Três poemas de Jorge Luis Borges

Confira três poemas escritos por Jorge Luis Borges, traduzidos e editados por Augusto de Campos, do livro "Quase Borges".

Antes dos três poemas de Jorge Luis Borges

Algumas palavras iniciais. Sempre que volto ao livro Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista, organizado por Augusto de Campos, fico admirado com a habilidade de Jorge Luis Borges em manter acesa a chama que o tornou um clássico da literatura, escrevendo poemas profundos e com uma sonoridade belíssima, apesar de parecerem anacrônicos, com formas fixas e já supostamente ultrapassadas.

Um pouco de contexto acaba justificando a escolha do escritor argentino: estava cego, portanto as formas fixas tornavam mais fácil a tarefa de compor, com suas métricas, rimas etc. dado que, na minha opinião, só acrescentam mais uma camada de beleza à coisa toda (como um Homero, quem sabe? Ou como um Joyce?). 

Enfim, resolvi disponibilizar aqui três poemas de Quase Borges de que gosto bastante, porque tocam no ponto biográfico, mas também porque mostram uma característica de Borges que admiro muito: ele é um exímio leitor. As traduções usadas são assinadas por Augusto de Campos (responsável por Quase Borges), e acompanham em qualidade e beleza os poemas feitos pelo velho poeta.

James Joyce

Em apenas um dia estão todos os dias 
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu 
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Xadrez

I

Em seu grava rincão, dois jogadores
Regem peças, sem pausa. O tabuleiro
Os prende até a aurora no certeiro
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, audaz rainha, rei guerreiro,
Bispo oblíquo e peões ameaçadores.

Quando os rivais já se tiverem ido
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.

O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

II

Tênue rei, bispo em viés, encarniçada 
Rainha, torre à frente e peão alerta
No branco e negro de uma estrada incerta
Buscam e travam a batalha armada.

Não sabem que da mão predestinada 
Do jogador depende o seu destino,
Nem sabem que um rigor adamantino
Sujeita-lhes o arbítrio e a jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(Segundo Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus atrás de Deus o ardil começa
De pó e tempo e sonho e agonia?

Poema dos dons

Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.

Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem

As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.

Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.

Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.

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