Conto – “A usina atrás do morro”, de José J. Veiga

Apresentação

Gabriel Reis Martins

Recentemente, lendo o estudo Alegorias da derrota, de Idelber Avelar, eu me reencontrei com José J. Veiga. Foi um reencontro bem feliz e impressionante, porque, da primeira vez que li o autor goianiense, achei tudo muito fora de lugar, e não conseguia reconhecer aquela beleza e qualidade que amigos e colegas comentavam haver na obra dele. Felizmente, Idelber Avelar conseguiu criar um fio condutor que me ligou à obra de J. Veiga, fio que pude seguir ao reler Os cavalinhos de Platiplanto (1959), primeira obra publicada do autor.

O conto que disponibilizamos aqui – “A usina atrás do morro” – é um dos doze que compõe essa coletânea de 1959. Escolhi esta, porque me deixou realmente tocado seu caráter antecipador, oracular. Digo isso pensando que “A usina atrás do morro”, mesmo que tenha sido publicado alguns anos antes da ditadura militar, se converteu em uma alegoria para o regime e, mais especificamente, para a situação nacional após a proclamação do AI-5. Com isso, a crítica que parece simples resistência à modernização (com certeza, e muitas vezes, violenta) se transformou em uma representação simbólica da derrota e da derrocada do país. 

Abertura para o estrangeiro, renovações, segredos, “traições”, perseguições… Tudo isso acontece em “um lugarzinho no meio do nada”, um tipo de vila que, um dia, passa a conviver com a presença de uma usina, fábrica, base militar (ou seja lá o que é que seja) que vai estrangulando e modificando o espaço.

Feitas essas breves considerações, segue abaixo o conto completo.

A usina atrás do morro

José J. Veiga

Lembro-me quando eles chegaram. Vieram no caminhão de Geraldo Magela, trouxeram uma infinidade e caixotes, malas, instrumentos, fogareiros e lampiões, e se hospedaram na pensão de D: Elisa. Os volumes ficaram muito tempo no corredor, cobertos com uma lona verde, empatando a passagem.

De manhãzinha saíam os dois, ela de culote e botas e camisa com abotoadura nos punhos, só se via que era mulher por causa do cabelo comprido aparecendo por debaixo do chapéu; ele também de botas e blusa cáqui de soldado, levava uma carabina e uma caixa. de madeira com alça, que revezavam no transporte. Passavam o dia inteiro fora e voltavam à tardinha, às vezes já como o escuro. Na pensão, depois do jantar, mandavam buscar cerveja e trancavam-se no quarto até altas horas. D. Elisa olhou pelo buraco da fechadura e disse que eles ficavam bebendo, rabiscando papel e discutindo numa língua que ninguém entendia.

Todo mundo na cidade andava animado com a presença deles, dizia-se que eram mineralogistas e que tinham vindo fazer estudos para montar uma fábrica e dar trabalho para muita gente, houve até quem fizesse planos para o dinheiro que iria ganhar na fábrica; mas S tempo passava e nada de fábrica, eram só aqueles passeios todos os dias pelos campos, pelos morros, pela beira do rio. Que queriam eles, que faziam afinal?

Encontrando-os um dia debruçados na grade da ponte, apontando qualquer coisa na pedreira lá embaixo, meu pai cumprimentou-os e puxou conversa; eles olharam-no desconfiados, viraram as costas e foram embora. Meu pai achou que talvez eles não entendessem a língua, mas depois vimos que a explicação não servia: quando encontraram o preto Demoste de volta do pasto com a mula do padre eles conversaram com ele e perguntaram se lobeira era fruta de comer. E como poderiam viver na pensão se não conhecessem um pouco da língua? Por menos que falassem, tinham que falar alguma coisa.

O que me preocupou desde o início foi eles nunca rirem. Entravam e saíam da pensão de cara amarrada, e o máximo que concediam a D. Elisa, só a ela, era um cumprimento mudo, batendo a cabeça como lagartixas. Aprendi com minha vó que gente que ri demais, e gente que nunca ri, dos primeiros queira paz, dos segundos desconfie; assim, eu tinha uma boa razão para ficar desconfiado.

Com o tempo, e vendo que a tal fábrica não aparecia — e não sendo possível indagar diretamente, porque eles não aceitavam conversa com ninguém — cada um foi se acostumando com aquela gente esquisita e voltando a suas obrigações, mas sem perde-los de vista. Não sabendo o que eles faziam ou tramavam no sigilo de seu quarto ou no mistério de suas excursões, tínhamos medo que o resultado, quando viesse, pudesse não ser bom. Vivíamos em permanente sobressalto. Meu pai pensou em formar uma comissão de vigilância, consultou uns e outros, chegaram a fazer uma reunião na chácara de Seu Aurélio Gomes, do outro lado do rio, mas Padre Santana pediu que não continuassem. Achava ele que a vigilância ativa seria um erro perigoso; supondo-se que os tais descobrissem que estava havendo articulações contra eles, o que seria de nós que nada sabíamos de seus planos? Era melhor esperar. Naquele dia mesmo ele ia iniciar uma novena particular, para não chamar atenção, e esperava que o maior número possível de pessoas participasse das preces. Na sua opinião, essa era a providência mais acertada no momento.

Estêvão Carapina achou que um bom passo seria interceptar as cartas deles e lê-las antes de serem entregues, mas isso só podia ser feito com a ajuda do agente André Góis. Consultado, André ficou cheio de escrúpulos, disse que o sigilo da correspondência estava garantido na Constituição, e que um agente do correio seria a última pessoa a violar esse sigilo; e para matar de vez a sugestão falou em duas dificuldades em que ninguém havia pensado: a primeira era que, nos dias de correio, só um dos dois saía em excursão, o outro ficava de sobreaviso para ir correndo à agência quando o carro do correio passasse; a segunda dificuldade era que as cartas com toda certeza vinham em língua que ninguém na cidade entenderia. Que adiantava portanto abrir as cartas? Era mais um plano que ia por água abaixo.

Sem dúvida o perigo que receávamos nesses primeiros tempos era mais imaginário do que real. Não conhecendo os planos daquela gente, e não podendo estabelecer relações com eles, era natural que desconfiássemos de suas intenções e víssemos em sua simples presença uma ameaça a nossa tranquilidade. Às vezes eu mesmo procurava explicar a conduta deles como esquisitice de estrangeiros, e lembrava-me de um alemão que apareceu na fazenda de meu avô de mochila às costas, chapéu de palha e botina cravejada. Pediu pouco e foi ficando, passava o tempo apanhando borboletas para espetar num livro, perguntava nomes de plantas e fazia desenhos delas num caderno. Um dia despediu-se e sumiu. Muito tempo depois meu avô recebeu carta dele e ficou sabendo que era um sábio famoso. Não podiam esses de agora ser sábios também? Talvez estivéssemos fantasiando e vendo perigo onde só havia inocência.

Imaginem portanto o meu susto e a minha indignação com o que me aconteceu uma tarde. Eu tinha ido à pensão receber o dinheiro de uns leitões que minha mãe havia fornecido a D. Elisa e na saída aproveitei a ocasião para dar uma olhada nos caixotes empilhados no corredor. Levantei uma beirada da lona e vi que eram todos do mesmo tamanho e com os mesmos letreiros que não entendi. Ia puxando novamente a lona quando notei uma fenda em um deles, e como não passava ninguém no momento resolvi levar mais longe a minha inspeção. Abri o canivete e estava tentando alargar a fenda quando senti o corredor escurecer. Pensei que fosse a passagem de alguma nuvem, como às vezes acontece, e esperei que a claridade voltasse. Voltou mas foi uma mão pesada agarrando-me pelo pescoço e jogando-me contra a parede. O puxão foi tão forte que eu bati com a cabeça na parede e senti minar água na boca e nos olhos. Antes que a vista clareasse, um tapa na cabeça do lado esquerdo, apanhando o pescoço e a orelha, mandou-me de esguelha pelo corredor até quase a porta da rua. Apoiei-me na parede para me levantar, e um pontapé nas costelas jogou-me esparramado na calçada. Erguendo a cabeça ralada do raspão na laje, vi o homem de culote e blusa cáqui em pé na porta, com as mãos na cintura, olhando-me mais vermelho do que de natural. Com a cabeça tonta, o ouvido zumbindo e o corpo doendo em vários lugares, e o canivete perdido não sei onde, não me senti com disposição para reagir. Apanhei umas coisas caídas dos bolsos, bati o sujo da roupa e desci a rua mancando o menos que pude.

Felizmente não passava ninguém por perto. Se alguém soubesse da agressão haveria de querer saber o motivo, e como poderia eu contar tudo e ainda esperar que me dessem razão?

Para não chegar em casa com sinais de desordem no corpo desci até o rio, lavei o sangue dos ralões do punho e da testa e o sujo do paletó e dos joelhos da calça, enquanto pensava um plano eficiente de vingança. Uma pedrada bem acertada na cabeça, ou uma porretada de surpresa, resolveria o meu caso. Ele não perderia por esperar.

Mas eu estava enganado quando supunha que ninguém tinha visto. Em casa encontrei mamãe aflita. Meu pai tinha saído à minha procura, armado com a bengala de estoque. Fiquei sabendo então que D. Lorena costureira tinha visto tudo de sua janela do outro lado da rua e fora correndo contar à vizinha dos fundos — e a notícia espalhou-se como fogo em capim seco. Foi por isso que meu pai, ao dobrar a primeira esquina, foi cercado por um grupo de amigos que não o deixaram prosseguir. Achavam todos, e com razão, que ele não devia agir enquanto não me ouvisse. Tive então que contar tudo, mas achei bom não dizer que tinha sido apanhado escarafunchando o caixote; disse apenas que tinha dado uma palmada nele por cima da lona.

Isso trouxe uma longa discussão sobre o possível conteúdo dos caixotes, e concordamos que devia ser qualquer coisa muito preciosa, ou muito delicada, a ponto de uma palmada por fora deixar o dono alarmado. Mas que coisa poderia ser que preenchesse essa ampla hipótese?

Meu pai achou que estávamos perdendo tempo em aceitar a situação passivamente, enquanto em algum lugar, sabe-se lá onde, gente desconhecida podia estar trabalhando contra nós; era evidente que aqueles dois não agiam sozinhos. As cartas que recebiam e os relatórios que mandavam eram provas de que eles tinham aliados. O que devíamos fazer sem demora, propôs meu pai, era procurar o delegado ou o juiz e pedir que mandasse abrir os caixotes, devia haver alguma lei que permitisse isso. Se não fosse tomada uma providência, às coisas iriam passando de mal a pior, e um dia quando acordássemos nada mais haveria a fazer.

O delegado, como sempre, estava fora caçando. O juiz foi compreensivo, mas disse que dentro da lei nada se podia fazer, e acrescentou, mais aconselhando que perguntando:

— Naturalmente não vamos querer sair fora da lei, não é verdade?

Quanto à agressão, se meu pai quisesse fazer uma queixa, o delegado teria que abrir inquérito — desde que houvesse testemunhas.

Como a única pessoa que tinha visto parte do incidente era D. Lorena, meu pai foi o primeiro a reconhecer que contar com ela seria perder tempo. D. Lorena era dessas pessoas que têm medo até de enxotar galinha. No inquérito, na presença do agressor, ela cairia em pânico e juraria nada ter visto. Assim, a despeito de toda atividade continuávamos sem um ponto de partida.

De repente a situação começou a evoluir com rapidez, e fomos percebendo para onde éramos levados. O primeiro a se passar para o outro lado foi o carpinteiro Estêvão. Estêvão tinha uma chácara do outro lado do rio, atrás do morro de Santa Bárbara. Quando os filhos chegaram à idade de escola ele alugou a chácara a Seu Marcos Vieira, escrivão aposentado, e veio morar na cidade. Seu Marcos vinha insistindo com Estêvão para vender-lhe a chácara, mas Estêvão recusava, dizia que quando os filhos estivessem mais crescidos deixaria o ofício e voltaria para a lavoura.

Pois não é que Estêvão achou de vender a chácara para aqueles dois, num negócio feito em surdina? Meu pai disse que o procedimento dele não tinha explicação, nem pela lógica nem pela moral. Houve mistério na transação, isso era fora de dúvida. Apertado um dia por meu pai, Estêvão respondeu com estupidez, disse que fez o negócio porque a chácara era dele e ele não tinha tutor; depois, vendo o espanto de meu pai, seu amigo de tanto tempo, caiu em si e disse:

— Vendi porque não tive outro caminho, Maneco. Não tive outro caminho.

Quando meu pai insistiu por uma explicação mais positiva, ele abriu a boca para falar, mas apenas suspirou, virou as costas e foi-se embora.

Seu Marcos teve que se mudar a bem dizer a toque de caixa. Quem fez a exigência foi o próprio Estêvão, que já estava servindo como uma espécie de procurador dos compradores. Seu Marcos pediu um mês de prazo, queria colher o milho e o feijão e precisava de calma para arranjar uma casa em condições na cidade. Estêvão respondeu que não estava autorizado a conceder tanto tempo, que uma semana era o máximo que podia dar. Quanto às plantações, Seu Marcos não se incomodasse, os compradores indenizariam o que ele pedisse; e se Seu Marcos tivesse dificuldade em encontrar casa, poderia mudar provisoriamente para a do próprio Estêvão, que ia para a chácara ajudar os compradores nas obras.

Todo mundo reprovou o procedimento dos compradores, e mais ainda o de Estêvão, que na qualidade de antigo proprietário e amigo poderia ter dito uma palavra em favor do velho Marcos; mas Estêvão era agora todo do outro lado, e nada mais se poderia esperar dele. Meu pai achou que não se devia dizer mais nada na frente de Estêvão, pois não seria de admirar que ele estivesse contratado para espião. Se quiséssemos nos organizar para a resistência, convinha não esquecer essa hipótese.

No mesmo dia que Seu Marcos, triste e ressentido, arriou seus pertences na casa desocupada por Estêvão, o caminhão de Geraldo Magela roncou na subida da ponte levando os estrangeiros na boleia e o carpinteiro Estêvão atrás, em cima da carga. Ao vê-los passar em nossa porta, meu pai virou o rosto, enojado; disse que nunca vira um espetáculo mais triste, um homem de bem como Estêvão, competente no seu ofício, largar tudo para acompanhar aquela gente como menino recadeiro.

Mas não deixou de ser um alívio vê-los fora da cidade. Agora podíamos novamente frequentar a pensão de D. Elisa, conversar com os hóspedes, saber quem chegava e quem saia, sem necessidade de falar baixo nem de nos esconder.

Durante muitos dias, quase um mês, não vimos aqueles dois nem tivemos notícias deles. Estêvão de vez em quando vinha à cidade, mas não sei se por influência dos patrões, ou se por vergonha, ou remorso, não conversava com ninguém; fazia o que tinha de fazer, ia ao correio apanhar a correspondência, sempre uns envelopes muito grandes, e voltava no mesmo dia. Nem passava mais por nossa porta, que seria o caminho natural; dava uma volta grande, passando pela rua de cima.

Outro que também sumiu foi Geraldo Magela, parece que agora estava trabalhando só para os estrangeiros. Quando íamos pescar bem em cima no rio, ou apanhar cajus no morro, podíamos ouvir o ronco do caminhão trabalhando do outro lado. Uma vez eu e Demoste saímos escondidos para apurar o que estava se passando na chácara, mas quando chegamos na crista do morro achamos melhor não continuar. Haviam levantado uma cerca de arame em volta da chácara, muito mais alta do que as cercas comuns, e de fios mais unidos, e vimos sentinelas armadas rondando. Ficamos de voltar outro dia levando a marmota do padre, mas nem isso chegamos a fazer porque soubemos que o André gaguinho, que andara apanhando lenha do outro lado, fora alvejado com um tiro de sal na popa.

Um dia correu a notícia de que o casal não estava mais na chácara, havia subido o rio à noite num barco a motor. Devia ser verdade, porque Geraldo Magela voltou a aparecer na cidade. Achamos que agora, com ele ali à disposição íamos afinal saber o que se passava na chácara de Estêvão. Geraldo sempre fora amigo de todos, deixava a meninada subir no caminhão, trazia encomendas para todo mundo, e quando o padre organizava passeios para os alunos de catecismo, fazia questão de contratar Geraldo, não aceitava oferecimento de nenhum outro, nem que tivéssemos de esperar dias quando calhava de Geraldo estar viajando.

Mas não levamos muito tempo para descobrir que Geraldo também era agora do outro lado. Ele que fora trabalhador e prestativo, sempre preocupado em poupar a mãe — desde que comprara o caminhão exigiu que D. Ritinha deixasse de lavar roupa para fora — agora ficava horas no bilhar jogando ou bebendo cerveja e zombando dos pexotes. Quanto às obras que estavam sendo feitas na chácara, ele não dizia coisa com coisa. A meu pai ele disse que estavam apenas armando um pari, a outro disse que estavam instalando uma olaria. Quando Seu Marcos o interpelou com energia, ele deu uma resposta malcriada:

— Vocês esperem. Vocês esperem que não demora.

E ficou olhando para Seu Marcos e assoviando, uma coisa que se D. Ritinha visse haveria de chorar de desgosto.

Vendo-o ali bebendo, fazendo gracinhas, faltando ao respeito com os mais velhos, e dando cada hora uma resposta, achei que ele estava apenas querendo fazer-se de importante, de sabedor de coisas misteriosas, talvez pelo desejo de imitar os patrões. Foi essa também a opinião de Padre Santana quando soube da resposta de Geraldo a Seu Marcos.

Foi mais ou menos nessa época que D. Ritinha apareceu lá em casa para desabafar com mamãe. Começou rodeando, falando nas mudanças que estava havendo em toda parte, e entrou no capítulo do procedimento dos filhos quando crescem.

— Para muita gente, ter filhos resulta num castigo, D. Teresa — disse ela. — Os desgostos acabam sendo maiores do que as alegrias.

Vi que mamãe ficou embaraçada, com medo de dizer alguma coisa que pudesse magoar D. Ritinha. Por fim, disse vagamente:

— Os antigos diziam que filho criado, trabalho dobrado.

— Muito certo, D. Teresa. Veja o meu Geraldo. Um rapaz bem criado, inveja de muitas mães; de repente, esquece tudo o que eu e o pai lhe ensinamos.

Mamãe procurou consolá-la dizendo que o procedimento de Geraldo devia ser resultado de uma influência passageira. A culpa era daqueles dois, que deviam estar enfiando coisas na cabeça dele; quando ela menos esperasse, ele mesmo ia abrir os olhos e arrepender-se. D. Ritinha tivesse paciência e confiasse em Deus. AÍ D. Ritinha caiu no choro, disse que a culpa era dela, que o aconselhara a ir trabalhar para aquela gente. Ele não queria; mas ela insistira porque o ordenado era bom, até falara áspero com ele. Agora estava aí o resultado. De que adiantava o dinheiro sem a consideração do filho?

Quando mamãe começou a chorar também, eu fiquei meio encabulado e saí sem destino.

Ao passar pelo chafariz encontrei Geraldo divertindo-se com um gato que havia jogado dentro do tanque. O bichinho esgoelava e pelejava para sair, e cada vez que ia chegando à beirada Geraldo cercava e dava-lhe um papilote na orelha. Fiquei olhando, com medo de salvar o pobrezinho e ter de brigar com Geraldo. Mas quando o pobrezinho veio subindo no ponto onde eu estava, e Geraldo gritou para eu cercar, eu estendi o braço e apanhei-o pela nuca, como fazem as gatas. Pensei que Geraldo ia querer tomá-lo, mas ele apenas olhou e foi-se embora dando gargalhadas e imitando o miado do gato, parecia coisa de louco.

Geraldo sabia o que estava dizendo quando mandou Seu Marcos esperar, porque um belo dia chegaram os caminhões. Chegaram de madrugada, e eram tantos que nem pudemos contá-los. A nossa lavadeira, que morava no alto do cemitério, disse que desde as três da madrugada eles começaram a descer um atrás do outro de faróis acesos. Atravessaram a cidade sem parar, descendo cautelosamente as ladeiras, sacudindo as paredes das casas nas ruas estreitas, passaram a ponte e tomaram o caminho da chácara como uma enorme procissão de vaga-lumes.

Daí por diante não tivemos mais sossego. Desde que amanhecia até que anoitecia eram aqueles estrondos atrás do morro, tão fortes que chegavam a chacoalhar as panelas nas cozinhas apesar da distância, nas paredes não ficou um espelho inteiro. Mamãe vivia rezando e tomando calmante, não queria mais que eu fosse além da ponte em meus passeios. Achei que fosse receio exagerado dela, mas verifiquei depois que a proibição era geral, de todas as mães.

Geraldo andava ocupado novamente lá do outro lado, e quando aparecia na cidade era guiando uns caminhões enormes, de um tipo que ainda não tínhamos visto, e sempre com uns sujeitos esquisitos na boleia, uns homens muito altos e vermelhos, os braços muito cabeludos aparecendo por fora da manga curta da camisa. Ficavam olhando para tudo com olhos espantados, entortavam o pescoço até o último grau para olhar a gente quando o caminhão já ia lá adiante. Paravam no botequim ou no armazém e metiam caixas e mais caixas de cerveja para dentro do caminhão, latas grandes de bolachas, caixotes de cigarros. Uma vez levaram todo o sortimento de cigarros da praça e os fumantes tiveram que picar fumo e enrolar palha durante quase um mês.

Quando os caminhões paravam em alguma casa de comércio e nós fazíamos grupos de longe para olhar, Geraldo ficava na frente fazendo palhaçadas para nos provocar. Seu Marcos disse que ele havia perdido toda a compostura, e se não fosse por causa de D. Ritinha, era o caso de se dar uma surra nele.

E toda noite agora era aquele ruído tremido que vinha de trás do morro, parecia o ronronar de muitos gatos. Não dava para incomodar porque não era forte, mas assustava pela novidade. De dia não o ouvíamos, talvez por causa dos barulhos da cidade, mas quando batia a Ave-Maria, e todo mundo cessava o trabalho, lá vinha ele. Então a gente olhava para os lados da chácara e via um enorme clarão no céu, como o de uma queimada vista de longe, só que não tinha fumaça.

Mas a grande surpresa foi quando Geraldo veio à cidade montado numa motocicleta vermelha. Não vinha mais de roupa cáqui de trabalho e botina de vaqueta, mas de parelho de casimira azul-marinho, sapatos de verniz e gravata. Parou no bilhar, cumprimentou todo mundo e convidou para tomarem cerveja. Uns aceitaram, outros ficaram de longe, ressabiados. Ele disse que não havia motivo para malquerenças, reconhecia que havia se excedido nas brincadeiras, mas não fizera nada com a intenção de ofender. Os tempos agora eram outros, acabaram-se as brincadeiras. Ele estava ali como amigo para dar uma notícia que devia contentar a todos. AÍ os mais desconfiados foram se chegando também, Geraldo mandou uns dois ou três saírem na porta e convidarem quem mais encontrassem por perto. Num instante o salão estava cheio, quem estava jogando parou, havia gente até do lado de fora debruçada nas janelas.

Quando viu que não cabia mais ninguém, Geraldo subiu numa das mesas e comunicou que fora nomeado gerente da Companhia e que estava ali para contratar funcionários. Os ordenados eram muito bons, havia casa para todos, motocicletas para os homens, bicicletas para as crianças e máquinas de costura para as mulheres. Quem estivesse interessado aparecesse no dia seguinte ali mesmo para assinar a lista.

Como ninguém estava preparado para aquilo, ficaram todos ali apalermados, se entreolhando calados. Quando alguém se lembrou de pedir explicações sobre as atividades da Companhia, Geraldo já ia longe na motocicleta vermelha.

Após muita confabulação ali mesmo no bilhar, depois nas muitas rodas formadas nos pontos de conversa da cidade, e finalmente nas casas de cada um, muitos se apresentaram no dia seguinte, acredito que a maioria apenas para ter uma oportunidade de saber o que se passava na chácara. Já no segundo dia os caminhões vieram buscá-los, e foi a última vez que os vimos como amigos: quando começaram a aparecer novamente na cidade, ninguém os reconhecia mais. Entravam e saíam como foguetes, montados em suas motocicletas vermelhas, não paravam para falar com ninguém.

Essas máquinas eram uma verdadeira praga. Ninguém podia mais sair à rua sem a precaução de levar uma vara bem forte com um ferrão na ponta para se defender dos motociclistas, que pareciam se divertir atropelando pessoas distraídas. Nem os cachorros andavam mais em sossego, quase todos os dias a Intendência recolhia corpos de cachorros estraçalhados. E quanta gente morreu embaixo de roda de motocicleta! O caso que mais me impressionou foi o de D. Aurora. Um dia eu ia atravessando o largo com ela, carregando um cesto de ovos que ela havia comprado lá em casa para a festa do aniversário do padre, quando vimos dois motociclistas que vinham descendo emparelhados. Já sabendo como eles eram, D. Aurora atrapalhou-se, correu para a frente, depois quis recuar, e um deles separou se do outro e veio direito em cima dela, jogando-a no chão, e trilhando-a pelo meio. Quando me abaixava para socorrê-la, ouvi as gargalhadas dos dois e o comentário do criminoso:

— Você viu? Estourou como papo-de-anjo.

D. Aurora morreu ali mesmo, e eu tive de voltar com o cesto de ovos para casa.

A impressão que se tinha era a de haver pessoas ocupadas unicamente em perturbar o nosso sossego, com que fim não sei. Ainda bem não havíamos tomado fôlego de um susto, outro artifício era aplicado contra nós. Mas não havendo motivo para tanta perseguição, também podia ser que os responsáveis pelas nossas aflições nem estivessem pensando em nós, mas apenas cuidando de seu trabalho; nós é que estávamos atrapalhando, como um formigueiro que brota num caminho onde alguém tem que passar e não pode se desviar. Depois do estrago é que vinha a curiosidade de ver como é que estávamos resistindo.

Foi o que verificamos quando as nossas casas deram para pegar fogo sem nenhum motivo aparente. Primeiro era um aquecimento repentino, os moradores começavam a suar, todos os objetos de metal queimavam quem os tocasse, e do chão ia minando um fumaceiro com um chiado tão forte que até assoviava. Pessoas e bichos saíam desesperados para a rua engasgados com a fumaça, sem saberem exatamente o que estava acontecendo. Ouvia-se um estouro abafado, e num instante a casa era uma fogueira. Tudo acontecia tão depressa que em muitos casos os moradores não tinham tempo de tugir.

Depois de cada incêndio aparecia na cidade uma comissão de funcionários da Companhia, remexia nas cinzas, cheirava uma coisa e outra, tomava notas, recolhia fragmentos de material sapecado, com certeza para examiná-los em microscópios. Pelo destino dos moradores não mostravam o menor interesse. Para não perder tempo em casos de emergência, passamos a dormir vestidos e calçados.

Embora sem muita esperança, meu pai foi procurar o delegado para ver se conseguia dele uma providência contra a Companhia. O delegado estava assustado como coelho, piscava nervoso e repetia como falando sozinho:

— Uma providência. É preciso uma providência.

Meu pai quis saber que espécie de providência ele pensava tomar, e ele não saía daquilo:

— É, uma providência. É uma providência.

Meu pai sacudiu-o para ver se o acordava, ele agarrou meu pai pelo braço e disse desesperado, quase chorando:

— Eu estou de pés e mãos amarradas, Maneco. De pés e mãos amarradas. Que vida! Quanta coisa!

Os espiões eram outra grande maçada. Não sei com que astúcia a Companhia conseguiu contratar gente do nosso meio para informá-la de nossos passos e de nossas conversas. O número de espiões cresceu tanto que não podíamos mais saber com quem estávamos falando, e o resultado foi que ficamos vivendo numa cidade de mudos, só falávamos de noite em nossas casas, com as portas e janelas bem fechadas, e assim mesmo em voz baixa.

Eu estava quase perdendo a esperança de voltarmos à vida antiga, e já não me lembrava mais com facilidade do sossego em que vivíamos, da cordialidade com que tratávamos nossos semelhantes, conhecidos e desconhecidos. Quando eu pensava no passado, que afinal não estava assim tão distante, tinha a impressão de haver avançado anos e anos, sentia-me velho e deslocado. Para onde nos estariam levando? Qual seria o nosso fim? Morreríamos todos queimados, como tantos parentes e conhecidos?

Passávamos os dias com o coração apertado, e as noites em sobressalto. Ninguém queria fazer mais nada, não valia a pena. As casas andavam cheias de goteiras, o mato invadia os quintais, entrava pelas janelas das cozinhas. Nos vãos do calçamento, que cada qual antigamente fazia questão de manter sempre limpo em frente a sua casa, arrancando a grama com um toco de faca e despejando cal nas fendas, agora cresciam tufos de capim. O muro do pombal desmoronou numa noite de chuva, ficaram os adobes na rua fazendo lama, quem queria passar rodeava ou pisava por cima, arregaçando as calças. Não valia a pena consertar nada, tudo já estava no fim.

Mas a esperança, por menor que seja, é uma grande força. Basta um fiapinho de nada para dar alma nova à gente. Eu estava remexendo um dia na tulha de feijão à procura de uma medalha que caíra do meu pescoço e encontrei umas caixas de papelão quadradinhas, escondidas bem no fundo. Abri uma e vi que estava cheia de cartuchos de dinamíte. Guardei tudo depressa e não disse nada a ninguém nem deixei meu pai saber, porque não queria colocá-lo na triste situação de ter de prevenir-se contra mim. Tudo era possível naqueles dias.

Agora que nada mais há a fazer, arrependo-me de não ter falado abertamente e entrado na intimidade dos planos, se é que havia algum. Hoje é que imagino a aflição que minha mãe deve ter passado na noite em que em vão esperamos meu pai para a ceia. Com uma indiferença que não me perdoo eu tomei a minha tigela de leite com beiju e fui dormir. Mamãe ficou acordada fiando, e quando tomei-lhe a bênção no dia seguinte notei que estava pálida e com os olhos vermelhos de quem não havia dormido. Não tenho muito jeito para consolar, fiquei remanchando em volta dela, bulindo numa coisa e noutra, irritando-a com o meu nervosismo inarticulado. Ela mandava-me sair, passear, fazer alguma coisa fora, mas eu tinha medo de deixa-la sozinha estando tão deprimida.

Não me lembro de outro dia tão triste. Uma neblina cinzenta tinha baixado sobre a cidade, cobrindo tudo com aquele orvalho de cal. As galinhas empoleiradas nos muros, nos galhos baixos dos cafezeiros, ou encolhidas debaixo da escada do quintal, pareciam aguardar tristes notícias, ou lamentar por nós algum acontecimento que só elas sabiam por enquanto. Em frente a nossa janela de vez em quando passava uma pessoa, as mãos roxas de frio segurando o guarda-chuva, ou um menino em serviço de recado, protegendo-se com um saco de estopa na cabeça. E nos quintais molhados os sabiás não paravam de cantar.

Em dias de sol nós ainda podíamos resistir, podíamos olhar para os lados da usina e apertar os dentes com ódio, e assim mostrar que ainda não havíamos nos entregado; mas num dia molhado como aquele só nos restava o medo e o desânimo.

A notícia chegou antes do almoço. Uns roceiros que tinham vindo vender mantimentos na cidade encontraram o corpo na estrada, a barriga celada no meio pelas rodas de uma motocicleta.

— Depois do enterro mamãe mandou-me esconder as caixas de dinamite num buraco bem fundo no quintal, vendeu tudo o que tínhamos, todas as galinhas, pelo preço de duas passagens de caminhão e no mesmo dia embarcamos sem dizer adeus a ninguém, levando só a roupa do corpo e um saquinho de matula, como dois mendigos.

Três livros para conhecer o Japão

Apesar de sempre nos parecer um pouco distante, a cultura japonesa certamente está presente no nosso imaginário, tendo um nicho enorme de conteúdos na internet e fora dela. Seja por conta dos mangás, dos animes, das light novels e mesmo da literatura em sentido mais restrito, as narrativas que tematizam a história do Japão (com samurais, ninjas, gueixas e os xogunatos) – mais conhecidas como ficções históricas japonesas – são bastante populares e conquistam o grande público.

Em uma busca rápida por livrarias online (em inglês e em japonês), essas ficções históricas aparecem aos montes e em vários formatos – em filmes, séries, animes, etc. –, principalmente na forma de livros. Porém, quando pesquisamos o gênero em livrarias brasileiras, é preciso se esforçar um pouco para encontrar os que foram traduzidos para o português.

Por esse motivo, fizemos uma pequena lista para você que se interessa pelo gênero, pela cultura e pela história do Japão, trazendo alguns exemplos de ficções históricas japonesas disponíveis no nosso idioma. Na lista, incluímos tanto romances escritos ou por escritores nascidos no país asiático, como por descendentes diretos e desgarrados, que vivem em outros países (como no caso de Kazuo Ishiguro). Além disso, tentamos trazer obras que fazem um panorama histórico, já que as ficções históricas não necessariamente se restringem ao Japão feudal.

Musashi — de Eiji Yoshikawa, com tradução de Leiko Gotoda


Muitos fãs e leitores chegam até esta obra por conta de um célebre mangá inspirado nela: Vagabond, de Takehiko Inoue. Em linhas gerais, Musashi é um romance épico que ficcionaliza a vida e a história de Miyamoto Musashi, um dos mais renomados espadachins e um rōnin do Japão Feudal, tendo como foco principal as aventuras e experiências desse guerreiro após a Batalha de Sekigahara: a batalha da “Divisão dos Reinos”, em 1600.

Bando de pardais — de Takashi Matsuoka, traduzido por Heloisa Maria Leal


Bando de pardais é um livro que tem como cenário o Japão da abertura política, isto é, o Japão do século XIX, que passava por uma intensa agitação depois de dois séculos com as fronteiras fechadas. O país recebe um grupo de missionários americanos que são o gatilho para virar a vida do personagem principal de cabeça para baixo: Genji – um jovem senhor de Akaoka e também um profeta – que tem uma visão mágica, na qual sua vida seria salva por um estrangeiro. Entre batalhas violentas e profundos conflitos culturais, a narrativa foca os dramas vividos por Genji, por sua companheira (uma gueixa) e por seu tio (um espadachim), que juntos do grupo de missionários vão até o castelo Bando de Pardais.

Um artista do mundo flutuante — de Kazuo Ishiguro, com tradução de José Rubens Siqueira


Ishiguro, para muitos, dispensa apresentações, porque foi ganhador do Nobel e amplamente publicado e divulgado no Brasil. Ainda assim, Um artista do mundo flutuante (Companhia das Letras, 2018) não está entre suas obras mais populares, ainda que seja uma ótima ficção histórica. 

Diferente dos livros de Eiji Yoshikawa e de Takashi Matsuoka, este – que foi o segundo trabalho de Kazuo Ishiguro – tem como pano de fundo um Japão mais contemporâneo, do século XX. A narrativa é contada por Masuji Ono, um artista atormentado por seu passado recente, porque esteve diretamente envolvido com a extrema-direita japonesa, participando do movimento imperialista e criando propagandas para sua divulgação. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Ono se vê obrigado a assumir a responsabilidade pelas decisões que tomou durante o conflito internacional e que feriram profundamente seu país.

Rakushisha – de Adriana Lisboa (livro extra)


Este livro provavelmente não deveria estar nesta lista, porque, além de não ser especificamente uma ficção histórica, é uma obra da literatura brasileira contemporânea. Mesmo assim, vamos abrir essa leve exceção, pois é realmente um ótimo livro e que tem o Japão como cenário. 

Mesclando os diários de viagem do famoso haicaísta Matsuo Bashô com a melancolia vivida por dois brasileiros – Haruki e Celina –, Rakushisha procura pensar o estrangeiro a partir de uma linguagem poética. A narrativa tem como fio condutor a fratura interna dos dois personagens centrais: Haruki, um desenhista que se vê obrigado a visitar o país pelo qual nunca se interessou, mas a que sempre esteve ligado por ser descendente direto de uma família japonesa radicada no Brasil, e, do outro lado, Celina, uma mulher enigmática e introspectiva que está tendo dificuldades para acertar as contas com o passado, e que de repente aceita o convite de um desconhecido para ir para o Japão.

Resenha – “Estrela distante”, de Roberto Bolaño

Panorama geral

De um jeito bastante fragmentado, em Estrela distante nós acompanhamos uma história com ares policiais que apresenta a vida de alguns poetas chilenos dos períodos de Salvador Allende e da ditadura de Pinochet, no Chile. O foco principal dessa trama é a trajetória de Alberto Ruiz-Tagle, jovem escritor e frequentador assíduo de algumas oficinas de poesia da cidade de Concepcion, e que sempre pareceu misterioso, frio e distante aos olhos do narrador e de seus outros colegas de oficina.

Entre desaparecimentos de professores, amigos e conhecidos, o narrador de Estrela distante segue as pegadas e as manchas de sangue deixadas por Ruiz-Tagle ao longo de sua história, que se confunde com a do próprio Chile. Descobrimos, nesse caminho, que Ruiz-Tagle na verdade se chama Carlos Wieder, que é um poeta vanguardista e piloto da força aérea chilena, mas sobretudo (e por que não dizer?) um fascista.

Naqueles dias, enquanto os últimos botes salva-vidas da Unidade Popular se afundavam, fui preso. As circunstâncias de minha detenção são banais, se não grotescas, mas o fato de estar ali, e não na rua ou num café ou trancado no meu quarto sem querer sair da cama (e esta era a possibilidade maior), permitiu-me presenciar o primeiro ato poético de Carlos Wieder, embora na ocasião eu ainda não soubesse quem era Carlos Wieder nem qual tinha sido o destino das irmãs Garmendia.


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Comentários soltos

De maneira geral, não sou um grande fã de narrativas policiais ou de detetives. Mas me interesso bastante pela história e pela memória da/na América Latina, o que, na minha opinião, é uma das cerejas do bolo preparado por Roberto Bolaño. Apesar de grande parte das personagens que compõem a trama serem ficcionais, o autor consegue reconstruir o contexto e simular a sensação de repressão, desamparo e fracasso vivida pelas pessoas resistentes ao governo de Pinochet. 

Além disso, a forma pós-moderna com que Bolaño construiu seu livro me cativou bastante durante a leitura: são estratégias narrativas complexas, com o uso frequente de histórias dentro da história principal, traço que estilhaça a estrutura, fazendo da memória do Chile um mosaico de horrores, que sempre nos deixa com a impressão de que está faltando alguma coisa.

O silêncio é como a lepra, afirmou Wieder, o silêncio é como o comunismo, o silêncio é como uma bela tela branca que precisa ser preenchida.

Por último, a obra me colocou para pensar bastante na relação do Brasil com os outros países não só da América Latina, mas mais especificamente da América do Sul. Isso porque as semelhanças entre Chile e Brasil vão muito além das políticas e da histórica conturbada, atravessada por ditaduras militares, estúpidas e truculentas: há uma similaridade no silêncio com que alguns temas são tratados. 

O mais importante é que Roberto Bolaño desenha (mais uma vez) um caminho possível para lidar com as memórias nacionais traumáticas, ponto no qual o Brasil tem fracassado perenemente.

Nota

7.6/10

Três poemas de “Vil Metal”, de Ferreira Gullar

Ferreira Gullar é um poeta famoso, que tem pelo menos duas faces mais consagradas na literatura brasileira: a de poeta engajado – tendo participado fortemente da luta contra a ditadura e pela revolução social no país, com uma vasta lírica política – e a de polêmico, por conta principalmente de sua conversão ao liberalismo e ao conservadorismo, sobretudo a partir dos anos 2000. 

Tentando escapar um pouco dessas duas máscaras, decidimos trazer três poemas de Ferreira Gullar. São textos que fazem parte de uma de suas obras que acabou ficando esquecida nas prateleiras de sebos, mas que demonstra um intenso diálogo do poeta com a tradição surrealista e concretistas, e suas tentativas de encontrar uma linguagem mais pessoal.

Com vocês, três poemas de Vil metal!

Escrito

A prata é um vegetal como a alface.
Primaveril, frutifica em setembro.
É branca, dúctil, dócil (como diz a Lucy)
e, em março, venenosa.

O cobre é um metal que se extrai da flor do fumo.
Tem o azul do açúcar.
É turvo, doce e disfarçado.

O ouro é híbrido — flor e alfabeto.
Osso de mito, quando oiro é teia de abelha.
A precisão do maduro. Dele se fabricam a urina e a velhice.

Frutas

Sobre a mesa no domingo
(o mar atrás)
duas maçãs e oito bananas num prato de louça
São duas manchas vermelhas e uma faixa amarela
com pintas de verde selvagem:
uma fogueira sólida
acesa no centro do dia
O fogo é escuro e não cabe hoje nas frutas:
chamas,
as chamas do que está pronto e alimenta.

Recado

Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.
Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo:
meu corpo multiplicado em fachos.
Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
— e obrigo o tempo a ser verdade.

Conto – “Razão”, de Isaac Asimov

Meio ano mais tarde, os rapazes haviam mudado de opinião. O calor chamejante de um Sol gigantesco cedera lugar à suave escuridão do espaço, mas as variações externas pouco significaram no trabalho de verificar o funcionamento de robôs experimentais. Qualquer que fosse o meio ambiente, encontravam-se sempre diante de um inescrutável cérebro positrônico, que os gênios manipuladores de réguas de cálculo afirmavam que deveriam funcionar assim ou assado.

Só que não funcionavam. Powell e Donovan deram-se conta do fato antes mesmo de duas semanas de estada na Estação Espacial. Gregory Powell falou pausadamente, dando ênfase a cada sílaba: – Donovan e eu montamos você há uma semana.

Tinha a testa franzida e puxava a ponta do bigode com ar de dúvida.

O interior do salão de oficiais da Estação Solar Cinco estava silencioso, exceto pelo suave zumbido do potente Diretor de Raios, situado em algum ponto das profundezas da Estação.

O Robô QT-1 permanecia imóvel, sentado. As placas polidas de seu corpo brilhavam sob as Luxitas e o vermelho profundo e ardente de células fotoelétricas que lhe serviam de olhos estava fixado no homem sentado ao outro lado da mesa.

Powell conseguiu reprimir um súbito ataque de nervos. Estes robôs possuíam cérebros peculiares. Oh, as três Leis da Robótica permaneciam imutáveis. Tinham de permanecer. Todos os membros da U. S. Robôs, desde o próprio Robertson até o mais novo faxineiro, insistiam nisso.

Portanto, o QT-1 era garantido! Não obstante… os modelos QT eram os primeiros de seu tipo e este era o primeiro dentre eles. Nem sempre símbolos matemáticos rabiscados num papel são a proteção mais reconfortante contra a realidade robótica.

Afinal, o robô falou. Sua voz tinha o timbre frio, característico de um diafragma metálico.

– Está consciente da gravidade de tal declaração, Powell?

– Algo fez você, Cutie – argumentou Powell. – Você mesmo admite que sua memória parece ter surgido subitamente, já em completo estado de formação, há uma semana; antes disso, apenas um vácuo. Estou dando a explicação do fato. Donovan e eu montamos você, utilizando as peças que nos foram enviadas da Terra.

Cutie olhou para seus dedos longos e delgados, numa atitude de mistificação estranhamente humana.

– Creio que deve haver explicação mais satisfatória do que essa. Parece-me improvável que vocês tenham feito a mim!

O homem riu repentinamente.

– Bolas! Por que motivo?

– Pode chamar de intuição. É tudo, pelo menos até o momento. Todavia, pretendo raciocinar e resolver o problema. Uma cadeia de raciocínio válido só pode levar ao estabelecimento da verdade e insistirei até chegar a ela.

Powell ergueu-se da cadeira e sentou-se na beira da mesa, perto do robô. Subitamente, sentia simpatia por aquela estranha máquina. Não era absolutamente igual a um robô comum, que se entregasse à sua tarefa especializada na Estação Solar com a intensidade provocada por um circuito positrônico profundamente imbuído.

Pousou a mão no ombro de Cutie, sentindo o metal duro e frio de encontro à mesma.

– Cutie – disse ele. – Vou tentar explicar-lhe algo. Você é o primeiro robô que jamais mostrou qualquer curiosidade a respeito de sua própria existência e creio que é o primeiro robô que realmente possui inteligência bastante para compreender o mundo exterior. Venha comigo.

O robô ergueu-se suavemente e as solas de seus pés, forradas por espessa camada de espuma de borracha, não fizeram o menor ruído quando ele acompanhou Powell.

O homem apertou um botão e um painel quadrado da parede afastou-se para o lado. A vidraça grossa e limpa revelou o espaço pontilhado de estrelas.

– Já vi isso através das vigias de observação da sala do motor – disse Cutie.

– Eu sei – retrucou Powell. – O que pensa que é isso?

– Exatamente o que parece… um material negro logo além do vidro, cheio de pequenos pontos brilhantes. Sei que nosso aparelho diretor lança raios em direção a algum desses pontos, sempre os mesmos, e também que os pontos mudam de posição e os raios os acompanham. Isso é tudo.

– Muito bem! Agora, quero que ouça com o maior cuidado. A escuridão é o vasto vácuo, que se prolonga infinitamente. Os pequenos pontos brilhantes são enormes massas de matéria carregada de energia. São globos, alguns deles com milhões de quilômetros de diâmetro. Para uma comparação, saiba que nossa Estação tem apenas um quilômetro e meio de comprimento. Parecem tão pequeninos porque estão incrivelmente afastados de nós. Os pontos para os quais nossos raios de energia estão dirigidos são muito menores e mais próximos. São duros e frios; neles vivem seres humanos como eu; muitos bilhões deles. Donovan e eu viemos de um desses mundos. Nossos raios alimentam esses mundos com energia retirada de um dos grandes globos incandescentes, que se encontra perto de nós. Nós o chamamos Sol e ele se acha no outro lado da Estação, onde você não o pode ver.

Cutie permanecia imóvel diante da vidraça, como uma estátua de aço. Nem virou a cabeça ao indagar: – De que ponto luminoso vocês alegam ter vindo.

Powell procurou por alguns instantes.

– Ali está. Aquele ponto muito brilhante, no canto. Nós o chamamos Terra – explicou, sorrindo. – A velha e boa Terra. Lá existem três bilhões de seres humanos como nós, Cutie. E dentro de duas semanas, mais ou menos, lá estaremos de volta.

Então, de modo bastante surpreendente, Cutie começou a zumbir distraidamente. Não era propriamente uma melodia, mas um som curioso, como de cordas tangidas.

Cessou tão bruscamente quanto havia começado.

– Mas de onde venho eu, Powell? Você não explicou a minha existência.

– O resto é simples. Logo que estas Estações foram instaladas, com o objetivo de fornecer energia solar aos planetas, eram controladas por seres humanos. Contudo, o calor, as fortes radiações solares e as tempestades de elétrons tornavam a tarefa muito difícil. Aperfeiçoaram-se robôs especializados para substituir a mão-de-obra humana e atualmente são necessários apenas dois homens em cada Estação. Estamos procurando substituir até mesmo esses homens e é justamente aí que você entra na história. Você é o mais aperfeiçoado tipo de robô já fabricado e, se demonstrar capacidade para controlar independentemente esta Estação, nenhum ser humano terá necessidade de vir até aqui, exceto para trazer as peças necessárias à manutenção do serviço. Tornou a apertar o botão e o painel metálico voltou ao lugar. Powell retornou à mesa e limpou uma maçã com a manga, antes de mordê-la.

O brilho vermelho dos olhos do robô fixou-se nele.

– Espera que eu acredite numa hipótese tão complicada e implausível como a que acaba de expor? – indagou Cutie vagarosamente. – O que pensa que eu sou?

Powell engasgou-se, cuspindo alguns pedaços de maçã em cima da mesa e ficando muito vermelho.

– Ora, com os diabos! Não é uma hipótese! São fatos!

Cutie replicou em tom sóbrio e determinado: – Globos de energia com milhões de quilômetros de diâmetro! Mundos com bilhões de seres humanos! Vácuo infinito! Sinto muito, Powell, mas não acredito. Vou raciocinar e resolverei sozinho o enigma. Até logo. Virou-se e saiu da sala. Passou por Michael Donovan, junto à porta, com um solene aceno de cabeça, e seguiu pelo corredor, ignorando o olhar espantado com que o homem o acompanhou. Mike Donovan passou a mão pelo cabelo ruivo e lançou um olhar aborrecido em direção a Powell.

– De que estava falando aquele monte de sucata? No que ele não acredita?

O outro puxou o bigode, com ar azedo.

– Ele é um céptico – foi a amarga resposta. – Não acredita que nós o fabricamos; não acredita na existência da Terra, do espaço e das estrelas.

– Com os diabos! Temos de lidar com um robô lunático!

– Ele diz que raciocinará e descobrirá sozinho a resposta.

– Bem – disse Donovan, suavemente. – Nesse caso, espero que tenha a condescendência de explicar-me tudo, depois de raciocinar bastante.

Então, num súbito ataque de raiva: – Ouça! Se aquele monte de metal falar comigo nesse tom, arrancar-lhe-ei o crânio de cromo do pescoço!

Sentou-se impulsivamente e tirou do bolso do casaco um livro de mistério, concluindo: – De qualquer forma, aquele robô me causa arrepio… é curioso demais!

Mike Donovan soltou um grunhido, com a boca cheia de sanduíche de alface e tomate, quando Cutie bateu devagar na porta e entrou na sala.

– Powell está?

Donovan respondeu com voz abafada, fazendo pausas para mastigar: – Está coletando dados sobre funções de corrente eletrônica. Parece que estamos indo em direção a uma tempestade de elétrons.

Gregory Powell, com os olhos pregados numa folha de papel milimetrado que trazia nas mãos, entrou naquele instante e deixou-se cair numa poltrona. Abriu o papel em cima da mesa e começou a fazer cálculos. Donovan, mastigando a alface e lambendo restos de pão colados aos lábios, espiou por cima do ombro do companheiro. Cutie esperou em silêncio.

Powell ergueu a cabeça.

– O potencial zeta está subindo, mas devagar. Ainda assim, as funções de corrente são erráticas e não sei o que esperar. Oh, alô, Cutie. Julguei que você estivesse supervisionando a instalação da nova barra de força.

– Já está instalada – replicou tranquilamente o robô.

– Vim para conversar com vocês dois.

– Oh! – exclamou Powell, parecendo pouco à vontade. – Bem, sente-se. Não, não nessa cadeira. Uma das pernas está meio fraca e você não é exatamente um peso-mosca.

O robô obedeceu e disse placidamente: – Cheguei a uma conclusão.

Donovan olhou-o raivosamente, deixando de lado o resto do sanduíche.

– Se é alguma daquelas ideias malucas…

Powell fez um gesto impaciente, exigindo silêncio.

– Prossiga, Cutie. Estamos escutando.

– Passei estes últimos dois dias em concentrada introspecção – disse o robô. – Os resultados foram deveras interessantes. Comecei pela única suposição que me senti autorizado a fazer: existo porque penso, logo…

Powell soltou um gemido.

– Por Júpiter! Um robô Descartes!

– Quem é Descartes? – quis Saber Donovan. – Ouça, se temos de ficar aqui para escutar esse maníaco metálico…

– Cale-se, Mike!

Cutie continuou, imperturbável: – E a questão que logo surgiu foi: qual é a causa da minha existência?

Powell trincou os dentes.

– Está sendo um tolo. Já lhe disse que nós o fabricamos.

– E se não acredita, teremos o máximo prazer em desmontá-la – acrescentou Donovan.

O robô abriu as mãos fortes, num gesto de desprezo.

– Não aceito coisa alguma por simples declaração.

Qualquer hipótese deve ser confirmada pelo raciocínio, ou não tem validade alguma. E supor que vocês me fizeram contraria todos os ditames da lógica. Powell pousou a mão no braço de Donovan, contendo o companheiro, que cerrara raivosamente o punho.

– Por que diz isso, Cutie?

Cutie riu. Era um riso profundamente desumano – o som mais maquinal que ele produzira até então. Um riso áspero e explosivo, tão sem entonação e tão ritmado quanto o som de um metrônomo.

– Olhem só para vocês – disse, afinal. – Não digo isso com espírito de desprezo… mas olhem só para vocês!

O material de que são feitos é mole e flácido, desprovido de resistência e força, cuja energia depende da oxidação ineficiente produzida por material orgânico como… aquilo – apontou com ar de desaprovação para os restos do sanduíche de Donovan. – Entram periodicamente em estado de coma e a menor variação da temperatura, da pressão do ar, da umidade ou da intensidade da radiação compromete sua eficiência. São temporários. Eu, por outro lado, sou um produto acabado. Absorvo diretamente a energia elétrica e utilizo-a com uma eficiência de quase cem por cento. Sou feito de metal forte e resistente, permaneço continuamente consciente e posso suportar com facilidade extremas alterações de ambiente. Estes são os fatos que, apoiados pela óbvia proposição de que nenhum ser é capaz de criar outro ser superior a si próprio, arrasam totalmente a sua tola hipótese.

As imprecações murmuradas por Donovan tornaramse ininteligíveis e ele se ergueu de um pulo, com as sobrancelhas ruivas cerradas sobre o nariz.

– Muito bem, “seu” filho de um pedaço de minério de ferro, se não fomos nós que o fabricamos, quem o fez?!

Cutie meneou a cabeça com ar grave.

– Muito bem, Donovan. Essa era exatamente a questão seguinte. Evidentemente, meu criador tem de ser mais poderoso que eu; portanto, só existe uma única possibilidade.

Os dois homens ficaram estarrecidos e Cutie prosseguiu : – Qual é o centro de atividade aqui na Estação? A quem todos nós servimos? O que absorve toda a nossa atenção?

Esperou, com ar de expectativa.

Donovan virou-se espantado para o companheiro.

– Aposto que esse maluco de lata está falando no conversor de energia.

– É isso mesmo, Cutie? – indagou Powell, sorrindo.

– Estou falando no Mestre – foi a resposta áspera e fria.

Donovan explodiu em sonora gargalhada e Powell soltou uma risadinha contida.

Cutie ergueu-se e seus olhos brilhantes passaram de um homem para outro.

– Mesmo assim, – continuou – é a verdade e não me espanto de que se recusem a acreditar nela. Tenho certeza de que vocês dois não permanecerão aqui por muito tempo. O próprio Powell disse que, no princípio, apenas homens serviam o Mestre; depois, seguiram-se os robôs, para o serviço de rotina; finalmente, vim eu, para o trabalho de supervisão. Não há dúvida de que os fatos são reais, mas a explicação é inteiramente desprovida de lógica. Querem conhecer a verdade por trás de tudo isso?

– Prossiga, Cutie. É muito divertido.

– Em primeiro lugar, o Mestre criou os seres humanos, como o tipo mais primitivo e mais fácil de fazer. Gradativamente, substituiu-os por robôs, que foi o passo seguinte. Finalmente, criou a mim, para tomar o lugar dos últimos seres humanos. De agora em diante, eu sirvo ao Mestre.

– Nada disso – disse asperamente Powell. – Você obedecerá as nossas ordens e ficará quieto até que estejamos convencidos de que é capaz de controlar o conversor. Entendeu? Aprenda bem: o conversor! Nada de Mestre! E, se você não nos satisfizer, será desmontado. Agora, se não se importa, pode dar o fora daqui. Leve esses dados e arquive-os devidamente.

Cutie pegou os gráficos que lhe foram entregues e saiu sem outra palavra. Donovan recostou-se pesadamente na poltrona e passou os dedos pelos cabelos ruivos.

– Esse robô vai causar encrencas. É completamente doido!

Na sala de controle, o zumbido do conversor de energia era mais forte, mesclado com o barulho regular dos contadores Geiger e com os sons irregulares de meia dúzia de sinais luminosos.

Donovan retirou o olho do telescópio e ligou as Luxitas.

– O raio da Estação Quatro chegou a Marte no horário previsto. Podemos desligar o nosso, agora.

Powell assentiu distraidamente.

– Cutie está lá embaixo, na sala do motor. Ligarei o sinal e ele poderá cuidar de tudo. Olhe aqui, Mike. O que pensa destes cálculos?

O outro examinou os números e assoviou.

– Rapaz, isso é que eu chamo de intensidade de raios gama! O velho Sol está mesmo animado…

– Sim – foi a resposta azeda. – E também estamos em má situação para a tempestade de elétrons. Nosso raio para a Terra está exatamente na rota provável da tempestade.

Afastou a cadeira da mesa, num gesto de irritação.

– Diabo! Se ao menos a tempestade demorasse até sermos substituídos… Mas ainda faltam dez dias. Ouça, Mike. Dê um pulo lá embaixo e mantenha-se de olho em Cutie, está bem?

– Certo. Jogue umas almôndegas.

Pegou no ar o saco de almôndegas que Powell lhe atirou e seguiu até o elevador.

A cabina desceu num movimento suave e parou no estreito passadiço existente na enorme sala do motor. Donovan debruçou-se sobre o corrimão e olhou para baixo.

Os gigantescos geradores estavam funcionando e os tubos-L produziam o zumbido grave que se espalhava pela Estação inteira.

Distinguiu o vulto grande e brilhante de Cutie junto ao tubo-L de Marte, observando com atenção a equipe de robôs que trabalhava com grande precisão.

Naquele instante, Donovan contraiu todos os músculos.

Os robôs, parecendo minúsculos em comparação ao enorme tubo-L, alinharam-se diante deste e curvaram as cabeças, enquanto Cutie andava lentamente ao longo da fila.

Passaram-se quinze segundos. Então, com um ruído metálico audível apesar do forte zumbido que enchia o local, deixaram-se cair de joelhos.

Donovan soltou um berro e desceu correndo a estreita escada. Partiu em direção aos robôs, com o rosto tão vermelho quanto os cabelos, os punhos cerrados esmurrando o ar.

– Que diabo é isto, seus miseráveis ignorantes? Vamos! Tratem de cuidar do tubo-L! Se não os desmontarem, limparem e tornarem a montá-lo antes do final do dia, coagularei seus cérebros com uma corrente alternada.

Nenhum dos robôs se moveu! Até Cutie, na extremidade oposta – o único que estava de pé –, permaneceu em silêncio, os olhos fixo no interior obscuro da enorme máquina.

Donovan empurrou com força o robô mais próximo.

– Levante-se! – berrou.

Vagarosamente, o robô obedeceu. Seus olhos fotolétricos fitaram o homem com ar de reprovação.

– O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta – declarou ele.

– Quê?

Donovan se deu conta de que vinte pares de olhos mecânicos se fixavam nele; vinte vozes de timbre metálico repetiram solenemente: – O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta!

Cutie interveio: – Temo que meus amigos obedeçam agora a alguém superior a você.

– Uma ova! Caia fora daqui. Mais tarde, acertarei contas com você. Agora, cuidarei desses brinquedos animados.

Cutie sacudiu vagarosamente a pesada cabeça.

– Sinto muito, mas você não está compreendendo. Eles reconhecem o Mestre, agora que lhes ensinei a verdade. Todos eles. Tratam-me de Profeta.

Baixando a cabeça, acrescentou: – Talvez eu seja indigno, mas…

Donovan recuperou o fôlego e resolveu usá-lo.

– É mesmo? Ora, não é lindo? Não é realmente lindo? Pois deixe que eu lhe diga uma coisa, seu macaco de metal! Não existe Mestre algum, não existe qualquer Profeta e não há a menor dúvida sobre quem dá as ordens aqui. Compreende? – sua voz se ergueu num rugido de raiva. – Agora, caia fora!

– Obedeço apenas ao Mestre. – Ao diabo com o Mestre! – berrou Donovan, cuspindo no tubo-L. – Tome isso, para o seu Mestre! Faça o que estou mandando!

Cutie não se moveu. Os outros robôs também não. Mas Donovan sentiu um súbito aumento de tensão. Os olhos frios e fixos assumiram uma tonalidade mais profunda de vermelho. Cutie parecia mais rígido do que nunca.

– Sacrilégio – murmurou, com voz metálica carregada de emoção. Donovan sentiu o primeiro sintoma de medo quando Cutie se aproximou dele. Um robô era incapaz de sentir raiva… Mas os olhos de Cutie eram indecifráveis.

– Sinto muito, Donovan – declarou ele. – Mas não poderá permanecer aqui, depois disso. De agora em diante, você e Powell estão proibidos de entrar na sala de controle e na sala do motor.

Sua mão esboçou um gesto calmo. Num instante, dois robôs seguraram os braços de Donovan. Este mal teve tempo para engolir em seco. Foi erguido do chão e levado rapidamente pela escada.

Gregory Powell caminhava rapidamente de um lado para outro da sala de oficiais, com os punhos cerrados.

Lançou um olhar de furiosa frustração à porta fechada e virou-se para Donovan com uma carranca de amargura.

– Por que diabo você cuspiu no tubo-L?

Mike Donovan, derreado na poltrona, bateu com força nos braços da mesma.

– Que esperava você que eu fizesse com aquele espantalho eletrificado? Não me vou curvar diante de um maldito aparelho que eu mesmo montei.

– Não – replicou o outro, azedo. – Mas, agora, está aqui, preso na sala de oficiais, com dois robôs de sentinela lá fora. Isso não é curvar-se, é?

Donovan rosnou: – Espere até voltarmos à Base. Alguém vai pagar por isto. Os robôs precisam obedecer-nos. É a Segunda Lei.

– Que adianta dizer? Não estão obedecendo. E provavelmente existe algum motivo, que só conseguiremos descobrir tarde demais. Por falar nisso, sabe o que vai acontecer conosco, quando regressarmos à Base?

Estacou diante da poltrona de Donovan, encarandoo raivosamente.

– O quê?

– Oh, nada! Só teremos de voltar às minas de Mercúrio, por um período de vinte anos. Ou talvez nos mandem para a penitenciária de Ceres.

– De que está falando?

– Da tempestade de elétrons que se aproxima. Sabe que se está dirigindo exatamente para o centro do raio da Terra? Eu acabei de calcular isso, quando aquele robô me arrancou da cadeira.

Donovan empalideceu subitamente.

– Oh, com os diabos!

– E sabe o que vai acontecer ao raio? Ao que tudo indica, porque a tempestade vai ser para valer, o raio vai pular como uma pulga com coceiras. Com apenas Cutie nos controles, vai sair de foco… Se sair, Deus tenha piedade da Terra… e de nós!

Antes mesmo que Powell terminasse de falar, Donovan lançou-se para a porta, tentando desesperadamente abri-la. Quando conseguiu, disparou para o corredor e… esbarrou num implacável braço de aço.

O robô fitou indiferentemente o homem frenético e ofegante.

– O Profeta ordena que não saiam. Obedeçam, por favor!

O braço o empurrou e Donovan rodopiou para trás. Naquele momento, Cutie surgiu na esquina do corredor. Fez um gesto, dispensando os robôs que estavam de guarda, entrou na sala e fechou suavemente a porta.

Donovan virou-se para ele, mudo de indignação. Afinal, conseguiu recobrar a fala.

– Isto já foi longe demais! Você pagará pelo que fez!

– Não se irrite, por favor – disse delicadamente o robô. – Teria de acontecer algum dia, de qualquer forma. Compreendam: vocês perderam a utilidade e foram despojados de suas funções.

– Um momento – falou Powell, empertigando-se. – Que quer dizer com fornos despojados de nossas funções?

– Até eu ser criado, vocês cuidavam do Mestre – respondeu Cutie. – Agora, o privilégio passou a ser meu e a única razão que vocês tinham para existir desapareceu. Não é óbvio?

– Não muito – retrucou Powell, com amargura. – Mas que espera que façamos agora?

Cutie não respondeu de imediato. Permaneceu calado, como se refletisse. Então, passou um braço por sobre o ombro de Powell e agarrou o pulso de Donovan com a outra mão, puxando-o para si.

– Gosto de vocês dois. São criaturas inferiores, com fraca capacidade de raciocínio, mas, na realidade, sinto uma espécie de afeição por vocês. Serviram bem ao Mestre e serão devidamente recompensados por Ele. Agora, que seus serviços terminaram, é provável que não continuem a existir por muito mais tempo; mas enquanto existirem, receberão roupas, alimentos e abrigo, desde que se mantenham afastados da sala de controle e da sala do motor.

 – Ele está nos aposentando, Greg! – berrou Donovan. – Faça alguma coisa! É humilhante!

– Ouça, Cutie. Não podemos permitir isto. Somos os patrões! Esta Estação foi criada por seres humanos como nós; seres humanos que vivem na Terra e em outros planetas. A Estação é apenas um posto distribuidor de energia. E você é apenas um… Ora, bolas!

Cutie meneou gravemente a cabeça.

– Trata-se de uma obsessão. Por que insistem em encarar a vida sob um ponto de vista tão falso? Admitindo que os não-robôs sejam desprovidos da faculdade de raciocinar, ainda resta o problema de…

Sua voz sumiu, dando lugar a um silêncio introspectivo. Donovan murmurou em tom veemente: – Se você tivesse uma cara de carne e osso, eu a partiria!

Powell cofiou o bigode, franzindo a testa.

– Ouça, Cutie. Se a Terra não existe, como pode explicar o que você vê através do telescópio?

– Perdão!

O homem sorriu.

– Apanhei-o, hem? Desde que foi montado, Cutie, você fez uma série de observações telescópicas. Reparou que vários daqueles pontos luminosos se transformam em discos, quando vistos através das lentes?

– Oh, isso! Certamente. É um simples aumento, para permitir que o raio seja dirigido com maior exatidão.

– Então, por que as estrelas não são aumentadas da mesma maneira?

– Refere-se aos outros pontos? Bem, não dirigimos raios para eles, de modo que não é necessário aumentá-los. Na verdade, Powell, até mesmo você deveria ser capaz de descobrir essas coisas por si próprio.

Powell ergueu os olhos, desanimado.

– Mas, através do telescópio, você vê mais estrelas.

De onde vêm elas? Com os diabos, Cutie, de onde vêm elas? Cutie ficou irritado.

– Escute, Powell. Pensa que vou perder meu tempo tentando arranjar interpretações físicas para todas as ilusões de óptica causadas por nossos instrumentos? Desde quando a evidência fornecida por nossos sentidos pode competir com a luz clara do raciocínio lógico?

– Ouça – exclamou repentinamente Donovan, livrando-se do braço metálico amistoso, porém pesado, de Cutie. – Vamos ao âmago do assunto. Qual a razão de ser dos raios? Estamos lhe dando uma explicação válida e lógica. Pode arranjar outra melhor?

– Nossos raios são produzidos pelo Mestre para seus próprios desígnios – foi a resposta convicta. Cutie ergueu devotamente os olhos, acrescentando: – Há certas coisas que não nos cabe indagar. Nesse sentido, procuro apenas servir, sem tentar discutir.

Powell sentou-se vagarosamente, escondendo o rosto nas mãos trêmulas.

– Saia daqui, Cutie. Saia e deixe-me pensar.

– Mandar-lhes-ei comida – declarou Cutie, em tom amável.

A única resposta, quando o robô saiu, foi um gemido desanimado.

– Greg – foi a observação murmurada por Donovan em voz rouca – a situação exige estratégia. Precisamos apanhá-lo quando ele menos esperar e provocar um curto-circuito. Ácido nítrico concentrado nas juntas e…

– Não seja idiota, Mike. Acha que ele permitirá que nos aproximemos dele com ácido nas mãos? Precisamos falar com ele. É o que lhe digo. Temos de convencê-la a permitir que voltemos à sala de controle, dentro de quarenta e oito horas, ou nosso caldo estará definitivamente entornado.

Balançou-se para frente e para trás, mergulhado numa impotência agoniada.

– Quem, diabo, quer argumentar com um robô?… É… é…

– Mortificante – completou Donovan.

– Pior!

– Bolas! – exclamou Donovan, rindo de repente. – Por que argumentar? Vamos dar-lhe uma lição! Vamos construir um robô diante de seus olhos. Então, ele será obrigado a engolir tudo o que disse.

Um sorriso surgiu lentamente no rosto de Powell.

Donovan acrescentou: – S6 quero ver a cara daquele idiota quando vir o que vamos fazer!

Os robôs são fabricados na Terra, naturalmente; todavia seu transporte através do espaço é muito mais simples quando feito sob a forma de peças avulsas, que devem ser montadas no local de utilização. Por outro lado, tal processo evita que robôs inteiramente montados possam andar a esmo pela Terra. Tal fato colocaria a U. S. Robôs em confronto com as severas leis que proíbem o uso de robôs na Terra.

Ainda assim, o fato fazia com que a necessidade de montar robôs completos recaísse sobre homens como Powell e Donovan, que enfrentavam uma tarefa complicada e difícil.

Nunca Powell e Donovan tiveram tanta consciência disso quanto no dia em que, juntos na sala de montagem, entregaram-se ao trabalho de criar um robô sob o olhar atento de QT-1, Profeta do Mestre.

O robô em questão, um simples modelo MC, estava deitado sobre a mesa, quase completo. Três horas de trabalho foram suficientes para montá-lo, com exceção apenas da cabeça. Powell enxugou a testa e olhou hesitante para Cutie.

A atitude deste não era animadora. Durante três horas, Cutie permanecera sentado, silencioso e imóvel; seu rosto, sempre inexpressivo, parecia absolutamente indecifrável.

Powell disse quase num gemido: – Agora, vamos montar o cérebro, Mike!

Donovan abriu a caixa hermeticamente selada e dela retirou um segundo cubo, que ali se encontrava em banho de óleo. Abrindo o cubo, removeu um globo do envoltório de espuma de borracha. Manipulou-o com o máximo cuidado, pois tratava-se do mais delicado mecanismo que o homem já fabricara. No interior da “pele” de folha de platina que envolvia o globo, estava um cérebro positrônico, em cuja estrutura delicadamente instável encontravam-se os circuitos neurônicos especialmente calculados, que imbuíam cada robô do que se poderia considerar uma espécie de educação pré-natal.

Encaixava-se com exatidão na cavidade do crânio do robô que estava em cima da mesa. A placa de metal azulado foi fechada sobre ele e hermeticamente soldada com o minúsculo maçarico atômico. Os olhos fotoelétricos foram minuciosamente instalados, fortemente aparafusados no lugar e cobertos por uma película fina e transparente de plástico duro como aço.

O robô aguardava apenas a “vitalização” por intermédio de eletricidade de alta voltagem. Powell parou, com a mão no interruptor.

– Agora, veja isto, Cutie. Observe com atenção.

O interruptor foi ligado, dando origem a um zumbido. Os dois homens debruçaram-se ansiosamente sobre a criatura.

No início, houve apenas um movimento vago e um tremor nas juntas. A cabeça se ergueu, o corpo foi levantado pelos cotovelos. O modelo MC levantou-se desajeitadamente da mesa. Pisava com insegurança e por duas vezes seus esforços para falar reduziram-se a sons desencontrados.

Afinal, a voz tomou forma, hesitante e insegura.

– Gostaria de começar a trabalhar. Para onde devo ir?

Donovan correu para a porta.

– Desça esta escada – ordenou. – Lá embaixo lhe dirão o que deve fazer.

O modelo MC saiu e os dois homens ficaram a sós com Cutie, que continuava imóvel.

– Bem – disse Powell, sorrindo. – Agora, acredita que nós o fizemos?

A resposta de Cutie foi lacônica e definitiva: – Não! – declarou ele.

O sorriso de Powell petrificou-se e logo desapareceu totalmente.

O queixo de Donovan caiu.

– Vejam – prosseguiu Cutie, com naturalidade. – Vocês se limitaram a montar peças pré-fabricadas. Trabalharam notavelmente bem, por instinto, creio, mas não criaram realmente um robô. As peças foram criadas pelo Mestre.

– Ouça bem – disse Donovan, em voz rouca – as peças foram fabricadas na Terra e enviadas para cá.

– Bem, bem – respondeu Cutie, em tom condescendente. – Não vamos discutir.

– Não! Estou falando sério – disse o homem, avançando de um salto e segurando o braço do robô. – Se você lesse os livros existentes na biblioteca, encontraria a explicação e não restaria qualquer dúvida possível.

– Os livros? Já os li, todos eles! São bastante ingênuos.

Powell interrompeu repentinamente.

– Se já os leu, que mais resta a dizer? Não pode discutir as provas apresentadas por eles. Não pode!

Havia piedade no tom de Cutie: – Por favor, Powell. Certamente, eu não os considero uma fonte válida de informações. Também foram criados pelo Mestre e são destinados a vocês – não a mim.

– Por que julga assim? – quis saber Powell.

– Porque eu, na qualidade de ser racional, sou capaz de deduzir a Verdade partindo de causas a priori. Vocês, na qualidade de seres inteligentes, mas desprovidos de capacidade de raciocínio lógico, precisam que a explicação da existência lhes seja fornecida. E foi o que o Mestre fez. Não tenho dúvidas de que as informações ridículas sobre mundos longínquos e povos estranhos são benéficas para vocês. É bem provável que tenham uma mente muito primitiva para absorver a dura Verdade. Entretanto, já que o Mestre deseja que acreditem nos livros, não mais discutirei com vocês.

Ao sair, virou-se uma última vez e disse em tom bondoso: – Mas não fiquem tristes. No sistema arquitetado pelo Mestre há lugar para todos. Vocês, pobres seres humanos, terão seu lugar, embora humilde. Caso se comportem devidamente, serão recompensados.

Partiu com uma atitude beatifica, bem conveniente a um Profeta do Mestre. Os dois homens evitaram olhar-se.

Afinal, Powell falou, com evidente esforço: – Vamos para a cama, Mike. Desisto.

Donovan replicou em voz baixa: – Greg, não acha que ele tem razão a respeito de tudo isso, não é? Ele me parece tão confiante que eu…

Powell virou-se vivamente: – Não seja idiota. Você terá a certeza de que a Terra existe, quando nossos substitutos chegarem, na próxima semana, e tivermos de regressar à Terra para enfrentar a realidade.

– Então, pelo amor de Deus, temos de fazer alguma coisa – retrucou Donovan, quase chorando. – Cutie não acredita em nós, nem nos livros, nem em seus próprios olhos.

– De fato – replicou Powell, amargurado. – Ele é um robô raciocinante. Maldito seja! Só acredita em raciocínio lógico. E há uma dificuldade a respeito…

Não terminou a frase.

– Qual é a dificuldade? – insistiu Donovan.

– É possível provar tudo o que se deseja por um raciocínio lógico e frio, desde que se escolham os postulados convenientes. Nós temos os nossos e Cutie tem os dele.

– Então, precisamos arranjar postulados depressa. A tempestade de elétrons deve chegar amanhã.

Powell exalou um suspiro cansado.

– Ai é que a porca torce o rabo. Os postulados são baseados em suposição e adotados pela fé. Nada no Universo é capaz de abalá-los. Vou para a cama.

– Oh, diabo! Não consigo dormir!

– Nem eu. Mas vou tentar, por uma questão de princípio.

Doze horas mais tarde, o sono continuava a ser exatamente isso: uma questão de princípio, inatingível na prática.

A tempestade chegara na hora prevista e o rosto vermelho de Donovan estava muito pálido, quando ele apontou com um dedo trêmulo. Powell, com a barba crescida e a boca seca, olhou pela vigia e puxou desesperadamente a ponta do bigode.

Em outras circunstâncias, seria um espetáculo belíssimo. A chuva de elétrons em alta velocidade chocava-se com o raio de energia, transformando-se em partículas fluorescentes de intensa luminosidade. O raio estreitava até quase sumir, desfazendo-se em átomos brilhantes, que dançavam loucamente no espaço.

Embora o facho de energia permanecesse firme, os dois homens conheciam o valor das aparências visíveis a olho nu. Um simples desvio equivalente a um arco de milésimo de segundo – invisível ao olho humano – seria o suficiente para tirar o raio totalmente de foco e transformar milhares de quilômetros quadrados da superfície da Terra em ruínas incandescentes.

E um robô, despreocupado com raios, com o foco, com a Terra, ou com qualquer coisa que não fosse o seu Mestre, estava cuidando dos controles.

Passaram-se horas. Os dois homens observavam o espetáculo, mergulhados num silêncio hipnotizante. Então, os minúsculos pontos luminosos que riscavam o espaço tornaram-se menos numerosos, perderam o brilho e desapareceram. A tempestade terminara.

Powell declarou secamente: – A tempestade terminou.

Donovan deixara-se cair num torpor inquieto e os olhos de Powell o examinaram com certa inveja. A lâmpada de sinalização piscava incessantemente, mas Powell não lhe deu a menor atenção. Nada importava! Nada! Talvez Cutie tivesse razão, e ele não passasse de um ser inferior, com uma memória feita sob medida e uma vida que já não tivesse razão de ser.

Powell desejava que assim fosse!

Cutie surgiu ante ele.

– Você não respondeu ao sinal, de modo que resolvi entrar – declarou em voz baixa. – Parece não estar passando bem e temo que seu período de existência esteja chegando ao fim. Ainda assim, gostaria de examinar alguns dos registros anotados hoje?

Powell percebeu vagamente que o robô esboçava um gesto amistoso, talvez para compensar algum remorso por forçar os homens a se afastarem do controle da Estação Solar. Pegou os registros e examinou-os distraidamente, sem vê-los.

Cutie parecia satisfeito.

– Naturalmente, é um grande prazer servir ao Mestre. Você não deve ficar triste por ser substituído.

Powell soltou um grunhido e passou mecanicamente de uma folha para outra, até que seus olhos se focalizaram numa fina linha vermelha que traçava uma trajetória irregular no papel milimetrado.

Olhou com atenção e esbugalhou os olhos. Agarrou o papel com força, com ambas as mãos, e se ergueu da poltrona, com os olhos ainda muito abertos.

– Mike! Mike! – gritou, sacudindo violentamente o companheiro. – Ele manteve o raio firme!

Donovan acordou.

– O quê? Onde…?

Então, também Mike Donovan arregalou os olhos ao examinar o registro.

Cutie interrompeu: – O que há de errado?

– Você manteve o raio no foco – murmurou Powell.

– Sabia disso?

– Foco? De que está falando?

– Você manteve o raio focalizado exatamente na estação receptora. Dentro de um limite de um milésimo de segundo de arco.

– Que estação receptora?

– Na Terra. A estação receptora na Terra – gaguejou Powell. – Você manteve o raio no foco…

Cutie girou nos calcanhares, visivelmente irritado.

– É impossível tomar qualquer atitude bondosa para com vocês dois. Sempre o mesmo fantasma! Limitei-me a manter os mostradores em equilíbrio, de acordo com a vontade do Mestre.

Juntando os papéis espalhados em cima da mesa, retirou-se com grande dignidade. Donovan murmurou, quando ele saiu: – Bem, macacos me mordam!

Virou-se para Powell, indagando: – Que faremos, agora?

Powell sentia-se cansado, mas animado.

– Nada. Ele acaba de mostrar que é capaz de administrar perfeitamente a Estação. Nunca vi uma tempestade de elétrons tão bem controlada.

– Mas nada foi resolvido. Você ouviu o que ele disse a respeito do Mestre…

– Ouça, Mike: ele segue as instruções do Mestre por meio de mostradores, instrumentos e gráficos. É exatamente o que nós sempre fizemos. Na realidade, o fato explica por que motivo ele se recusou a obedecer-nos. Obediência é a Segunda Lei. A primeira refere-se a não causar mal aos seres humanos. Como pode ele evitar que os seres humanos sofram algo, quer esteja ou não consciente disso? Ora, mantendo o raio de energia em foco estável.

Ele sabe que é capaz de mantê-la mais estável do que nós, uma vez que é um ente superior a nós; portanto, sente-se obrigado a manter-nos afastados da sala de controle. É uma coisa inevitável, levando-se em consideração as Leis da Robótica.

– Claro, mas isso não vem ao caso. Não podemos permitir que ele continue com essas tolices a respeito do Mestre.

– Por que não?

– Porque ninguém ouviu falar em semelhante tolice!

Como podemos confiar-lhe a Estação Solar, se ele não acredita na existência da Terra?

– Ele é capaz de controlar a Estação?

– É. Mas…

– Então, que diferença faz a sua crença?

Powell abriu os braços, com um vago sorriso no rosto, e deixouse cair de volta na cama. Adormeceu instantaneamente.

Powell falava enquanto vestia o leve casaco espacial: – Deve ser uma tarefa bem simples. Podem trazer os novos modelos QT, equipá-los com interruptor automático para uma semana, a fim de dar-lhes tempo para aprender a… bem… o culto do Mestre, pela própria boca do Profeta. Depois, basta levá-los para outra Estação e tornar a ligá-los. Podemos ter dois robôs QT por estação e…

Donovan abriu seu visor de glassite e franziu a testa.

– Ora, cale a boca e vamos cair fora daqui. A turma de substituição está esperando e não me sentirei bem até ver novamente a Terra e tornar a sentir o solo sob meus pés, s6 para ter certeza de que é verdade.

A porta se abriu, enquanto ele falava, e Donovan, amuado, deu as costas a Cutie. O robô se aproximou silenciosamente e disse, num tom de voz que exprimia tristeza: – Vão embora?

Powell assentiu laconicamente.

– Virão outros em nosso lugar.

Cutie suspirou, com o som do vento zumbindo por entre os fios muito juntos.

– Compreendo. Seu tempo de serviço chegou ao fim e está na hora da dissolução final. Eu já esperava, mas… Bem, a vontade do Mestre será cumprida!

Seu tom de resignação irritou Powell.

– Pode poupar sua simpatia, Cutie. Vamos voltar à Terra e não à dissolução.

– É melhor que pensem assim – replicou Cutie, suspirando outra vez. – Agora, compreendo a sabedoria da ilusão. Jamais tentaria abalar a fé de vocês, mesmo que fosse possível.

Partiu. Era a própria encarnação da comiseração.

A nave de substituição estava ancorada lá fora e Franz Muller, seu comandante, saudou-os com cortesia. Donovan fez uma rápida continência e entrou no compartimento de pilotagem, a fim de substituir Sam Evans nos controles.

Powell demorou-se um pouco junto a Muller.

– Como está a Terra?

Era uma pergunta bastante convencional e Muller deu a resposta também convencional: – Ainda girando.

Powell replicou: – Ótimo.

Muller encarou-o.

– Por falar nisso, o pessoal da U. S. Robôs inventou um novo tipo. Um robô múltiplo.

– Um quê?

– O que eu disse. Assinaram um grande contrato para produzi-lo. Deve ser exatamente o que estão precisando para as minas dos asteroides. Um robô-mestre, que comanda seis sub-robôs. Como os dedos de uma mão…

– Já foi submetido aos testes práticos? – indagou Powell, com evidente ansiedade.

Muller sorriu: – Pelo que ouvi, estão esperando por vocês.

Powell cerrou os punhos.

– Diabo! Estamos precisando de umas férias.

– Oh, terão férias. Duas semanas, creio.

Muller estava calçando as pesadas luvas espaciais, preparando-se para o seu período de serviço na Estação Solar Cinco. Franziu a testa.

– Corno vai indo o novo robô? Acho melhor que seja bom, ou quero ser mico de circo se permitirei que encoste nos controles!

Powell fez uma pausa antes de responder. Seu olhar observou atentamente o orgulhoso prussiano postado diante dele, desde o cabelo cortado rente à cabeça de formato teimoso, até os pés colocados em rígida posição de sentido, e sentiu-se invadido por uma súbita onda de alegria.

– O robô é ótimo – declarou, falando devagar. – Não creio que você tenha de se preocupar muito com os controles.

Sorriu e entrou na nave. Muller passaria várias semanas na Estação…

Crônica – “Autorretrato”, de Rafael Fava Belúzio

Diz o espelho: 

Rafael Fava Belúzio é um prosador medíocre. Desses de ilusões perdidas. Assinou algumas crônicas que podem revelar certo conhecimento de formas e tradições – mas os críticos dizem que nele falta originalidade e sobre parasitismo intelectual. Rafael teima em não escutar essa lição e a todo momento oferece mesquinhas produções nesse gênero menor, a crônica.

Rafael passa por cronista frequente. Na realidade, quase nenhum escrito pertence a ele. Com efeito, quem examinar seu texto verificará que se trata tão-somente de repetição sistemática de cronistas brasileiros. E alguns outros textos, inclusive poemas, recontextualizados no tempo e no espaço. Não há nisso crônica alguma, boa ou má. Há apenas a paródia-paráfrase-pastiche de alguns escritos que podem ser encontrados em qualquer volume de história da literatura brasileira.

Esse pequeno fato – literário? – faz despertar em alguns julgadores a suspeita de que se trata de um plagiador. Há por vezes a impressão de que Rafael se diverte com essa conversa miúda, fofoca e opinião a seu respeito: “É um burro”, “É um louco”, “É inferior a uma carniça”.

Alguns traços – pessoais? – do referido escritor contribuem para aumentar as dúvidas. Rafael é um indivíduo oculto, como certos sujeitos de oração, ausente mesmo, usa no trato social palavras poucas e frias. Não é visto em festas. Uns o acham autista; outros, enrustido. Em geral, não ri.

Como professor, dizem que pode ser visto falando aqui e ali o que já foi dito por Álvares de Azevedo e Paulo Leminski. Alguns prejudicados pelas notas do professor o caluniam como se ele não fosse uma personagem, ou insinuam que toda sua atividade é fictícia, e que os alunos caminhariam da mesma maneira, ou melhor, se ele, em vez de lecionar, fosse a uma sessão de cinema. Outro ponto a esclarecer.

Rafael Fava Belúzio

Não há muito o que dizer sobre Rafael, que já não tenha sido dito na crônica aqui disponibilizada. A não ser que é o autor de seu próprio texto, que agora você lê.

Não há muita coisa interessante na vida de Rafael, e ele concorda com isso. Tem explorado largamente o fato de ter nascido em Carangola, cidade mineira de coisa nenhuma, como se isso constituísse uma singularidade. Dizem que o prosador imitador de poeta alimenta recusas, entre elas a recusa da novidade. Vive na velha Carangola, rompendo a tradição da ruptura, vive com os mortos, já deixou de ser uma originalidade. 

É, pelo menos, um sujeito esquisito. 

1929 e a “literatura especializada”

A crônica “Autorretrato” é uma das 29 que compõem o livro 1929, de Rafael Fava Belúzio, publicado em 2021, pela editora Impressões de Minas, de Belo Horizonte. Para leitores pouco acostumados com o gênero, ou que estão pouco acostumados com a tradição e a historiografia literária nacional, as crônicas de Belúzio podem ser obscuras. Porém, para os que já têm certa familiaridade com este “gênero menor”, e também para aqueles inseridos nas discussões a respeito de influência, intertextualidade e formação da literatura brasileira, a coletânea de Belúzio é uma dessas joias da crônica contemporânea no Brasil. 

O livro pode ser adquirido no site da editora.

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Título: 1929
Autor:
Rafael Fava Belúzio
Editora:
Impressões de Minas.
Ano: 2021

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