia de Turno




Livro 10: A impiedade de Eneias




Livro 11: Política e guerra com os latinos




Livro 12 — FINAL: Eneias versus Turno

O que é preciso para ler a Eneida?

Dizendo de maneira muito direta: um bom par de olhos (ou uma boa versão em audiobook).

Mas não há por que mentir, dizendo que se trata de um livro fácil ou coisa parecida. Na verdade, a leitura da Eneida pode ser lenta e complicada, com passagens que nos pedem muita atenção de vez em quando. Porém é o tipo de desafio que vale cada segundo, por cenas como a saída de Troia, no Canto 2: quando Eneias coloca o pai, um idoso, nas costas e pega o filho pela mão, arrastando os dois para fora da cidade em chamas. Ou pela cena de batalha de Turno, do Canto 9, quando sozinho ele invade o acampamento troiano e faz uma chacina. 

Enfim, encerro este texto dizendo que, para ler a Eneida, basta um pouquinho de desejo de ver belezas como essas: cenas que sobreviveram a mais de vinte séculos de história, para serem traduzidas, impressas e levadas para o gabinete, a página branca/tela na frente dos olhos.

5 livros de teatro imperdíveis: tesouros que não podem faltar em sua estante

Recentemente uma colega da Faculdade de Letras perguntou quais eram os livros que eu julgava os mais importantes para começar a construir uma biblioteca de teatro. Por esse motivo, montei uma pequena lista para ela, da qual destaquei 5 LIVROS DE TEATRO IMPERDÍVEIS que, na minha opinião, todo mundo precisa conhecer e ter em sua biblioteca particular de dramaturgias.

É claro que essas listas são sempre perigosas e incompletas, e costumam dizer mais sobre quem as fez do que propriamente do tema em si (seja teatro ou qualquer outro). Então, queria deixar claro o critério que usei para escolher os livros. Quando fui montar a lista, tentei escolher peças que costumam aparecer em disciplinas e cursos sobre teatro, que foram dados ou frequentados por mim ao longo da minha formação. O resultado obviamente não dá conta da diversidade do universo teatral, mas pode ser uma boa porta de entrada para quem quer começar a ler e estudar teatro.


Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona

Hamlet: o príncipe da Dinamarca

Esperando Godot

Vestido de Noiva

Auto da Compadecida

A lista que enviei para minha colega continha mais do que essas cinco obras que listei acima. Então vou disponibilizá-la aqui, para o caso de alguém se interessar pela lista completa.

Antigos

Modernos e contemporâneos

Brasileiros

Três poemas de Henriqueta Lisboa

Desde que entrei na Faculdade de Letras da UFMG e tomei conhecimento do Acervo de Escritores Mineiros (AEM), criei um caso antigo com alguns dos autores e autoras que estão naquela casa. O espaço, uma mistura de museu, biblioteca, galeria de arte e arquivo, ficava àquele tempo na Biblioteca Central da universidade, sendo aberto para visitações do público em geral. Em um dos passeios que fiz lá, conheci Henriqueta Lisboa.

Melhor dizendo: aprendi seu nome, pois levaria uns anos para entrar em contato com a obra que a escritora produziu. Lembro-me agora de que chamou minha atenção àquela época o fato de ser um dos maiores acervos do AEM: com livros, cartas, objetos, mobília etc., tudo da autora. Também fiquei encantado com o fato de um dos meus professores, Reinaldo Marques, estar então organizando a publicação da obra completa de Henriqueta Lisboa, o que colocava toda aquela pilha de papeis em um formato condensado e mais acessível, que podia levar para casa.

Henriqueta Lisboa. Reprodução Arquivo AEM.

Isso tudo foi em 2016… Mas só agora, ao fim de 2023, adquiri a obra reunida da autora. 

Trata-se de uma box, organizada em três volumes e publicada pela Editora Peirópolis. Tendo saído da esfera do privado para o público, quando o acervo chegou à UFMG, agora, com a organização de Reinaldo Marques e Wander Melo, a obra de Henriqueta faz o caminho contrário e volta, do público para o privado. 

É com a intenção de entrar nessa equação, que não só gravei um vídeo sobre a obra completa de Henriqueta Lisboa, comentando dois de seus textos, como também compartilho aqui no Duras Letras três poemas da autora.

Serenidade

Serenidade. Encantamento.
A alma é um parque sob o luar.
Passa de leve a onda do vento,
fica a ilusão no seu lugar.

Vem feito flor o pensamento,
como quem vem para sonhar.
Gotas de orvalho. Sentimento.
Névoas tenuíssimas no olhar.

Tombam as horas, lento e lento,
como quem não nos quer deixar.
Êxtase. Vésperas. Advento.

Ouve! O silêncio vai falar!
Mas não falou…Foi-se o momento…
E não me canso de esperar”.

Convite

Eu sou amiga dos que sofrem.

Aproxima-te do meu coração, Amado.
Amado, conta-me teus segredos.
Onde nasceu a tristeza que nos teus olhos mora,
que causa tem a palidez que unge teus lábios
e esse tremor que tuas mãos comunicam às minhas?

Por que não vens, à hora confidencial do crepúsculo
sobre o banco de pedra esquecido entre as árvores,
junto à fonte chorosa
e os afagos do vento perfumado de flores,
derramar no meu coração
as palavras reveladoras
que me fariam participar da tua amargura,
do teu desespero,
ou simplesmente do teu cansaço de viver?…

Quando desfalecesse a tua voz em sussurro
e o luar surgisse acariciando o céu em penumbra,
talvez, Amado, talvez sorrisses,
vendo aflorar nos meus olhos noturnos
a lua pequenina da lágrima.

Prisioneira da noite

Eu sou a prisioneira da noite.
A noite envolveu-me nos seus liames, nos seus musgos,
as Pelas atiraram-me poeira nas pestanas,
s dedos do luar partiram-me os fios do pensamento,
os ventos marinhos fecharam-se ao redor de minha cintura.

Quero os caminhos da madrugada e estou presa,
quero fugir aos braços da noite e estou perdida.
Onde fica a distância? Dizei-me, ó Peregrinos,
K e. fica a distância da qual me chegam misteriosos apelos?
Alguém me espera, alguém me esperará para sempre,
porque sou a prisioneira da noite.

A noite me adormenta com suas flautas esflorando veludos de pêssego,
a noite me enerva com suas grandes corolas desmaiadas nos caules,
vejo madressilvas com os pequenos dentes de pérola sorrindo enlaçadas aos troncos fortes,
e o frio da noite é um desejo de faces aconchegadas,
e há tepidez nas grotas verde-negras, tão próximas… 

Oh forças para caminhar! Forças para vencer o inebriamento da noite,
forças para desprender-me da areia que canta sob meus pés como cordas de violino,
forcas para pisar a relva macia e tenra com suas gotas de sereno,
forças para desvencilhar-me dos afagos numerosos do vento!

Na noite não posso ficar como uma rosa pendida 
porque o homem solitário viria tomar-me pela mão
imaginando que sou a que procura amor.

Na noite não ficarei com a túnica esvoaçante e os cabelos em desordem,
porque uma criança poderia pensar que sou a louca sem pouso,
na noite não, porque a velhinha trêmula viria perguntar-me se acaso sou a sua filha desaparecida.

Oh! Quem me ensina os caminhos da madrugada?
Por que não se acendem agora, sim, agora, os candelabros das igrejas?
Por que não se iluminam as casa onde há noivas felizes?
Por que de tantas estrelas no céu ao menos uma não se desprende
para vir pousar no meu ombro como um sinal de esperança?

Tenho um encontro marcado há longo, longo tempo…

Mas não chegarei porque sou a prisioneira da noite.

Conto – A menina, de Ricardo Piglia

Apresentação

Recentemente, li o romance A cidade ausente, do escritor argentino Ricardo Piglia. Foi uma das leituras mais difíceis que fiz nos últimos anos, por conta da estrutura fragmentada e dos muitos paradoxos colocados pelo autor ao longo da narrativa. Apesar da dificuldade, gostei bastante do romance, e em especial de um capítulo: “A menina” – que faz parte de um dos relatos do Museu a Macedonio e que funciona como uma espécie de teoria sobre a literatura argentina (baseada em uma série de plágios e traduções mal feitas, segundo Piglia).

Por esse motivo, decidi compartilhá-lo aqui com vocês, já que, além de tudo, “A menina” funciona muito bem como uma história à parte, que possui sentido para fora de A cidade ausente.

A menina

Os dois primeiros filhos do casal tiveram uma vida normal, com as dificuldades que significa ter uma irmã como ela numa cidadezinha do interior. A menina (Laura) tinha nascido sadia e só com o tempo começaram a notar sinais estranhos. Seu sistema de alucinação foi objeto de um complicado relatório publicado numa revista científica, mas muito antes disso seu pai já o havia decifrado. Yves Fonagy lhe deu o nome de “extravagâncias da referência”. Nesses casos, muito raros, o paciente imagina que tudo o que acontece a seu redor é uma projeção de sua personalidade. Exclui da sua experiência as pessoas reais, porque se considera muitíssimo mais inteligente que os demais. O mundo era uma extensão de si mesma e seu corpo se deslocava e se reproduzia. Vivia constantemente preocupada com maquinarias, principalmente as lâmpadas elétricas. Ela as via como palavras, toda Vez que se acendiam alguém começava a falar. Considerava portanto o escuro como uma forma do pensamento silencioso. Uma tarde de verão (aos cinco anos) reparou num ventilador elétrico que girava em cima de um armário. Considerou que era objeto vivo, da espécie das fêmeas. A menina do ar, com a alma engaiolada. Laura disse que ela morava “aí”, e ergueu a mão para mostrar o teto. Aí, disse, e mexia a cabeça da esquerda para a direita. A mãe desligou o ventilador. Nesse momento começou a ter dificuldades com a linguagem. Perdeu a capacidade de usar corretamente os pronomes pessoais e dali a pouco quase deixou de usá-los e mais tarde enterrou na memória as palavras que conhecia: Só emitia um leve cacarejar e abria e fechava os olhos. A mãe separou os filhos da irmã por medo de contágio, coisas do interior, a loucura não contagia e a menina não era louca. O caso é que puseram os dois irmãos num internato de padres em Del Valle a família se recluiu no casarão de Bolívar. O pai dava aulas de matemática no Clássico e era um músico frustrado. A mãe era professora e tinha chegado a diretora de escola, mas resolveu se aposentar para tomar conta da filha. Não queriam interná-la. Duas vezes por mês eles a levavam até um instituto em La Plata e seguiam as recomendações do doutor Arana, que a submetia a uma cura elétrica. Explicou-lhe que a menina vivia num vazio emocional extremo. Por isso a linguagem de Laura ia aos poucos se tomando abstrata e despersonalizada. No início nomeava corretamente a comida; dizia “manteiga”, “açúcar”, “água”, mas depois começou a se referir aos alimentos por grupos desvinculados do seu caráter nutritivo. O açúcar passou a ser “areia branca”, a manteiga, “barro suave”, a água, “ar úmido”. Estava claro que ao trocar os nomes e ao abandonar os pronomes pessoais estava criando uma linguagem conveniente à sua experiência emocional. Longe de não saber usar corretamente as palavras, via-se ali uma decisão espontânea de criar uma linguagem funcional à sua experiência de mundo. O doutor Arana não concordou, mas o pai partiu dessa constatação e decidiu entrar no mundo verbal de sua filha. Ela era uma máquina lógica ligada a uma interface errada. A menina funcionava segundo o modelo do ventilador; um eixo fixo de rotação era o seu esquema sintático, ao falar mexia a cabeça e fazia sentir o vento de seus pensamentos inarticulados. A decisão de ensiná-la a usar a linguagem pressupunha explicar-lhe o modo de armazenar as palavras. Perdiam-se dela como moléculas no ar quente e sua memória era a brisa que abanava as cortinas brancas na sala de uma casa vazia. Era preciso conseguir levar esse veleiro até o ar parado. O pai deixou a clínica do doutor Arana e começou a tratar a menina com um professor de canto. Precisava incorporar a ela uma sequência temporal e pensou que a música era um modelo abstrato da ordem do mundo. Cantava árias de Mozart em alemão, com Madame Silenzky, uma pianista polonesa que regia o coro da igreja luterana em Carhué. A menina, sentada numa banqueta, uivava acompanhando o ritmo e Madame Silenzy estava aterrorizada, porque pensava que a menina era um monstro. Tinha doze anos e era gorda e bela como uma madona, mas seus olhos pareciam de vidro e cacarejava antes de cantar. Era um híbrido, a menina, para Madame Silenzky, uma boneca de espuma, uma máquina humana, sem sentimentos nem esperanças. Cantava aos berros e desafinava, mas começou a ser capaz de seguir uma linha melódica. O pai estava tentando incorporar-lhe uma memória temporal, uma forma vazia, feita de sequências rítmicas e modulações. A menina carecia de sintaxe (carecia da própria noção de sintaxe). Vivia num universo úmido, para ela o tempo era um lenço! acabado de lavar que se torce pelo centro. Reservou para si um território próprio, dizia seu pai, do qual quer excluir toda experiência. Tudo o que for novo, qualquer acontecimento não vivido e ainda por viver surge para ela como uma ameaça e um sofrimento e se transforma em terror. O presente petrificado, a monstruosa e viscosa estagnação, o nada cronológico só pode ser alterado pela música. Não é uma experiência, é a forma pura da vida, não tem conteúdo, não pode assustá-la, dizia seu pai, e Madame Silenzky (aterrorizada) agitava sua cabecinha cinzenta e relaxava suas mãos sobre as teclas antes de começar com uma cantata de Haydn. Quando por fim conseguiu que a menina entrasse numa sequência temporal, a mãe adoeceu e foi preciso interná-la. A menina associava o desaparecimento de sua. mãe (que morreu dois meses depois) com um lied de Schubert. Cantava a música como quem chora um morto e recorda o passado perdido. Então o pai apoiou-se na sintaxe musical de sua filha e começou a trabalha com o léxico. A menina não tinha referências, era como ensinar uma língua estrangeira a um morto. (Como ensinar uma língua morta a um estrangeiro.) Resolveu começar a contar-lhe relatos breves. A menina estava imóvel, perto da luz, na varanda que dava para o quintal. O pai se sentava numa poltrona e narrava uma história como quem canta. Esperava que as frases entrassem na memória de sua filha como blocos de sentido. Por isso resolveu contar sempre a mesma história e variar as versões. Desse modo o enredo era um modelo único do mundo e as frases se transformavam em modulações de uma experiência possível. O relato era simples. Em sua Chronicle of the Kings of Ensland (século XII), William de Malmesbury relata a história de um jovem e potentado nobre romano que acaba de se casar. Após os festejos da celebração, o jovem e seus amigos saem para jogar bocha no jardim. Durante o jogo, o jovem coloca sua aliança, com medo de perdê-la, no dedo entreaberto de uma estátua de bronze que está junto à cerca dos fundos. Ao voltar para pegá-la, constata que o dedo da estátua está fechado e que não pode tirar o anel. Sem dizer nada a ninguém, volta ao anoitecer com tochas e criados e descobre que a estátua desapareceu. Esconde a verdade da recém-casada e nessa mesma noite, ao entrar na cama, percebe que algo se interpõe entre os dois, algo denso e nebuloso que impede que se abracem. Paralisado de terror, ouve uma voz que sussurra em seu ouvido:

— Abraça-me, hoje tu te uniste a mim em matrimônio. Sou Vênus e me entregaste o anel do amor.

Da primeira vez, a menina pareceu ter adormecido. Estava ali no ar fresco, diante do jardim dos fundos. Não parecia haver nenhuma alteração, à noite arrastou-se até o quarto e encolheu-se no escuro com seu cacarejar de sempre. No dia seguinte, à mesma hora, o pai sentou a filha na varanda e contou-lhe uma outra versão da história. A primeira variante de importância tinha aparecido mais ou menos vinte anos depois, numa recopilação alemã de fábulas e lendas feita em meados do século XII e conhecida pelo nome de Kaiserchronik. Segundo essa versão, a estátua em cujo dedo o jovem coloca seu anel é uma imagem da Virgem Maria e não de Vênus. Quando tenta unir-se à recém-casada, a Mãe de Deus se interpõe castamente entre os dois cônjuges, suscitando a paixão mística do jovem. Depois de abandonar sua mulher, o jovem torna-se monge e dedica o resto de sua vida ao serviço de Nossa Senhora. Num quatro anônimo do século XII, vê-se a Virgem Maria com a aliança no anular esquerdo e um enigmático sorriso nos lábios. 

Todo dia, ao cair da tarde, o pai contava a mesma história nas suas múltiplas versões. A menina que cacarejava era a anti-Scherezade que à noite recebia, de seu pai, o relato do anel contado uma e mil vezes. Um ano mais tarde a menina já sorri, porque sabe como é que a história continua e às vezes olha para sua mão e mexe os dedos, como se fosse ela a estátua. Uma tarde, quando o pai a fez sentar na poltrona da varanda, a menina começa ela mesma a contar o relato. Fita o jardim e, com um murmúrio suave, dá pela primeira vez a sua versão dos fatos. “Mouvo olhou a noite. Onde tinha estado seu rosto apareceu um outro, o de Kenya. De novo o estranho sorriso. De repente Mouvo estava de um lado da casa e Kenya no jardim e os círculos sensoriais do anel eram muito tristes”, disse. A partir daí, com o repertório de palavras que tinha aprendido e com a estrutura circular da história, foi construindo uma linguagem, uma série ininterrupta de frases que permitiram que se comunicasse com seu pai. Nos meses seguintes foi ela quem contou a história, todas as tardes, na varanda que dava para o pátio dos fundos. Chegou a ser capaz de repetir, palavra por palavra a versão de Henry James, talvez por ser esse relato, “The last of the Valerii”, o último da série. (A ação deslocou-se para a Roma do Risorgimento, onde uma jovem e rica herdeira americana, numa dessas típicas uniões jamesianas, contrai matrimônio com um nobre italiano de nobre linhagem, porém decadente. Uma tarde uns operários que fazem escavações nos jardins da Villa encontram uma estátua de Juno, o Signor Conte sente um estranho fascínio diante dessa obra-prima do melhor período da escultura grega. Leva a estátua para um jardim de inverno abandonado e a esconde ciumento dos olhares alheios. Nos dias que se seguem ele transfere à estátua de mármore grande parte da paixão quê sente por sua bela mulher e passa cada vez mais tempo no salão de vidro. No fim a contessa, para libertar seu marido do feitiço, arranca o anel que adorna o anular da deusa e o enterra no fundo do jardim. Então a felicidade retorna à sua vida.) Uma garoa suave caía sobre o pátio e o pai se balançava na cadeira. Nessa tarde pela primeira vez a menina fugiu da história, como quem cruza uma porta ela saiu do círculo fechado do relato e pediu a seu pai que comprasse um anel (anello) de ouro para ela. Ali estava, cantarolando e cacarejando, uma máquina triste, musical. Tinha dezesseis anos, era pálida e sonhadora como uma estátua grega. Tinha a fixidez dos anjos.

Fim

Aos que tiverem curiosidade no que se refere ao romance A cidade ausente, fiz um vídeo-resenha sobre ele, que saiu no Youtube do Duras Letras, cujo link está abaixo:

Conto — “A sala vermelha”, de L. M. Montgomery

“A sala vermelha”, de L. M. Montgomery (1895)

Tradução de Karine Ribeiro

“A sala vermelha” faz parte do livro O Lado Mais Sombrio, uma antologia de contos de L. M. Montgomery publicada pela Editora Wish.

Quer que eu lhe conte a história, neto? É triste e é melhor esquecer — poucos se lembram dela agora. Há sempre histórias tristes e sombrias em famílias antigas como a nossa.

No entanto, prometi e devo manter minha palavra. Então sente-se aqui aos meus pés e descanse sua cabeça em meu colo, para que eu não veja em seus olhos jovens e azuis as sombras que minha história trará.

Eu era apenas uma criança quando tudo aconteceu, mas me lembro muito bem. Me lembro como fiquei feliz quando a madrasta de meu pai, a sra, Montressor — ela não gostava de ser chamada de avó, pois tinha acabado de fazer cinquenta anos e ainda era uma bela mulher — escreveu para minha mãe dizendo que ela devia mandar a pequena Beatrice para Montressor Place nas férias do Natal. Fui alegremente, embora minha mãe tenha sofrido por se separar de mim; ela tinha pouco a amar à não ser a mim, pois meu pai, Conrad Montressor, se perdeu no mar com apenas três meses de casamento.

Minhas tias costumavam me dizer o quanto eu me parecia com ele, sendo, assim diziam, uma Montressor até o osso; e isso eu entendia como elogio, pois os Montressors eram uma família de boa descendência e bem-conceituada, e as mulheres eram conhecidas por sua beleza. Isso eu bem podia acreditar, pois de todas as minhas tias não havia uma que não fosse considerada uma mulher bonita. Por isso, fiquei feliz quando pensei em meu rosto e corpo esguio, esperando que, quando crescesse, não fosse considerada indigna de minha linhagem.

O Place era uma casa antiquada e misteriosa, do estilo que eu gostava, e a sra. Montressor sempre foi gentil comigo, embora um pouco severa, pois era uma mulher orgulhosa e pouco se importava com crianças, já que não tinha nenhuma.

Mas havia livros ali para me debruçar sem impedimentos – pois ninguém questionava meu paradeiro se eu não os incomodasse – e retratos de família estranhos e sombrios nas paredes Para contemplar, até que eu conhecesse bem cada rosto orgulhoso e velho, tinha imaginado uma história, pois eu era dada a sonhar e era mais velha e mais sábia do que minha idade, já que não tinha companhias infantis para me manter ainda criança.

Sempre havia algumas de minhas tias no Place para me beijar e fazer muito por mim por causa de meu pai, que era o irmão favorito delas. Minhas tias — eram oito — casaram-se bem, assim diziam as pessoas que conheciam, e moravam não muito longe, voltando muitas vezes para casa para tomar chá com a sra. Montressor, que sempre se dera bem com suas enteadas, ou para ajudar a preparar uma ou outra festividade — pois todas eram donas de casa notáveis.

Estavam todas em Montressor Place para o Natal, e eu recebi mais carícias do que merecia, embora elas cuidassem de mim um pouco mais rigorosamente que a sra, Montressor, e garantiam que eu não lesse contos de fadas demais nem ficasse acordada até tarde da noite.

Mas não era pelos contos de fadas e ameixas nem pelas carícias que eu me alegrava de estar naquele lugar naquela época. Embora não falasse a esse respeito com ninguém, eu tinha um grande desejo de ver a esposa de meu tio Hugh, sobre quem eu tinha ouvido muito, tanto bem quanto mal.

Meu tio Hugh, embora o mais velho da família, havia se casado recentemente, e todo o campo fervilhava de conversas sobre o jovem esposa. Não ouvi tanto quanto gostaria, pois os mexeriqueiros percebiam minha aproximação e mudavam de assunto. No entanto, tendo um pouco mais de compreensão do que eles sabiam, ouvi e compreendi muito de sua conversa.

E então eu soube que nem a orgulhosa sra. Montressor, nem minhas boas tias, nem mesmo minha gentil mãe, julgavam bem o que meu tio Hugh havia feito. E ouvi dizer que a sra. Montressor tinha escolhido uma esposa para seu enteado, de boa família e alguma beleza, mas que meu tio Hugh não queria nada com ela — uma coisa que a sra. Montressor achou difícil perdoar, mas poderia ter feito isso se meu tio, em sua última viagem às Índias, pois ele ia muitas vezes em seus próprios navios, não tivesse se casado e trazido para casa uma noiva estrangeira, de quem ninguém sabia nada, exceto que sua beleza era deslumbrante e que ela era de algum estranho sangue alienígena como aquele que não corria nas veias azuis dos Montressors.

Alguns tinham muito a dizer sobre seu orgulho e insolência, é se perguntavam se a sra. Montressor cederia mansamente sua autoridade à estranha. Mas outros, tomados por sua beleza e graça, diziam que as histórias contadas nasciam de inveja e malícia, e que Alicia Montressor era muito digna de seu nome e posição.

Assim, pensei em julgar sozinha, mas quando fui para o Place meu tio Hugh e sua esposa haviam partido por um tempo, e tive de engolir a decepção de esperar o retorno com toda minha pouca paciência.

Mas minhas tias e sua madrasta falavam muito de Alicia, e falavam dela com desprezo, dizendo que ela era apenas uma prostituta e que de nada adiantaria meu tio Hugh ter se casado com ela, e outras coisas semelhantes. Também falavam da companhia que ela reunia ao seu redor, pensando que ela tinha companheiros estranhos e impróprios para um Montressor. Tudo isso ouvi e ponderei muito, embora minhas boas tias suponham que uma garota como eu não daria atenção aos seus sussurros.

Quando não estava com elas, ajudando a bater ovos e passas, e sendo vigiada para que não comesse mais do que uma a cada cinco, eu certamente era encontrada no corredor da ala, debruçada sobre meu livro e lamentando não ter mais permissão para entrar na Sala Vermelha.

O corredor da ala era estreito e escuro, ligando as salas principais do Place a uma ala mais antiga, construída de forma curiosa. O corredor era iluminado por janelinhas de vidro quadrado e, no final, um pequeno lance de escada levava à Sala Vermelha.

Sempre que eu estivera no Place antes e isso acontecia com frequência , passava grande parte do meu tempo nessa Sala Vermelha. Naquela época, era a sala de estar da sra. Montressor, onde ela escrevia suas cartas e examinava as contas da casa, e às vezes fofocava durante o chá. A sala era de teto baixo e escuro, decorada com seda vermelha e com estranhas janelas quadradas no alto do beiral e lambris escuros ao redor. E lá eu adorava sentar tranquilamente no sofá vermelho e ler meus contos de fadas, ou conversar sonhadoramente com as andorinhas que esvoaçavam loucamente contra as vidraças minúsculas.

Quando fui ao Place naquele Natal, logo me lembrei da Sala Vermelha – pois tinha um grande amor por ela. Mas eu nem tinha – passado dos degraus quando a sra. Montressor veio correndo pelo corredor e, me agarrando pelo braço, me puxou para trás com muita força, como se fosse o próprio quarto do Barba Azul em que eu estava me aventurando.

Então, vendo meu rosto, que eu duvido que não tenha ficado bastante assustado, ela pareceu se arrepender de sua brusquidão e me deu um tapinha gentil na cabeça.

— Ah, pequena Beatrice! Eu assustei você, criança? Perdoe a imprudência de uma velha. Mas não entre onde não foi chamada, e nunca arrisque os pés na Sala Vermelha, pois ela pertence à seu tio Hugh, e deixe-me dizer-lhe que ela não gosta esposa de muito de intrusos.

Senti muito por ouvir isso, e não entendi por que minha nova tia se importaria se eu entrasse de vez em quando, como era meu hábito, para conversar com as andorinhas e não mexer em nada. A sra. Montressor cuidou para que eu lhe obedecesse, e não fui mais à Sala Vermelha, mas me ocupei com outros assuntos.

Havia grandes eventos no Place e muitas idas e vindas. Minhas tias nunca ficavam ociosas; havia muitas festividades na semana de Natal e um baile na véspera. E minhas tias prometeram – embora não antes de eu as exaurir de tanto pedir – que eu ficaria acordada naquela noite e veria o quanto da festa eu quisesse. Então fiz as tarefas e fui para a cama cedo todas as noites sem reclamar, embora fizesse isso com mais facilidade porque, quando elas achavam que eu estava dormindo, entravam e conversavam em volta da lareira do meu quarto, dizendo de Alicia aquilo que eu não deveria ouvir.

Finalmente chegou o dia em que meu tio Hugh e sua esposa eram esperados em casa embora não até que minha escassa paciência estivesse quase esgotada e estávamos todos reunidos para encontrá-los no grande salão, onde a luz avermelhada da lareira brilhava.

Minha tia Frances me vestiu com meu melhor vestido branco e minha faixa carmesim, lamentando muito sobre meu pescoço e braços magrinhos, e me fez comportar-me com elegância, como convinha à minha criação. Então fiquei em um canto, minhas mãos e pés frios de excitação, pois acho que cada gota de subido à cabeça, e meu coração batia tão sangue em meu corpo tinha pouco que até me doía.

A porta se abriu e Alicia pois eu estava tão acostumada a ouvi-la ser chamada assim que nunca pensei nela como minha tia – entrou, e um pouco atrás meu tio alto.

Ela se aproximou do fogo de maneira orgulhosa e ficou lá soberbamente enquanto afrouxava sua capa. A princípio nem me viu, mas acenou, um pouco desdenhosamente, ao que parecia, para a sra. Montressor e minhas tias, que estavam agrupadas ao redor da porta da sala de visitas, muito elegantes e silenciosas.

Mas não vi nem ouvi nada, exceto apenas ela, pois sua beleza, quando ela saiu de seu manto e capuz carmesim, era algo tão maravilhoso que esqueci minha educação e a olhei com fascínio, pois nunca tinha visto tamanha beleza e nem sonhara ela.

Eu havia visto muitas mulheres bonitas, pois minhas tias e minha mãe eram consideradas belas, mas a esposa de meu tio era tão pouco parecida com elas como o brilho do pôr do sol ao luar pálido ou uma rosa carmesim aos lírios brancos.

Nem posso pintá-la em palavras como a vi então, com as longas línguas de luz do fogo lambendo seu pescoço branco e oscilando sobre as ricas massas de seu cabelo vermelho-dourado.

Ela era alta tão alta que minhas tias pareciam insignificantes ao lado dela, e elas não eram de estatura mediana; no entanto, nenhuma rainha poderia ter se comportado mais majestosamente, e toda a paixão e o fogo de sua natureza estrangeira queimavam em seus esplêndidos olhos que, pelo que vi, poderiam ser escuros ou claros, mas que sempre pareciam poças de chamas quentes, ora tenros, ora ferozes.

A pele era como uma delicada pétala de rosa branca, e quando ela falou eu disse ao meu eu tolo que nunca tinha ouvido música antes; nem nunca mais penso em ouvir uma voz tão doce, tão líquida, como aquela que ondulou para fora de seus lábios cheios.

Várias vezes imaginei isso, meu primeiro encontro com Alicia, ora de uma maneira, ora de outra, mas nunca tinha sonhado que ela falasse comigo, de modo que foi para mim uma grande surpresa ela virou-se e, estendendo suas lindas mãos, disse muito graciosamente:

— E esta é a pequena Beatrice? Eu ouvi falar muito de você. Venha, me dê um beijo, criança. 

E eu fui, apesar do cenho franzido de minha tia Elizabeth, pois o glamour da beleza dela estava sobre mim, e eu não mais me admirava que meu tio Hugh a amasse.

Ele também estava muito orgulhoso dela; no entanto, senti, mais do que vi – pois eu era sensível e de rápida percepção, como crianças com almas velhas sempre são –, que havia algo além de orgulho e amor em seu rosto quando ele a olhava, e mais em seus modos do que o amante apaixonado: por assim dizer, uma espécie de desconfiança à espreita.

Nem eu poderia imaginar, embora me parecesse traição, que ela amava demais o marido, pois parecia meio condescendente e meio desdenhosa com ele; no entanto, não se pensava nisso em sua presença, apenas quando ela partia.

Quando ela saiu, achei que não havia sobrado nada, então me arrastei sozinha para o corredor da ala e me sentei perto de uma janela para sonhar com ela; e Alicia encheu meus pensamentos tão completamente que não foi surpresa quando eu ergui meu olhar e a vi descendo o corredor sozinha, sua cabeça brilhante cintilando contra as velhas paredes escuras.

Quando ela parou perto de mim e me perguntou com o que eu estava sonhando, já que eu tinha um rosto tão sério, respondi com sinceridade que era com ela – ao que Alicia riu, como quem não se comprazia, e disse meio zombeteira:

Não desperdice seus pensamentos assim, pequena Beatrice. Mas venha comigo, criança, se quiser, pois tenho uma estranha fantasia com seus olhos solenes. Talvez o calor de sua jovem vida possa derreter o gelo que congelou ao redor de meu coração desde que cheguei a esta fria família.

E, embora não entendesse o que ela queria dizer, fui, feliz por ver a Sala Vermelha mais uma vez. Alicia me fez sentar e conversar com ela, o que fiz, pois eu não era tímida; e ela me fez muitas perguntas, algumas que pensei que ela não deveria ter feito, mas não pude respondê-las, então não houve mal.

Depois disso, passei uma parte de cada dia com ela na Sala Vermelha. Meu tio Hugh estava lá muitas vezes, e ele a beijava e elogiava sua beleza, sem dar atenção à minha presença pois eu era apenas uma criança.

No entanto, sempre me pareceu que ela mais suportava do que acolhia suas carícias; às vezes a chama sempre ardente em seus olhos brilhava tão lúgubre que um medo frio se apoderava de mim, e eu me lembrava do que minha tia Elizabeth havia dito, sendo uma mulher de língua amarga, embora bondosa de coração: que aquela estranha criatura ainda traria sobre todos nós alguma má sorte.

Então eu me esforçava para banir tais pensamentos e me repreendia por duvidar de alguém tão gentil comigo.

Enquanto a véspera de Natal se aproximava, minha cabeça tola estava dia e noite tomada de pensamentos do baile. Mas uma grande decepção se abateu sobre mim, pois acordei naquele dia muito doente com um resfriado muito forte; e embora eu me aguentasse bravamente, minhas tias logo descobriram. Apesar de minhas súplicas comoventes, fui colocada na cama, onde chorei amargamente e não quis ser consolada, pois pensei que não conseguiria ver a boa gente e, mais do que tudo, Alicia.

Mas essa decepção, pelo menos, foi poupada, pois à noite ela entrou em meu quarto, sabendo da minha saudade ela sempre foi indulgente com meus pequenos desejos. E quando a vi, esqueci meus membros doloridos e minha testa febril, e nem mesmo o baile eu queria ver, pois nunca uma criatura mortal foi tão adorável quanto ela, parada ali ao lado da minha cama. 

Seu vestido era branco, e não havia nada que eu pudesse comparar com o material, exceto o luar caindo através de uma vidraça fosca, e dele saiam seus seios e braços cintilantes, tão nus que me envergonhava olhar para eles. No entanto, não se podia negar que eles eram de uma beleza maravilhosa, brancos como mármore polido.

E ao redor de sua garganta nevada e braços arredondados, e nas massas de seus esplêndidos cabelos, havia pedras cintilantes, reluzentes, com corações de pura luz, que agora sei que eram diamantes, mas não sabia então, pois nunca tinha visto qualquer coisa assim.

E eu olhei para Alicia, bebendo de sua beleza até que minha alma estivesse cheia, enquanto ela estava como uma deusa diante de seu adorador. Acho que ela leu o pensamento em meu rosto e gostou – era uma mulher vaidosa, e para tal até a admiração de uma criança é doce.

Então ela se inclinou para mim até que seus olhos esplêndidos olharam diretamente para os meus, deslumbrados.

— Diga-me, pequena Beatrice, pois dizem que a palavra de uma criança deve ser acreditada: você me acha bonita?

Encontrei minha voz e disse a ela verdadeiramente que a achava linda além dos meus sonhos angelicais – como de fato ela era. Alicia sorriu, satisfeita.

Então meu tio Hugh entrou e, embora eu achasse que seu rosto ficou sério ao olhar para o esplendor nu dos seios e braços dela, como se não gostasse que os olhos de outros homens se regozijassem, ele a beijou com toda a força do orgulho afetuoso de um amante, enquanto ela o olhava meio zombeteira.

Então ele disse:

— Querida, você me concederia um favor?

E ela respondeu:

— Pode ser que sim.

E ele disse:

— Não dance com aquele homem esta noite, Alicia. Eu desconfio muito dele.

Sua voz tinha mais um comando de marido do que uma súplica de amante. Ela o olhou com algum desprezo, mas, quando viu o rosto dele ficar severo – pois os Montressors toleravam pouco desrespeito à sua autoridade, como eu tinha boas razões para saber –, ela pareceu mudar e um sorriso surgiu em seus lábios, embora seus olhos tenham brilhado maliciosamente.

Então Alicia colocou os braços em volta do pescoço dele e – embora me parecesse que ela o estrangulou enquanto o abraçava – a voz dela era maravilhosamente doce e acariciante enquanto murmurava em seu ouvido.

Ele riu e seu semblante suavizou, embora ainda tenha dito:

— Não me tente demais, Alicia.

Então eles saíram, ela um pouco à frente e muito majestosa. Depois disso também entraram minhas tias, muito bem-vestidas e modestamente, mas, depois de Alicia, não me impressionaram. Fui apanhada na armadilha de sua beleza, e o desejo de vê-la novamente cresceu tanto em mim que depois de um tempo fiz uma coisa inde- vida e desobediente.

Eu tinha sido obrigada a ficar na cama, mas me levantei e vesti um roupão. Estava decidida a descer silenciosamente, caso pudesse ver Alicia, sem ser notada.

Mas quando cheguei ao grande salão, ouvi passos se aproxi- mando e, com a consciência pesada, deslizei para o lado na sala azul e me escondi atrás das cortinas para que minhas tias não me vissem.

Alicia entrou, e com ela um homem que eu nunca tinha visto. No entanto, imediatamente me lembrei de uma serpente preta e fina, com um olho brilhante e maligno, que eu tinha visto no jardim da sra. Montressor dois verões antes, e que provavelmente teria me picado. John, o jardineiro, a matara, e eu realmente pensei que, se ela tivesse alma, devia ter entrado naquele homem.

Alicia se sentou e ele ao lado dela, e quando a abraçou, ele beijou seu rosto e lábios. Ela também não recuou de seu abraço, mas até sorriu e se inclinou para mais perto dele com um movimento suave, enquanto eles conversavam em alguma língua estranha e estrangeira.

Eu era apenas uma criança inocente, não sabia nada de honra e desonra. No entanto, me parecia que nenhum homem deveria beijá-la, exceto meu tio Hugh, e desde aquela hora eu desconfiei de Alicia, embora não entendesse então o que fiz depois.

E enquanto eu os observava – sem pensar em bancar a espiã –, vi o rosto dela ficar subitamente frio, e Alicia se endireitou e afastou os braços de seu amante.

Segui os olhos culpados dela até a porta, onde estava meu tio Hugh, e todo o orgulho e paixão dos Montressors estavam em suas sobrancelhas baixas. Ele avançou quando Alicia e a serpente se se- pararam e se levantaram.

A princípio, ele não olhou para a esposa culpada, mas para o amante dela, e deu-lhe um tapa forte no rosto. Ao que ele, sendo um covarde de coração, como todos os vilões, empalideceu e se esgueirou da sala com uma ameaça murmurada.

Meu tio virou-se para Alicia e, com muita calma e terror, disse:

— A partir desta hora, você não é mais minha esposa!

E havia no tom algo que dizia que seu perdão e amor nunca mais deveriam ser dela.

Então ele gesticulou para que ela saísse e Alicia foi, como uma rainha orgulhosa, com sua gloriosa cabeça erguida e nenhuma vergonha na expressão.

Quanto a mim, quando eles se foram, fui embora, atordoada, e voltei para minha cama, tendo visto e ouvido mais do que eu imaginara, como pessoas desobedientes e bisbilhoteiras sempre fazem.

Mas meu tio Hugh manteve sua palavra, e Alicia não era mais sua esposa, salvo no nome. No entanto, fofocas ou escândalos não houve, pois o orgulho da família manteve em segredo sua desonra, e ele nunca pareceu outro que um marido cortês e respeitoso.

Nem a sra. Montressor e minhas tias, embora se questionassem muito, ficaram sabendo, pois não ousavam questionar nem seu irmão nem Alicia, que se comportava tão altiva como sempre, e parecia não ansiar nem por amante nem por marido. Quanto a mim, ninguém imaginou que eu soubesse de nada, e guardei segredo sobre o que tinha visto na sala azul na noite do baile de Natal.

Depois do Ano-Novo, fui para casa, mas logo a sra. Montres- sor me chamou outra vez, dizendo que a casa estava solitária sem a pequena Beatrice. Então voltei e encontrei tudo inalterado, embora o Place estivesse muito quieto, e Alicia saísse pouco da Sala Vermelha.

Vi pouco meu tio, exceto quando ele ia e vinha para os negócios de sua propriedade, um pouco mais sério e silenciosamente que antes, ou me trazia livros e doces da cidade.

Mas todos os dias eu ficava com Alicia na Sala Vermelha, onde ela falava comigo, muitas vezes de forma selvagem e estranha, mas sempre gentil. E embora eu ache que a sra. Montressor não gostasse muito de nossa intimidade, ela não disse uma palavra, e eu ia e voltava conforme conversava com Alicia, embora não gostasse muito de seus modos estranhos e do fogo inquieto em seus olhos.

Nem jamais a beijava, depois de ter visto seus lábios pressionados pelos da cobra, embora ela às vezes me persuadisse e ficasse mesquinha e irritada quando eu não a beijava; mas ela não adivinhou meus motivos.

Março chegou naquele ano como um leão, extremamente faminto e feroz, e meu tio Hugh havia cavalgado por uma tempestade e não pensava em voltar por alguns dias.

À tarde, eu estava sentada no corredor da ala, sonhando devaneios maravilhosos, quando Alicia me chamou para a Sala Vermelha.

E enquanto ia, me maravilhei com a beleza da mulher, pois suas bochechas estavam coradas e suas joias, opacas diante do brilho de seus olhos. A mão dela, quando pegou a minha, estava muito quente, e sua voz tinha um toque estranho.

— Venha, pequena Beatrice disse ela, venha falar comigo, pois não sei o que fazer com o meu eu solitário hoje. O tempo paira pesadamente nesta casa sombria. Acho que esta Sala Vermelha tem uma influência maligna sobre mim. Veja se sua tagarelice infantil pode afastar os fantasmas que se revoltam nestes cantos escuros e velhos – fantasmas de uma vida arruinada e envergonhada! Não, não se encolha – falo descontroladamente? Não me leve tão a sério, meu cérebro parece em chamas, pequena Beatrice. Venha; pode ser que você conheça alguma velha lenda sombria desta sala – certamente deve haver uma. Nunca um lugar foi mais adequado para um ato sombrio! Não fique tão assustada, criança – esqueça meus caprichos. Conte-me agora e ouvirei.

Ao que ela se sentou com agilidade no sofá de cetim e virou seu lindo rosto para mim. Então juntei minha perspicácia e contei a ela o que eu não deveria saber: como, gerações antes, um Mon- tressor havia desonrado a si mesmo e seu nome, e que, quando ele voltou para casa para sua mãe, ela o encontrou naquela mesma Sala Vermelha e o insultou e recriminou por ter esquecido o seio que o havia nutrido; e que ele, frenético de vergonha e desespero, voltou sua espada contra o próprio coração e assim morreu. Mas a mãe dele enlouqueceu de remorso e foi mantida prisioneira na Sala Vermelha até a morte.

Assim contei a história, como eu ouvira minha tia Elizabeth contar. Alicia me ouviu e não disse nada, exceto que era uma história digna dos Montressors. Retruquei, pois eu também era uma Montressor e tinha orgulho disso.

Mas ela segurou minha mão suavemente e disse:

— Pequena Beatrice, se amanhã ou depois elas, essas mulheres frias e orgulhosas, disserem que Alicia não era digna de seu amor, diga-me, você acreditaria?

E eu, lembrando do que tinha visto na sala azul, fiquei em silêncio, pois não podia mentir. Então Alicia jogou minha mão para longe com uma risada amarga, e pegou da mesa uma pequena adaga com um cabo incrustrado de joias.

Parecia um brinquedo de aparência cruel e falei isso – ao que ela sorriu e deslizou seus dedos brancos pela lâmina fina e brilhante de uma maneira que me deu calafrios

– Um golpezinho com isto disse ela -, um golpezinho e o coração não bate mais, o cérebro cansado descansa, os lábios e os olhos nunca mais sorriem!

E eu, sem compreendê-la, mas tremendo, implorei-lhe que a deixasse de lado, o que ela fez descuidadamente e, colocando a mão sob meu queixo, virou meu rosto para o dela.

— Pequena Beatrice de olhos sérios, seja sincera, ficaria triste se nunca mais se sentasse aqui com Alicia nesta mesma Sala Vermelha?

E respondi com seriedade que sim, feliz por poder dizer tanta verdade. Então o rosto dela ficou tenro e Alicia suspirou profundamente.

Ela abriu uma caixa exótica e incrustada e tirou dela uma corrente de ouro brilhante de raro acabamento e design requintado, e a pendurou em meu pescoço. Não me permitiu agradecer, mas colocou a mão suavemente em meus lábios.

— Agora vá — disse ela. — Mas antes que você me deixe, pequena Beatrice, conceda-me apenas um favor – pode ser que eu nunca lhe peça outro. Seu povo, eu sei, aqueles frios Montressors, pouco se importam comigo, mas mesmo com todos os meus defeitos, sempre fui gentil com você. Então, quando o amanhã chegar, e eles lhe disserem que Alicia está morta, não pense em mim apenas com desprezo, mas tenha um pouco de piedade, pois nem sempre fui o que sou agora, e poderia nunca ter me tornado assim se uma criancinha como você estivesse sempre perto de mim, para me manter pura e inocente. E eu adoraria que você me abraçasse e me desse um beijo.

E assim fiz, admirando-me muito com seus modos – pois havia neles uma estranha ternura e uma espécie de desejo desesperado. Em seguida, ela gentilmente me tirou do quarto, e eu me sentei meditando junto à janela do corredor até a noite cair – foi uma noite terrível, de tempestade e escuridão. E pensei em como era bom que meu tio Hugh não voltasse numa tempestade assim. No entanto, antes que o pensamento esfriasse, a porta se abriu e ele caminhou pelo corredor, sua capa encharcada e torcida pelo vento. Em uma mão, um chicote, como se ele tivesse saltado de seu cavalo; na outra, o que parecia ser uma carta amassada.

O rosto dele estava tão sombrio quanto a noite, e ele não prestou atenção em mim enquanto eu corria atrás dele, pensando egoisticamente nos doces que ele havia prometido me trazer mas não pensei mais neles quando cheguei à porta da Sala Vermelha.

Alicia estava ao lado da mesa, de capa como se vestida para uma viagem, mas seu capuz havia deslizado para trás e seu rosto aparecia nele branco como mármore, exceto onde seus olhos coléricos queimavam, com medo, culpa e ódio em suas profundezas; e ela tinha um braço levantado como se fosse empurrá-lo para trás.

Quanto ao meu tio, ele estava diante dela e não vi seu rosto, mas sua voz era baixa e terrível, falando palavras que eu não entendia naquela época, embora muito tempo depois viesse a saber o significado delas.

Ele a desprezou por ela ter pensado em fugir com o amante, jurou que nada mais impediria sua vingança e fez outras ameaças, selvagens e terríveis.

No entanto, Alicia não disse palavra até que ele terminou, e então ela falou, mas o que disse não sei, exceto que estava cheio de ódio e provocação e acusações selvagens, tal qual uma mulher louca poderia ter proferido.

E ela até o desafiou a impedir sua fuga, embora meu tio lhe dissesse que cruzar aquele limiar significaria sua morte; pois ele era um homem injustiçado e desesperado e não pensava em nada além de sua própria desonra.

Então Alicia fez menção de passar por ele, mas meu tio a pegou pelo pulso branco; ela se virou para ele com fúria, e vi sua mão direita estender-se furtivamente na mesa atrás dela, onde estava a adaga.

— Me solte! sibilou ela.

E ele disse:

— Não solto.

Então Alicia se virou e o golpeou com a adaga – e nunca vi uma expressão como a dela naquele momento.

Meu tio caiu pesadamente, mas a segurou mesmo enquanto morria, de modo que Alicia teve que se libertar, com um grito que ainda ecoa em meus ouvidos à noite quando o vento uiva sobre os pântanos chuvosos. Ela passou correndo por mim e fugiu pelo corredor como uma criatura caçada, e ouvi a pesada porta bater atrás dela.

Quanto a mim, fiquei ali olhando para o morto, pois não conseguia me mexer nem falar e parecia ter morrido de horror. E logo eu não sabia nada, nem me lembrei de nada por muitos dias, enquanto fiquei de cama, doente de febre e mais propensa a morrer do que viver.

Assim, quando enfim saí da sombra da morte, meu tio Hugh estava frio em seu túmulo havia muito tempo, e a caçada por sua esposa culpada acabara, já que nada tinha sido visto ou ouvido falar dela desde que fugira do país com seu amante estrangeiro.

Quando me recordei, eles me questionaram a respeito do que eu tinha visto e ouvido na Sala Vermelha. E contei-lhes o melhor que pude, embora muito magoada por eles não responderem minhas perguntas e por não fazerem nada além de me pedir que ficasse quieta e não pensasse no assunto.

Então minha mãe, muito aborrecida com minhas aventuras que, é verdade, eram apenas lamentáveis para uma criança —, me levou para casa. Ela também não me deixou ficar com a corrente de Alicia, mas se livrou dela, de que forma eu não sabia e pouco me importava, pois a visão dela era repugnante para mim.

Passaram-se muitos anos até que voltei a Montressor Place, e nunca mais vi a Sala Vermelha, pois a sra. Montressor mandou demolir a velha ala, considerando suas lembranças dolorosas como uma herança sombria o suficiente para o próximo Montressor.

Então, neto, a triste história acabou, e você não verá a Sala Vermelha quando for no mês que vem a Montressor Place. No en- tanto, as andorinhas ainda cantam sob os beirais – não sei se você entenderá a fala delas como eu entendi.

Três poemas de Jorge Luis Borges

Antes dos três poemas de Jorge Luis Borges

Algumas palavras iniciais. Sempre que volto ao livro Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista, organizado por Augusto de Campos, fico admirado com a habilidade de Jorge Luis Borges em manter acesa a chama que o tornou um clássico da literatura, escrevendo poemas profundos e com uma sonoridade belíssima, apesar de parecerem anacrônicos, com formas fixas e já supostamente ultrapassadas.

Um pouco de contexto acaba justificando a escolha do escritor argentino: estava cego, portanto as formas fixas tornavam mais fácil a tarefa de compor, com suas métricas, rimas etc. dado que, na minha opinião, só acrescentam mais uma camada de beleza à coisa toda (como um Homero, quem sabe? Ou como um Joyce?). 

Enfim, resolvi disponibilizar aqui três poemas de Quase Borges de que gosto bastante, porque tocam no ponto biográfico, mas também porque mostram uma característica de Borges que admiro muito: ele é um exímio leitor. As traduções usadas são assinadas por Augusto de Campos (responsável por Quase Borges), e acompanham em qualidade e beleza os poemas feitos pelo velho poeta.

James Joyce

Em apenas um dia estão todos os dias 
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu 
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Xadrez

I

Em seu grava rincão, dois jogadores
Regem peças, sem pausa. O tabuleiro
Os prende até a aurora no certeiro
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, audaz rainha, rei guerreiro,
Bispo oblíquo e peões ameaçadores.

Quando os rivais já se tiverem ido
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.

O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

II

Tênue rei, bispo em viés, encarniçada 
Rainha, torre à frente e peão alerta
No branco e negro de uma estrada incerta
Buscam e travam a batalha armada.

Não sabem que da mão predestinada 
Do jogador depende o seu destino,
Nem sabem que um rigor adamantino
Sujeita-lhes o arbítrio e a jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(Segundo Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus atrás de Deus o ardil começa
De pó e tempo e sonho e agonia?

Poema dos dons

Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.

Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem

As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.

Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.

Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.

Ampliando “A queda do homem”, de Albrecht Dürer

Não há forma diferente de começar esta publicação, senão com a reprodução desta obra singular, de um dos maiores nomes da arte dos séculos XV e XVI. Trata-se da gravura “A queda do homem” (ou “Pecado original”), criada por Albrecht Dürer, multiartista e matemático alemão, que a compôs como parte de sua coleção Pequena Paixão. Feita originalmente em Nuremberg, por volta de 1510, e medindo 12,8 x 9,8 centímetros, “A queda do homem” foi recentemente ampliada pelo artista brasileiro Pedro Alvarenga, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, que tem divulgado o trabalho em seu Instagram.

As Paixões de Dürer

Paixões — assim foram nomeados os sofrimentos físicos e espirituais de Jesus Cristo, em seus últimos dias de vida humana. Já na Idade Média, essas Paixões se tornaram amplamente difundidas, a partir de uma infinidade de representações iconográficas de passagens bíblicas facilmente reconhecidas pelos fieis. Mas o tema também foi muito popular na Alemanha dos séculos XV e XVI, sendo a igreja germânica uma das que utilizou amplamente a arte pictórica, sobretudo as impressões em gravuras, para difundir as Paixões entre o povo (que era, em sua maioria, iletrado). 

Foi justamente dentro desse contexto de difusão religiosa na Alemanha que Albrecht Dürer produziu uma parte de sua obra, inserindo narrativas autorais na iconografia tradicional das Paixões de Cristo, incrementando o número das passagens retratadas. Em sua série Pequena Paixão, iniciada após a segunda viagem que o artista fez à Itália (entre 1505-1507), Dürer compôs 36 xilogravuras e um frontispício, que hoje em dia se encontram em museus e coleções particulares, mas que podem ser facilmente recuperados via pesquisas na internet. 

Essa série traz uma retratação detalhada do martírio e morte expiatória de Cristo, e tem como obra de abertura da série a cena “A tentação de Eva” e “A queda do Homem”. Isso significa que, para além do ciclo narrativo diretamente ligado ao sacrifício expiatório do Salvador, as Paixões incluem também histórias do Antigo Testamento. 

Consta que a primeira edição da série de gravuras foi publicada em 1511, acompanhada do texto latino referente a cada passagem, que vinha escrito no verso. Depois, a coleção ganhou, em 1612, uma versão com texto em italiano, que saiu em Veneza. A partir daí, a Pequena Paixão de Dürer ficou incrivelmente popular, tendo suas gravuras reimpressas e difundias em diferentes países da Europa, de maneira avulsa ou completa (com todo o conjunto)

Caso você tenha interesse específico em alguma delas, segue a lista com o título de cada uma (vale muito à pena conferir!): 

  1. Frontispício
  2. Pecado original
  3. Expulsão do Paraíso terrestre
  4. Anunciação
  5. Natividade
  6. Saída de Cristo
  7. Entrada em Jerusalém
  8. Expulsão dos mercadores do Templo
  9. Última Ceia
  10. Lavagem dos pés
  11. Oração no Orto
  12. Prisão de Cristo
  13. Cristo perante Ananias
  14. Cristo perante Caifás
  15. Cristo ridicularizado
  16. Cristo perante Pilatos
  17. Cristo perante Erodes
  18. Flagelação
  19. Cristo coroado de espinhos
  20. Ecce homo
  21. Pilatos lava as mãos
  22. Cristo carregando a cruz
  23. Sudário da Verónica
  24. Cristo pregado à cruz
  25. Crucificação
  26. Cristo no Limbo
  27. Deposição da cruz
  28. Lamentação de Cristo
  29. Enterro de Cristo
  30. Ressurreição de Cristo
  31. Cristo aparece à Mãe
  32. Noli me tangere
  33. Ceia em Emaús
  34. Incredulidade de S. Tomé
  35. Ascenção
  36. Pentecostes
  37. Juízo Final

Projeto de gravura expandida

Tendo por inspiração o labor do artista alemão, Pedro Ícaro Alvarenga, gravurista de Pindamonhangaba, buscou fazer também sua reprodução das Paixões assinadas por Dürer. Como forma de homenagear a obra do artista, o gravurista brasileiro não apenas promoveu discussões acerca da iconografia tradicional e da forma narrativa como método de divulgação dos temas bíblicos, mas também buscou ampliar as perspectivas de leitura e de compreensão da obra de Dürer. 

Contudo, provavelmente, a cereja do bolo do trabalho de Pedro Alvarenga é a reprodução ampliada de uma das cenas da Pequena Paixão: “A queda do homem”, trabalho que pode ser conferido diretamente no Instagram, ou no vídeo abaixo:

Na gravura ampliada por Alvarenga, vemos a representação de Dürer de Adão e Eva, nus e abraçados, próximos à árvore em que estão a serpente e o fruto proibido. Adão e Eva olham um para o outro. O corpo de Eva, bem como o de Adão, é rechonchudo e curvilíneo. É ela quem segura o fruto que a serpente morde, e a serpente parece ter um tipo de coroa ou auréola sobre a cabeça. No plano baixo, há alguns animais: um boi, um javali e um animal de olhar feroz – talvez um felino de grande porte – que se esconde entre as árvores. 

Essa quantidade de detalhes contribui com a criação da atmosfera, sendo que a paisagem é extremamente sombria, com um Paraíso que mais se assemelha a uma floresta encantada e obscura, saída de algum conto de fadas – na qual os animais se escondem à espreita e a mata não deixa passar sequer um fio de luz – do que de fato ao tão sonhado Jardim do Éden. No canto inferior direito, há a inconfundível assinatura do gravurista, com suas iniciais emaranhadas umas nas outras sobre uma etiqueta desprendida no chão da cena representada.

Quais desses detalhes mais chamaram a sua atenção?

Com sua reedição em uma matriz de madeira marfim, de 80 x 50 centímetros, Alvarenga nos convida a ter mais atenção a todos esses elementos da obra de Dürer, famigerado pelos diversos enigmas que costuma espalhar por seus trabalhos. Por isso, não deixe de acessar a página do artista e, quem sabe, adquirir um exemplar da gravura de Dürer.

Fotos disponibilizadas pelo artista.
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