Conto – A menina, de Ricardo Piglia

Confira “A menina”, um dos capítulo do romance "A cidade ausente" (1992), de Ricardo Piglia.

Apresentação

Recentemente, li o romance A cidade ausente, do escritor argentino Ricardo Piglia. Foi uma das leituras mais difíceis que fiz nos últimos anos, por conta da estrutura fragmentada e dos muitos paradoxos colocados pelo autor ao longo da narrativa. Apesar da dificuldade, gostei bastante do romance, e em especial de um capítulo: “A menina” – que faz parte de um dos relatos do Museu a Macedonio e que funciona como uma espécie de teoria sobre a literatura argentina (baseada em uma série de plágios e traduções mal feitas, segundo Piglia).

Por esse motivo, decidi compartilhá-lo aqui com vocês, já que, além de tudo, “A menina” funciona muito bem como uma história à parte, que possui sentido para fora de A cidade ausente.

A menina

Os dois primeiros filhos do casal tiveram uma vida normal, com as dificuldades que significa ter uma irmã como ela numa cidadezinha do interior. A menina (Laura) tinha nascido sadia e só com o tempo começaram a notar sinais estranhos. Seu sistema de alucinação foi objeto de um complicado relatório publicado numa revista científica, mas muito antes disso seu pai já o havia decifrado. Yves Fonagy lhe deu o nome de “extravagâncias da referência”. Nesses casos, muito raros, o paciente imagina que tudo o que acontece a seu redor é uma projeção de sua personalidade. Exclui da sua experiência as pessoas reais, porque se considera muitíssimo mais inteligente que os demais. O mundo era uma extensão de si mesma e seu corpo se deslocava e se reproduzia. Vivia constantemente preocupada com maquinarias, principalmente as lâmpadas elétricas. Ela as via como palavras, toda Vez que se acendiam alguém começava a falar. Considerava portanto o escuro como uma forma do pensamento silencioso. Uma tarde de verão (aos cinco anos) reparou num ventilador elétrico que girava em cima de um armário. Considerou que era objeto vivo, da espécie das fêmeas. A menina do ar, com a alma engaiolada. Laura disse que ela morava “aí”, e ergueu a mão para mostrar o teto. Aí, disse, e mexia a cabeça da esquerda para a direita. A mãe desligou o ventilador. Nesse momento começou a ter dificuldades com a linguagem. Perdeu a capacidade de usar corretamente os pronomes pessoais e dali a pouco quase deixou de usá-los e mais tarde enterrou na memória as palavras que conhecia: Só emitia um leve cacarejar e abria e fechava os olhos. A mãe separou os filhos da irmã por medo de contágio, coisas do interior, a loucura não contagia e a menina não era louca. O caso é que puseram os dois irmãos num internato de padres em Del Valle a família se recluiu no casarão de Bolívar. O pai dava aulas de matemática no Clássico e era um músico frustrado. A mãe era professora e tinha chegado a diretora de escola, mas resolveu se aposentar para tomar conta da filha. Não queriam interná-la. Duas vezes por mês eles a levavam até um instituto em La Plata e seguiam as recomendações do doutor Arana, que a submetia a uma cura elétrica. Explicou-lhe que a menina vivia num vazio emocional extremo. Por isso a linguagem de Laura ia aos poucos se tomando abstrata e despersonalizada. No início nomeava corretamente a comida; dizia “manteiga”, “açúcar”, “água”, mas depois começou a se referir aos alimentos por grupos desvinculados do seu caráter nutritivo. O açúcar passou a ser “areia branca”, a manteiga, “barro suave”, a água, “ar úmido”. Estava claro que ao trocar os nomes e ao abandonar os pronomes pessoais estava criando uma linguagem conveniente à sua experiência emocional. Longe de não saber usar corretamente as palavras, via-se ali uma decisão espontânea de criar uma linguagem funcional à sua experiência de mundo. O doutor Arana não concordou, mas o pai partiu dessa constatação e decidiu entrar no mundo verbal de sua filha. Ela era uma máquina lógica ligada a uma interface errada. A menina funcionava segundo o modelo do ventilador; um eixo fixo de rotação era o seu esquema sintático, ao falar mexia a cabeça e fazia sentir o vento de seus pensamentos inarticulados. A decisão de ensiná-la a usar a linguagem pressupunha explicar-lhe o modo de armazenar as palavras. Perdiam-se dela como moléculas no ar quente e sua memória era a brisa que abanava as cortinas brancas na sala de uma casa vazia. Era preciso conseguir levar esse veleiro até o ar parado. O pai deixou a clínica do doutor Arana e começou a tratar a menina com um professor de canto. Precisava incorporar a ela uma sequência temporal e pensou que a música era um modelo abstrato da ordem do mundo. Cantava árias de Mozart em alemão, com Madame Silenzky, uma pianista polonesa que regia o coro da igreja luterana em Carhué. A menina, sentada numa banqueta, uivava acompanhando o ritmo e Madame Silenzy estava aterrorizada, porque pensava que a menina era um monstro. Tinha doze anos e era gorda e bela como uma madona, mas seus olhos pareciam de vidro e cacarejava antes de cantar. Era um híbrido, a menina, para Madame Silenzky, uma boneca de espuma, uma máquina humana, sem sentimentos nem esperanças. Cantava aos berros e desafinava, mas começou a ser capaz de seguir uma linha melódica. O pai estava tentando incorporar-lhe uma memória temporal, uma forma vazia, feita de sequências rítmicas e modulações. A menina carecia de sintaxe (carecia da própria noção de sintaxe). Vivia num universo úmido, para ela o tempo era um lenço! acabado de lavar que se torce pelo centro. Reservou para si um território próprio, dizia seu pai, do qual quer excluir toda experiência. Tudo o que for novo, qualquer acontecimento não vivido e ainda por viver surge para ela como uma ameaça e um sofrimento e se transforma em terror. O presente petrificado, a monstruosa e viscosa estagnação, o nada cronológico só pode ser alterado pela música. Não é uma experiência, é a forma pura da vida, não tem conteúdo, não pode assustá-la, dizia seu pai, e Madame Silenzky (aterrorizada) agitava sua cabecinha cinzenta e relaxava suas mãos sobre as teclas antes de começar com uma cantata de Haydn. Quando por fim conseguiu que a menina entrasse numa sequência temporal, a mãe adoeceu e foi preciso interná-la. A menina associava o desaparecimento de sua. mãe (que morreu dois meses depois) com um lied de Schubert. Cantava a música como quem chora um morto e recorda o passado perdido. Então o pai apoiou-se na sintaxe musical de sua filha e começou a trabalha com o léxico. A menina não tinha referências, era como ensinar uma língua estrangeira a um morto. (Como ensinar uma língua morta a um estrangeiro.) Resolveu começar a contar-lhe relatos breves. A menina estava imóvel, perto da luz, na varanda que dava para o quintal. O pai se sentava numa poltrona e narrava uma história como quem canta. Esperava que as frases entrassem na memória de sua filha como blocos de sentido. Por isso resolveu contar sempre a mesma história e variar as versões. Desse modo o enredo era um modelo único do mundo e as frases se transformavam em modulações de uma experiência possível. O relato era simples. Em sua Chronicle of the Kings of Ensland (século XII), William de Malmesbury relata a história de um jovem e potentado nobre romano que acaba de se casar. Após os festejos da celebração, o jovem e seus amigos saem para jogar bocha no jardim. Durante o jogo, o jovem coloca sua aliança, com medo de perdê-la, no dedo entreaberto de uma estátua de bronze que está junto à cerca dos fundos. Ao voltar para pegá-la, constata que o dedo da estátua está fechado e que não pode tirar o anel. Sem dizer nada a ninguém, volta ao anoitecer com tochas e criados e descobre que a estátua desapareceu. Esconde a verdade da recém-casada e nessa mesma noite, ao entrar na cama, percebe que algo se interpõe entre os dois, algo denso e nebuloso que impede que se abracem. Paralisado de terror, ouve uma voz que sussurra em seu ouvido:

— Abraça-me, hoje tu te uniste a mim em matrimônio. Sou Vênus e me entregaste o anel do amor.

Da primeira vez, a menina pareceu ter adormecido. Estava ali no ar fresco, diante do jardim dos fundos. Não parecia haver nenhuma alteração, à noite arrastou-se até o quarto e encolheu-se no escuro com seu cacarejar de sempre. No dia seguinte, à mesma hora, o pai sentou a filha na varanda e contou-lhe uma outra versão da história. A primeira variante de importância tinha aparecido mais ou menos vinte anos depois, numa recopilação alemã de fábulas e lendas feita em meados do século XII e conhecida pelo nome de Kaiserchronik. Segundo essa versão, a estátua em cujo dedo o jovem coloca seu anel é uma imagem da Virgem Maria e não de Vênus. Quando tenta unir-se à recém-casada, a Mãe de Deus se interpõe castamente entre os dois cônjuges, suscitando a paixão mística do jovem. Depois de abandonar sua mulher, o jovem torna-se monge e dedica o resto de sua vida ao serviço de Nossa Senhora. Num quatro anônimo do século XII, vê-se a Virgem Maria com a aliança no anular esquerdo e um enigmático sorriso nos lábios. 

Todo dia, ao cair da tarde, o pai contava a mesma história nas suas múltiplas versões. A menina que cacarejava era a anti-Scherezade que à noite recebia, de seu pai, o relato do anel contado uma e mil vezes. Um ano mais tarde a menina já sorri, porque sabe como é que a história continua e às vezes olha para sua mão e mexe os dedos, como se fosse ela a estátua. Uma tarde, quando o pai a fez sentar na poltrona da varanda, a menina começa ela mesma a contar o relato. Fita o jardim e, com um murmúrio suave, dá pela primeira vez a sua versão dos fatos. “Mouvo olhou a noite. Onde tinha estado seu rosto apareceu um outro, o de Kenya. De novo o estranho sorriso. De repente Mouvo estava de um lado da casa e Kenya no jardim e os círculos sensoriais do anel eram muito tristes”, disse. A partir daí, com o repertório de palavras que tinha aprendido e com a estrutura circular da história, foi construindo uma linguagem, uma série ininterrupta de frases que permitiram que se comunicasse com seu pai. Nos meses seguintes foi ela quem contou a história, todas as tardes, na varanda que dava para o pátio dos fundos. Chegou a ser capaz de repetir, palavra por palavra a versão de Henry James, talvez por ser esse relato, “The last of the Valerii”, o último da série. (A ação deslocou-se para a Roma do Risorgimento, onde uma jovem e rica herdeira americana, numa dessas típicas uniões jamesianas, contrai matrimônio com um nobre italiano de nobre linhagem, porém decadente. Uma tarde uns operários que fazem escavações nos jardins da Villa encontram uma estátua de Juno, o Signor Conte sente um estranho fascínio diante dessa obra-prima do melhor período da escultura grega. Leva a estátua para um jardim de inverno abandonado e a esconde ciumento dos olhares alheios. Nos dias que se seguem ele transfere à estátua de mármore grande parte da paixão quê sente por sua bela mulher e passa cada vez mais tempo no salão de vidro. No fim a contessa, para libertar seu marido do feitiço, arranca o anel que adorna o anular da deusa e o enterra no fundo do jardim. Então a felicidade retorna à sua vida.) Uma garoa suave caía sobre o pátio e o pai se balançava na cadeira. Nessa tarde pela primeira vez a menina fugiu da história, como quem cruza uma porta ela saiu do círculo fechado do relato e pediu a seu pai que comprasse um anel (anello) de ouro para ela. Ali estava, cantarolando e cacarejando, uma máquina triste, musical. Tinha dezesseis anos, era pálida e sonhadora como uma estátua grega. Tinha a fixidez dos anjos.

Fim

Aos que tiverem curiosidade no que se refere ao romance A cidade ausente, fiz um vídeo-resenha sobre ele, que saiu no Youtube do Duras Letras, cujo link está abaixo:

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