Três poemas de “Educação pela pedra”, de João Cabral de Melo Neto

Há certa convenção de que Educação pela pedra é o livro no qual o poeta João Cabral de Melo Neto levou mais longe sua “engenharia poética”. Livro formado por vinte e quatro poemas com uma simetria que encanta – sendo quatro seções, de seis poemas cada e muitas repetições de forma e de sentido –, o livro lançado em 1966 é considerado um marco divisório para a lírica de Cabral, para a qual elementos que vinham sendo apresentados em obras anteriores ganham uma dimensão diferente e um tanto quanto desafiadoras. Educação pela pedra conta ainda com alguns dos poemas mais emblemáticos e aclamados do autor pernambucano, entre os quais estão o próprio poema homônimo: “Educação pela pedra”, mas também “O sertanejo falando”, “Tecendo a manhã” e “Catar feijão”.

Na publicação de hoje, resolvi trazer outros textos também de altíssima qualidade e que fogem um pouco dessa “santíssima quaderna” que está presente no livro de 1966: “Duas das festas da morte”, “O urubu mobilizado” e “A fumaça no Sertão”. Os três fazem parte da primeira seção do livro de Cabral – intitulada Nordeste A – e versam sobre alguns dos temas mais caros ao escritor: a morte e a vida sertaneja, já canonizada em sua lírica, pelo menos desde Morte e vida Severina.

No mais, espero que vocês aproveitem a leitura!

Duas das festas da morte

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua,
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e, aliás, com uma boneca de verdade.

O urubu mobilizado

Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

A fumaça no Sertão

Onde tampouco a fumaça encorpa muito;
onde nem pode o barroco mil folheiro
da mangueira matriarca, corpopulenta,
de que na Mata a fumaça finge o jeito.
Nem o barroco, mais torto mas rasteiro,
de quando a fumaça se faz em cajueiro.

Onde também a fumaça encorpa pouco;
onde nem pode encopar-se de tão rala,
tanto quanto o ar ralo por que arvora
o fio da árvore que pode, desfiapada.
Onde porém, porque não pode o barroco,
ela pode empinar-se essencial, unicaule;
unicaule, mas bem diversa do coqueiro,
incapaz de ir linheiro ao empinar-se;
unicaule mais bem de palmeira a prumo,
de uma palmeira coluna, sem folhagem.

Por onde começar a ouvir Clube da Esquina

Por conta do “Top 10 álbuns” lançado pelo Podcast Discoteca Básica, o álbum Clube da Esquina (1972) entra mais uma e outra vez nos debates e ouvidos da população, tendo assumido a primeira posição em uma lista que contou com mais de quatrocentos discos avaliados por especialistas. O resultado dessa avaliação está sendo divulgado aos poucos pelos produtores do podcast citado, mas será disponibilizado, em definitivo, com a publicação do livro Os 500 maiores álbuns brasileiros de todos os tempos.

Mas o que será que faz de Clube da Esquina um disco tão especial? Por onde começar a  a escutá-lo e, mais, quais os motivos de seu destaque entre os melhores álbuns brasileiros já lançados?

Certamente, não há uma resposta única para essas perguntas. Ainda assim, uma breve viagem pela trajetória que leva ao célebre álbum de 1972 pode ajudar a esclarecer um pouco mais sua produção e também sua relevância e impacto enquanto “maior disco brasileiro de todos os tempos”, nas palavras dos produtores do Discoteca Básica.

Foto: Reprodução / O Tempo

O que é o Clube da Esquina?

Essa é uma pergunta importante para começar a entender o projeto musical que envolve o elepê duplo de 72. Isso porque, para alguns especialistas na obra do Clube da Esquina – como Sheila Diniz e Luiz Henrique Garcia – o nome não se refere especificamente a este ou àquele álbum (lembrando aqui também o lançamento de Clube da Esquina 2, de 1978, por Milton Nascimento), mas sim a uma formação cultural ou, ainda, um tipo de movimento musical feito a partir de Minas Gerais.

Nesse sentido, além de grupos e identidades sonoras como a Bossa Nova, a Tropicália, a Canção de Protesto e a Jovem Guarda, por exemplo, todas que ocorrem com certa proximidade e participam de um processo de modernização musical no Brasil, o país teria conhecido também uma inflexão musical encabeçada por um coletivo de músicos e letristas que passaram sua juventude na cidade de Belo Horizonte, e que acabaram ficando conhecidos pelo nome Clube da Esquina, por conta de uma canção e de dois elepês (que os consagraram).

Agora, com toda certeza, se visto enquanto movimento ou formação cultural, esse Clube acaba sendo muito maior do que a produção restrita de um disco, mesmo porque – segundo uma divisão já canônica, proposta por Leandro Garcia – sua trajetória data de 1967 até 1979, isto é, de quando Milton Nascimento lança seu primeiro elepê – Travessia (1967) – até o momento de publicação dos últimos trabalhos coletivos dos artistas envolvidos com o álbum Clube da Esquina, de 1972.

Por onde começar a ouvir?

Vamos voltar à pergunta chave desta publicação: por onde começar a ouvir e a entender Clube da Esquina? Bem, para ela, existem pelo menos duas respostas simples: a primeira delas, um tanto quanto óbvia, é partir diretamente para a escuta do elepê duplo de 1972 – ir direto na raiz. Afinal de contas, ele é certamente uma síntese dos elementos que, aos olhos da crítica e da historiografia musical brasileira, fazem parte não apenas da sonoridade específica do Clube, como também da modernização da canção popular no país. 

Porém, é interessante fazer uma escuta um pouco mais atenta do que de costume, pensando que o Clube da Esquina contém uma multidão e que, como mencionado anteriormente, se estende por cerca de dez anos de produção. Então, coloque o disco para tocar, mas se pergunte também: o que afinal define essa musicalidade?

Aqui vai uma dica, que também é uma redução um tanto quanto brusca: é possível dizer que existem três elementos de destaque na obra “mineira” – a “mineiridade”, a coletividade e a contradição – que são justamente os gatilhos para um experimentalismo de difícil comparação na música popular.

É claro que cada um desses traços poderia ser discutido longamente, mas deixo aqui apenas a sugestão de encontrá-los durante uma audição do disco de 1972. Repare, por exemplo, como “mineiridade” e contradição se manifestam no uso dos muitos signos tradicionais do estado, que são conjugados com elementos chamados “modernos”. Essa mistura entre tradição “regional” e modernização está tanto na musicalidade (com o uso de apitos, coro, órgão e tambores, associados a violão, bateria, guitarra, baixo, teclados eletrônicos e sintetizadores), como também nas letras das canções, que falam de trens, janelas que dão para cemitérios, estradas, ruas de uma capital provinciana etc.

Agora, no que diz respeito à coletividade, é interessante conhecer um pouco mais sobre a obra de cada artista que participou do álbum. Porém, pensando que são dezesseis envolvidos nessa concepção musical, minha sugestão é você restringir sua pesquisa a alguns nomes célebres: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes e o Som Imaginário, que cantam e tocam e dão o tom multifacetado que é encontrado em Clube da Esquina.

Isso nos leva para um caminho um tanto quanto paralelo àquele da primeira resposta, pois aponta para álbuns distintos do elepê duplo de 1972. Esses discos, no entanto, à sua própria maneira dão conta da produção musical mineira belo-horizontina e das tensões entre modernidade e tradição. Trata-se dos álbuns Milton (1970), assinado por Milton Nascimento; Som Imaginário (1970), do grupo de mesmo nome; Lô Borges (1972), do compositor homônimo; e Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli, Toninho Horta (1973), elepê que recebeu o nome de seus artistas.

Todas essas obras representam uma espécie de gestação musical pela qual os músicos e letristas “mineiros” estavam passando e, nesse ponto, pode-se dizer que são laboratórios. Ainda, repare como são trabalhos muito diferentes se comparados entre si, mas que, quando colocados ao lado de Clube da Esquina, encontram uma estranha sintonia com ele, em canções que funcionam como espelhos ou fragmentos de um mesmo mosaico.

Cada vez mais Clube da Esquina

Como se trata de um álbum duplo, com suas boas 21 canções, é bem comum descobrir novas faces e movimentos a cada vez que voltamos ao Clube, o que fica ainda melhor quando somos orientados a perceber alguns pequenos detalhes e também a colocar o elepê em paralelo com outras produções contemporâneas. Com o tempo, começam a saltar aos ouvidos elementos como os vocais de apoio e a guitarra de Beto Guedes; os momentos épicos e sombrios do piano de Wagner Tiso (em canções como “Cais” e “Um gosto de sol”); o surrealismo das paisagens construídas pelas canções de Lô Borges, que contrastam com o tom político e ritualístico encampado por Milton; etc.

Se realmente é o “melhor disco brasileiro de todos os tempos” é difícil dizer, porque esses juízos são sempre limitados e duvidosos, ainda que embasados em alguma medida. Mas sem dúvida alguma com Clube da Esquina estamos diante de uma obra prima da canção moderna e popular no Brasil, além de ser um dos discos sem os quais minha vida e minhas experiências estéticas estariam mais pobres. Com isso, fica, outra vez, o convite à escuta: escute Clube da Esquina!

https://www.youtube.com/watch?v=WwTf61AZNEo&t=51s
Texto por Gabriel Reis Martins

Dois poemas de William Butler Yeats

Texto e traduções por Marina Naves

Para falar de William Butler Yeats (1965-1939), eternizado na Literatura (irlandesa e mundial), vale começar dizendo que veio à luz em Dublin, no fim do século XIX. O poeta é considerado um dos grandes modernistas da língua inglesa. Contudo, seus primeiros versos foram fortemente influenciados por ares românticos e místicos, com influência de Shelley e quês pré-rafaelitas. Um bom exemplo disto é a sua coletânea de contos, The Celtic Twilight.

Amadurecendo, e bebendo de uma fonte chamada “renascença celta” (ou gaélica, ou irlandesa — pouco se fazia distinção naquela época), Yeats deparou-se com os conflitos por independência, e com a questão do nacionalismo, em meio ao turbilhão da Grande Guerra. Nesse contexto se configura o poema An Irish Airman Foresees His Death, cuja tradução está adiante, que traz o topos de quem luta por aqueles que não se tem estima, por uma pátria que não é a sua: realidade de muitos irlandeses que morreram em batalhões ingleses. A escolha da tradução foi manter o tom mais sóbrio, talvez solene, que remetesse ao luto que perpassa a atmosfera do poema.

Ainda em clima de guerra, falemos de gregos e troianos, do poema No Second Troy, também traduzido para esta publicação. Maud Gonne, grande amor do poeta — sua Helena, talvez — rejeita-o para casar-se, em 1903, com John MacBride. Maud Gonne era uma revolucionária, uma rebelde, e talvez por isso tenha sido retratada com tanto efervescência como alguém que ensina brigas e é cruel.  Optei por traduzir este poema com ares rancorosos, de certa forma, para tentar expressar o coração irado de um homem com orgulho ferido. Por isso palavras como “desgraça”, “homens broncos”, “ruazinhas”, “fel”.

Abaixo, deixo os dois poemas de Yeats, para o seu deleite. Aproveite!


UM AVIADOR IRLANDÊS PREVÊ SUA MORTE

(An Irish Airman Foresees His Death)

Eu sei que acharei o meu destino
Onde que entre nuvens acima;
Os que enfrento não desatino
Os que guardo não tenho estima;
Kiltartan Cross é minha pátria 
Seus miseráveis o meu povo,
Final algum dor lhes traria,
Ou mesmo alegria de novo.
Dever nem lei me fez lutar,
Nem louvor ou públicos homens, 
Um só rompante a deleitar
Trouxe-me aos tumultos nas nuvens; 
Eu pesei tudo, trouxe à mente,
Anos a vir me eram ar nulo,
Anos passados, ar ausente;
Em acordo co'a vida, o luto.

I know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate,
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan’s poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.
Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public men, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death

NENHUMA TROIA MAIS

(No Second Troy)

Por que culpá-la se na minha vida 
pôs desgraça, ou que ela iria ensinar,
depois, aos homens broncos muitas brigas,
forçar ruazinhas ao bulevar,
se tivessem coragem igual à ânsia?
O que lhe teria feito manso o espírito
quando a honra lhe fez simples tal flama?
Co’a beleza de arco apertado, tipo
que não é normal para essa idade,
sendo alta, singular e tão cruel?
Que teria feito, em sua identidade?
Havia outra Troia para arder seu fel?

Why should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great,
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done, being what she is?
Was there another Troy for her to burn?

Conto – “Lettipark”, de Judith Hermann

Como Elena era linda! Uma garota linda e muito magra, de olhos negros e cabelos castanho-escuros, tesa como uma corda de arco e com um rubor na face, como se o tempo todo beliscasse as próprias bochechas. Elena era vigorosa, corajosa, radiante e irritadiça, estava sempre precavida. Usava saias por cima das calças – feito uma cigana –, bijuteria, mas não maquiagem. E seus cabelos eram tão desgrenhados, como se passasse o dia inteiro deitada na cama, fumando, batendo as cinzas no chão e arreganhando as pernas. Em todo caso, à noite ela ia trabalhar em um bar numa rua de paralelepípedos quebrados, prédios decadentes, portas da frente abertas, acácias à direita e à esquerda, bétulas nos pátios. No inverno o lugar cheirava a carvão e no verão a genista e poeira. Elena era do tipo que, à noite, prendia com um lápis os cabelos em coque. Ela vestia uma saia vermelho-ferrugem sobre uma calça verde-hortelã, abria o bar, varria as bitucas de cigarro para fora, tomava uma cerveja, ligava a música e acendia o varal de lâmpadas coloridas entre os ramos de acácias. Mais tarde apareciam todos. Elena era a garota mais linda da rua.

Elena está na frente de Rose no caixa do mercado, Rose a reconhece tarde demais, só depois de já ter colocado os morangos, açúcar e o creme de leite na esteira, aí sim reconhece Elena. Tivesse reconhecido Elena mais cedo, teria se virado e olhado para trás em busca de algo, mas agora não dá mais. Paul também já está ali, ele põe suas coisas ao lado das dela, peixe enlatado, tabaco e um vinho do Porto. Elena não repara. Ela engordou e envelheceu, está fleumática e lenta, é inconfundivelmente Elena – olhos amendoados e madeixas semelhantes a serpentes, uma pele em que se vê o calor, e que é sempre maior que todas as outras – mas agora parece estar metida em dificuldades. Alguém a acompanha, um indiano, troncudo, enérgico e robusto, possivelmente com uma inclinação à violência e um pouco desleixado, ele traz chinelos empoeirados nos pés, e sua camisa florida está manchada. O indiano organiza as coisas na esteira. Entrega-as à atendente, pega-as do outro lado e ainda as põe na sacola, Elena só fica parada ao lado. Ausente. Ombros caídos. Tomates, manjericão em vaso, velas e arroz. Cigarros. Duas garrafas de uísque. Elena tira uma carteira da bolsa e abre-a feito um livro. Ergue a cabeça e vê Rose. Com que expressão? Rose não consegue distinguir. Elena se assemelha a uma gigante triste. Uma gigante melancólica e enfeitiçada.

Caralho, diz Paul. Que desgraça. Não dá pra entender a lentidão dessa gente. Essa merda de frio aqui. Que gelo de lugar, essa é a última vez que nós pisamos neste lugar, Rose, ouça o que eu digo. Morangos. Você e sua ideia-fixa de que precisaria de mais isto ou mais aquilo.

Ninguém consegue pronunciar a palavra morangos com tanto desprezo quanto Paul. Ele deixa Rose ali parada e vai até a banca de jornal em frente, não está tão frio para dar uma folheada nos jornais. O indiano percebeu algo, uma sutil e tênue vibração. Ele toma a carteira das mãos de Elena e lança a Rose um olhar fulminante. Se soubesse como Elena já foi linda, se tivesse alguma ideia. E a situação seria diferente se soubesse?

Rose.

Paul a chama, e bem aí, de repente, Elena captou algo; ela volta a cabeça pesada de Rose para Paul e entende a ligação. Paul segura o jornal no alto, o tabloide sensacionalista, no qual confere seu horóscopo e o de Rose, as afirmações no horóscopo de Rose são para Paul mais verdadeiras que as próprias afirmações de Rose, e se o horóscopo diz que ela deveria refletir e finalmente contar a verdade ao parceiro, então Rose pode se preparar para uma semana difícil. Paul segura o jornal no alto, a manchete relata assassínios canibais, bárbaros nas proximidades e alta no preço da água, ele grita, você deveria fazer uma pausa, Rose, sossegar o facho, e Elena volta a cabeça para Rose.

Rose e Elena não tinham nada em comum, exceto pelo olhar que Page Shakusky lançara sobre elas, e pelo fato de terem sido uma imagem nos olhos de Page Shakusky. Uma visão. É que Rose saía para estudar, e Page Shakusky a vira, ele entrou em seu apressado caminho de volta do campus para a casa, quando ela não tinha outro objetivo senão preparar algo para comer, comer na escrivaninha e enquanto isso continuar estudando. Rose passara apressada pelo bar de Elena, e Page Shakusky se levantara num salto da mesa torta do jardim, da que sempre se sentava, e a agarrara. Bêbado, bêbado – como de praxe –, nunca estivera sóbrio. Ele dissera: mas que garota encantadora e graciosa você é, com esse andar de gazela e esse charme de ave cantadeira, todos te fitam fixamente. Rose não caiu nessa. Livrou-se dele, apressou-se e correu escada acima até seu apartamento, e ao chegar lá em cima, trancou a porta por dentro. Ela se deixou cortejar, mas não deu confiança. Page Shakusky persistiu por um bom tempo, de manhã ficava deitado na frente da porta dela, quando ela saía de casa, subia até sua sacada e esperava até que voltasse, escrevia-lhe incontáveis cartas, cheias de promessas, juras e safadezas. Rose tapava os ouvidos e fechava os olhos. Era retraída e estava preocupada em sobreviver, e sabia que, no fundo, Page Shakusky assim como ela também estava, só que adotara outra estratégia. Impossível se envolver com ele. Ele tentou por um tempo, e aí deixou a ideia de lado, porque achou uma outra aluna de convento, e de repente se envolveu com Elena, o que foi diferente, se lançou sobre ela. Elena parecia renunciar a qualquer decisão que ameaçasse sua liberdade. Parecia afinal ser livre. Ela partiu o coração de Page Shakusky depois de seis semanas, partiu-o no meio, de fora a fora em dois pedaços, e então espetou o seu lápis nos cabelos novamente e acendeu o varal de lâmpadas coloridas, e se sentou na frente da porta de sua loja, como se nada tivesse acontecido.

O indiano pagou junto suas compras e as de Elena. De uma forma como se a vida toda tivessem ido juntos às compras, como se sempre pagasse para si e para Elena. Paul joga o jornal de volta na pilha e vai para o caixa do outro lado. A atendente é loira e jovem, levanta os morangos e fita Rose nos olhos, sem expressão. Paul irá perguntar o que é que ela faz mesmo – ele pergunta isso a toda jovem atendente.

Rose se lembra do Lettipark. Do presente de Page para Elena, e não consegue se lembrar se Elena naquele momento já o deixara, ou se o deixou depois do presente. Com ou por causa daquele presente, ela o deixou. Elena passara sua infância no Lettipark, contara isso a Page. E Page saíra e fotografara o Lettipark para Elena. No inverno. Um parque comum e abandonado na periferia, um terreno baldio, e não havia quase nada para se ver, caminhos cobertos de neve, uma rotunda abandonada, bancos e um campo vazio. Árvores nuas, céu cinza, e isso era tudo. Mas Page seguira com devoção o rastro da infância de Elena. Visitara Rose – que conseguira abrir a porta para ele, desde quando cessara com seu violento e fútil cortejo, desde que estava com Elena. Rose deixava a taça, na qual ele tomara chá com rum, ficar dias a fio sobre a mesa da cozinha – e mostrara-lhe as fotos. As colara cuidadosamente dentro de um livro, sobre o qual escrevera com uma letra grosseira o nome Lettipark e embaixo… para Elena. Rose pensara, um presente como esse só se recebe uma vez. Apesar disso Elena deixou Page Shakusky, sentado, com a cabeça sobre a mesa torta do jardim, assim como estava mais cedo, às sete em frente ao bar, descalço, olhos inchados de choro e bêbado. Mais tarde, ele despareceu da vida das duas. Rose se mudou para longe. Elena desistiu do bar. O varal de lâmpadas coloridas ainda ficou mais um tempo pendurado no meio dos ramos de acácias. Rose não vai lá já tem muito tempo.

Autora

Texto de Gabriel Reis Martins

Judith Hermann (1970) é um escritora alemã ligada ao gênero da Literatura Pop na Alemanha, sendo reconhecida sobretudo por suas narrativas breves. Formada em jornalismo, a autora publica desde 1998, quando lançou seu primeiro livro literário, o volume de contos Sommerhaus, später (Casa de verão, mais tarde, em tradução de Marcelo Backes). Infelizmente, apenas alguns de seus textos foram publicados no Brasil, em antologias ou revistas, mas a autora ainda não recebeu nenhuma publicação de peso no país.

O conto aqui publicado está presente no livro Lettipark – homônimo da narrativa – publicado em 2016.

Três poemas de Rui Knopfli

Foto tirada por Jorge Neves, em 1981, na casa de Eugénio Lisboa, em Londres. Rui Knopfli está à direita.

Texto por Gabriel Reis Martins

É bem provável que você não conheça os poemas de Rui Knopfli… E já deu para perceber que eu adoro aqueles autores que não são tão frequentes no mercado editorial brasileiro e que acabam sendo pérolas perdidas no vasto oceano das livrarias e sebos pelo país afora. Inclusive, já comentei por aqui sobre o caso de Robert Frost, um pouco sobre Angela Carter, também sobre Jorge de Sena, e deve ter algum outro escritor de que estou me esquecendo agora, mas que já subiu ao palco no Duras Letras.

Bom, a bola da vez é justamente Rui Knopfli (1932-1997) – poeta moderno, lusófono e moçambicano –, que até agora só encontrou uma única edição no Brasil: o livro Antologia Poética, organizado por Eugênio Lisboa e publicado pela Editora UFMG, em 2010. Por mais que seja um poeta do século XX, só mais recentemente Knopfli tem sido publicado e divulgado, ainda com pouquíssima substância em terras brasileiras. Digo isso, porque enquanto contamos apenas com a exclusiva antologia da UFMG, só nas duas décadas passadas, o autor recebeu duas boas antologias em Portugal – Nada Tem Já Encanto, da editora Tinta-da-China, e Uso particular, do selo editorial Do Lado – como também teve sua obra reunida e publicada na íntegra, em 2003.

Aqui no Brasil, assim como acontece com outros poetas conterrâneos, Knopfli compõe o hall de desconhecidos da imapeável lírica moçambicana e, por conseguinte, africana. Porém, o autor tem certa particularidade em relação a outros escritores, pois a dificuldade de reprodução de sua obra pode estar diretamente ligada a certas polêmicas envolvendo seu nome.

Sendo um lírico ensimesmado, que deixou Moçambique, em 1975, Rui Knopfli é considerado um expátrida por uma parcela da crítica, não só por ter saído de sua terra natal pra nunca mais voltar, mas também por seu confuso e complexo posicionamento quanto às muitas revoluções africanas que aconteceram após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo a moçambicana. Esse detalhe pode parecer besta, mas acaba interferindo em sua recepção, chegando ao ponto de alguns considerarem sua poesia como de difícil saída, porque é desterrada, não sendo nem moçambicana e nem portuguesa (ou de outra luso-identidade).

Mas não há porque se deixar afetar por essa questão crítica, pelo menos não antes de ir aos poemas de Knopfli, ponto principal desta publicação. Os poemas “Ginástica aplicada”, “Fim da tarde no café” e “Aeroporto” foram destacados da obra do poeta, e foram escolhidos aqui, como de costume, tendo por parâmetro o puro e simples gosto pessoal do redator. Ainda assim, eles demonstram como que, em termos de escrita, o autor – entendido ou não como africano – é um poeta de quilate, que merecia maior reconhecimento e mais circulação.

Espero que vocês aproveitem a leitura, e que esta seja uma porta de entrada para a lírica deste grande poeta lusófono!


GINÁSTICA APLICADA

Poema de Mangas verdes com sal (1969)

Meu verso cínico é minha terapêutica
e minha ginástica. Nele me penduro
e ergo, em sua precisão de barra fixa.
Nele me exercito em pino flexível,
sílaba a sílaba, movimento controlado
de pulso, e me volteio aparatoso 
na pirueta lograda, no lance bem ritmado. 

Há um sorriso discreto em minha segurança.

Porém, se às vezes me estatelo, folha seca
(o verso é difícil e escorregadio), meu verso,
como de vós, ri-se de mim em ar de troça.

FIM DE TARDE NO CAFÉ

Poema de Reino Submarino (1962)

Na tarde cor de azebre
falávamos de coisas amargas.
Ali, na mesa triste do café
com moscas adejando 
sobre restos de açúcar
e um copo de água
morna de esquecida,
falávamos da amargura das coisas,
entre rostos graníticos e enxovalhados,
entre estranhos e estranhos
de estranhos e os que,
nada tendo de estranhos,
cuidam de cuidar 
o que se passa entre estranhos.
Na tarde comprida e silenciosa 
tecíamos gestos inúteis
e palavras entre dentes,
mergulhados na paisagem geométrica
do café. Do café tão cheio de gente
e fumo e moscas e caras tristes
e afinal tão profundamente,
tão desesperadamente vazio.

AEROPORTO

Poema de O monhé das cobras (1997)

É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer 
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.

Apesar de ter dito três poemas, acho interessante trazer mais este, no qual Rui Knopfli imagina, singelamente, um lugar para sua obra no futuro.

POSTERIDADE

Poema de Mangas verdes com sal (1969)

Um dia eu, que passei metade
da vida voando como passageiro,
tomarei lugar na carlinga
de um monomotor ligeiro
e subirei alto, bem alto,
até desaparecer para além
da última nuvem. Os jornais dirão:
Cansado da terra poeta
fugiu para o céu. E não
voltarei de facto. Serei lembrado
instantes por minha família,
meus amigos, alguma mulher
que amei verdadeiramente
e meus trinta leitores. Então
meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido. 

Conto – “Primeiro de Maio”, de Mário de Andrade

Apresentação

Todo ano, neste dia de 01/05, feriado para uns, dia comum para outros, eu volto ao conto de Mário de Andrade, publicado entre seus Contos Novos. É um texto que me faz rir bastante, não só por sua linguagem e pelas aspirações fantasiosas e esperançosas do operário 35 (personagem central da narrativa), mas principalmente pela atualidade da questão trabalhista no Brasil e de nosso cotidiano teatro das conquistas.

Há algum tempo atrás, cheguei a escrever um pequeno ensaio sobre “Primeiro de Maio”, que está disponível aqui no Duras Letras – deixo, abaixo, o link para acesso. Por isso, não vou tomar muito tempo com esta introdução: o conto fala por si só, assim como o nome de seu autor.

https://durasletras.com/2018/09/04/breve-analise-do-conto-primeiro-de-maio-de-mario-de-andrade/

No mais, feliz Dia dos Trabalhadores!

Primeiro de Maio

Texto de Mário de Andrade

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar.

Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.

Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas ruças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.

Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as ruças de algum… polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua ter-
ra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.

O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de “motim”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando assim na gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.

Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não pára não!

Cabeças-chatas… E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.

O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.

Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro…

Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também.

E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malas não vão não!” Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas “não largavam não”, só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

— Deixe que te ajudo, chegou o 35.

E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

Conto – “Briga das pastoras”, de Mário de Andrade

Chegáramos à sobremesa daquele meu primeiro almoço no engenho e embora eu não tivesse a menor intimidade com ninguém dali, já estava perfeitamente a gosto entre aquela gente nordestinamente boa, impulsivamente generosa, limpa de segundos pensamentos. E eu me pus falando entusiasmado nos estudos que vinha fazendo sobre o folclore daquelas zonas, o que já ouvira e colhera, a beleza daquelas melodias populares, os bailados, e a esperança que punha naquela região que ainda não conhecia. Todos me escutavam muito leais, talvez um pouco longínquos, sem compreender muito bem que uma pessoa desse tanto valor às cantorias do povo. Mas concordando com efusão, se sentindo satisfeitamente envaidecidos daquela riqueza nova de sua terra, a que nunca tinham atentado bem.

Foi quando, estávamos nas vésperas do Natal, da “Festa” como dizem por lá, sem poder supor a possibilidade de uma rata, lhes contei que ainda não vira nenhum pastoril, perguntando se não sabiam da realização de nenhum por ali.

— Tem o da Maria Cuncau, estourou sem malícia o Astrogildo, o filho mais moço, nos seus treze anos simpáticos e
atarracados, de ótimo exemplar “cabeça chata”.

Percebi logo que houvera um desarranjo no ambiente. À sra. dona Ismália, mãe do Astrogildo, e por sinal que linda senhora de corpo antigo, olhara inquieta o filho, e logo disfarçara, me respondendo com firmeza exagerada:

— Esses brinquedos já estão muito sem interesse por aqui… (As duas moças trocavam olhares maliciosos lá no fundo da mesa, e Carlos, a esperança da família, com a liberdade de seus vinte e dois anos, olhava a mãe com um riso sem ruído, espalhado no rosto). Ela porém continuava firme: pastoril fica muito dispendioso, só as famílias é que faziam… antigamente. Hoje não fazem mais.

Percebi tudo. A tal de Maria Cuncau certamente não era “família” e não podia entrar na conversa. Eu mesmo, com a maior naturalidade, fui desviando a prosa, falando em bumba meu boi, cocos, € outros assuntos que me vinham agora apenas um pouco encurtados pela preocupação de disfarçar. Mas o senhor do engenho, com o seu admirável, tão nobre quanto antidiluviano cavanhaque, até ali impassível à indiscrição do menino, se atravessou na minha fala, confirmando que eu deveria estar perfeitamente à vontade no engenho, que os meus estudos haviam naturalmente de me prender noites fora de casa, escutando os “coqueiros”, que eu agisse com toda a liberdade, o Carlos havia de me acompanhar. Tudo sussurrado com lentidão e uma solicitude suavíssima que me comoveu: Mas agora, com exceção do velho, o mal-estar se tornara geral. A alusão era sensível e eu mesmo estava quase estarrecido, se posso me exprimir assim. Por certo que a Maria Cuncau era pessoa de importância naquela família, não podia imaginar o que, mas garantidamente não seria apenas alguma mulher perdida, que causasse desarranjo tamanho naquele ambiente.

Mas foi deslizantemente lógico todos se levantarem pois que o almoço acabara, e eu senti dever uma carícia à sra. dona Ismália, que não podia mais evitar um certo abatimento naquele seu mutismo de olhos baixos. Creio que fui bastante convincente, no tom filial que pus na voz pra lhe elogiar os maravilhosos pitus, porque ela me sorriu, e nasceu entre nós um desejo de acarinhar, bem que senti. Não havia dúvida: Maria Cuncau devia ser uma tara daquela família, e eu me amaldiçoava de ter falado em pastoris. Mas era impossível um carinho entre mim e a dona da casa, apenas conhecidos de três horas; e enquanto o Carlos ia ver se os cavalos estavam prontos para o nosso passeio aos partidos de cana, fiquei dizendo coisas meio ingênuas, meio filiais à sra. dona Ismália, jurando no íntimo que não iria ao Pastoril da Maria Cuncau. E como num momento as duas moças, ajudando a criadinha a tirar a mesa, se acharam ausentes, não resisti mais, beijei a mão da sra. dona Ismália. E fugi para o terraço, lhe facilitando
esconder as duas lágrimas de uma infelicidade que eu não tinha mais direito de imaginar qual.

O senhor do engenho examinava os arreios do meu cavalo. Lhe fiz um aceno de alegria e lá partimos, no arranco dos animais fortes, eu, o Carlos, e mais o Astrogildo num petiço atarracado e alegre que nem ele. A mocidade vence fácil os mal-estares. O Astrogildo estava felicíssimo, no orgulho vitorioso de ensinar o homem do sul, mostrando o que era boi, o que era carnaúba; e das próprias palavras do mano, Carlos tirava assunto pra mais verdadeiros esclarecimentos, Maria Cuncau ficara pra trás, totalmente esquecida.

Foram três dias admiráveis, passeios, noites atravessadas até quasi o “nascer da bela aurora”, como dizia a toada, na conversa e na escuta dos cantadores da zona, até que chegou o dia da Festa. E logo a imagem da Maria Cuncau, cuidadosamente escondida aqueles dias, se impôs violentamente ao meu desejo. Eu tinha que ir ver o Pastoril de Maria Cuncau. O diabo era o Carlos que não me largava, e embora já estivéssemos amigos íntimos e eu sabedor de todas as suas aventuras na zona e farras no Recife, não tinha coragem de tocar no assunto nem meios pra me desvencilhar do rapaz. Nas minhas conversas com os empregados € cantadores bem que me viera uma vontadinha de perguntar quem era essa Maria Cuncau, mas si eu me prometera não ir ao Pastoril da Maria Cuncau! por que perguntar!… Tinha certeza que ela não me interessava mais, até que com a chegada da Festa, ela se impusera como uma necessidade fatal. Bem que me sentia ridículo, mas não podia comigo.

Foi o próprio Carlos quem tocou no assunto. Delineando o nosso programa da noite, com a maior naturalidade deste mundo, me falou que depois do Bumba que viria dançar de-tardinha na frente da casa-grande, daríamos um giro pelas rodas de coco, fazendo hora pra irmos ver o Pastoril da Maria Cuncau. Olhei-o e ele estava simples, como se não houvesse nada. Mas havia. Então falei com minha autoridade de mais velho:

— Olhe, Carlos, eu não desejava ir a esse pastoril. Me sinto muito grato à sua gente que está me tratando como não se trata um filho, e faço questão de não desagradar a… a ninguém.

Ele fez um gesto rápido de impaciência:

— Não há nada! isso é bobagem de mamãe!… Maria Cuncau parece que… Depois ninguém precisa saber de nada, nós voltamos todos os dias tarde da noite, não voltamos?… Vamos só ver, quem sabe si lhe interessa… Maria Cuncau é uma velha já, mora atrás da “rua”, num mocambo, coitada…

E veio a noitinha com todas as suas maravilhas do Nordeste. Era uma noite imensa, muito seca e morna, lenta, com aquele vaguíssimo ar de tristeza das noites nordestinas. O bumba meu boi, propositalmente encurtado pra não prender muito a gente da casa-grande, terminara lá pela meia-noite. A sra. dona Ismália se recolhera mais as filhas e a raiva do Astrogildo que teimava em nos acompanhar. O dono da casa desde muito que dormia, indiferente àquelas troças em que, como lhe escapara numa conversa, se divertira bem na mocidade, Retirado o grande lampião do
terraço, estávamos sós, Carlos e eu. E a imensa noite. O pessoal do engenho se espalhara. Os ruídos musicais se alastravam no ar imóvel. Já desaparecera nalguma volta longe do caminho, o rancho do Boi que demandava a rua, onde ia dançar de novo o seu bailado até o raiar do dia. Um “chama” roncava longíssimo, talvez nalgum engenho vizinho, nalguma roda de coco. As luzes se acendiam espalhadas como estrelas, eram os moradores chegando em suas casas pobres. E de repente, lá para os lados do açude onde o massapê jazia enterrado mais de dois metros no areião, desde a última cheia, depois de uns ritmos debulhados de ganzá, uma voz quente e aberta, subira noite em fora, iniciando um coco bom de sapatear.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Era sublime de grandeza. A melancolia da toada, viva e ardente, mas guardando um significado íntimo, misterioso, quasi trágico de desolação, casava bem com a meiga tristeza da noite.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

E as risadas feriam o ar, os gritos, o coco pegara logo animadíssimo, aquela gente dançava, sapateava na dança, alegríssima, 0 coro ganhava amplidão no entusiasmo, as estrelas rutilavam quasi sonoras, o ar morno era quasi sensual, tecido de cheiros profundos. E era estranhíssimo. Tudo cantava, Cristo nascia em Belém, se namorava, se ria, se dançava, a noite boa, o tempo farto, o ano bom de inverno, vibrava uma alegria enorme, uma alegria sonora, mas em que havia um quê de intensamente triste. E um solista espevitado, com uma voz lancinante, própria de aboiador, fuzilava sozinho, dilacerando o coro, vencendo os ares, dominando a noite:

Vô m'imbora, vô m'imbora
Pá Paraíba do Norte!...

E o coro, em sua humanidade mais serena:

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Nós caminhávamos em silêncio, buscando o Pastoril e Maria Cuncau. Minha decisão já se tornara muito firme pra que eu sentisse qualquer espécie de remorso, havia de ver a Maria Cuncau. E assim liberto, eu me entregava apenas, com delícias inesquecíveis, ao mistério, à grandeza, às contradições insolúveis daquela noite imensa, ao mesmo tempo alegre e triste, era sublime, E o próprio Carlos, mais acostumado e bem mais insensível, estava calado. Marchávamos rápido, entregues ao fascínio daquela noite da Festa.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua terra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Maria Cuncau, assim que nos vira, empalidecera muito sob o vermelho das faces, obtido com tinta de papel de seda. Mas logo se recobrara, erguera o rosto, sacudindo pra trás a violenta cabeleira agrisalhada, ainda voluptuosa, e nos olhava com desafio. Rebolava agora com mais cuidado, fazendo um esforço infinito pra desencantar do fundo da memória, as graças antigas que a tinham celebrizado em moça. E era sórdido. Não se podia siquer supor a sua beleza falada, não ficara nada. A não ser aquele vestido de lantejoulas rutilantes, que pendiam, num ruidinho escarninho, enquanto Maria Cuncau malhava os ossos curtos, frágil, baixinha, olhos rubescentes de alcoolizada, naquele reboleio de pastora.

Quando dei tento de mim, é que a coisa acabara, com uns fracos aplausos em torno e as risadas altas dos homens. As pastoras se dispersavam na sala, algumas vinham se esconder no sereno, passando por nós de olhos baixos, encabuladíssimas. Carlos, bastante inconsciente, examinava sempre os manejos da Diana moça, na sua feroz animalidade de rapaz. Mas eu lhe tocava já no braço, queria partir, me livrar daquele ambiente sem nenhum interesse folelórico, e que me repugnava pela sordidez. Maria Cuncau, que fingindo conversar com as mulheres da sala,
enxugava muito a cara, nos olhando de soslaio, adivinhou minha intenção. Se dirigiu francamente pra nós e convidou, meio apressada mas sem nenhuma timidez, com decisão:

— Os senhores não querem adorar a lapinha!…

Decerto era nisso que todas aquelas mulheres pensavam porque num segundo vi todas as pastoras me olhando na sala e as que estavam de fora se chegando à janelinha pra me examinar, Percebi logo a finalidade do convite, quando cheguei junto da lapinha, enquanto o Carlos se atrasava um pouco, tirando um naco desajeitado de conversa com a Diana. Os outros assistentes também desfilavam junto ao presépio, parece que rezavam alguma coisa, e alguns deixavam escorregar qualquer níquel num pires colocado bem na frente do Menino-Deus. Fingi contemplar
com muito respeito a lapinha, mas na verdade estava discutindo dentro comigo quanto daria. Já não fora pouco o que o rancho do Boi me levara, e aliás as pessoas da casa-grande estavam sempre me censurando pelo muito que eu dava aos meus cantadores. Puxei a carteira, decidido a deixar uns vinte milréis no pires. Seria uma fortuna entre aqueles níqueis magriços em que dominava uma única rodela mais volumosa de cruzado. Porém, se ansiava por sair dali, estava também muito comovido com toda aquela miséria, miséria de tudo. A Maria Cuncau então me dava
uma piedade tão pesada, que já me seria difícil especificar bem si era comiseração si era horror.

Sinto é maltratar os meus leitores. Este conto que no princípio parecia preparar algum drama forte, e já está se tornando apenas uma esperança de dramazinho miserável, vai acabar em plena mesquinharia. Quando puxei a carteira, decidido a dar vinte mil-réis, a piedade roncou forte, tirei com decisão a única nota de cinquenta que me restava da noite e pus no pires. Todos viram muito bem que era uma nota, e eu já me voltava pra partir, encontrando o olho de censura que o Carlos me enviava. O mal foi um mulatinho esperto, não sei si sabia ler ou conhecia dinheiro, que estava junto de mim, me devorando os gestos, extasiado. Não pôde se conter, casquinou uma risada estrídula de comoção assombrada, e apenas conseguiu ainda agarrar com a mão fechada a enorme palavra-feia que esteve pra soltar, gritou:

— Pó… cincoentão!

Foi um silêncio de morte. Eu estava desapontadíssimo, ninguém me via, ninguém se movia, as pastoras todas estateladas, com os olhos fixos no pires. Carlos continuava parado, esquecido. da Diana que também não o via mais, olhava o pires. E ele sacudia de leve o rosto para os lados, me censurando.

— Vamos, Carlos.

E nos dirigimos para a porta da saída. Mas nisto, aquela pastora do cordão encarnado que estava mais próxima da lapinha, num pincho agílimo (devia estar inteiramente desvairada pois lhe seria impossível fugir), abrindo caminho no círculo apertado, alcançou o pires, agarrou a nota, enquanto as outras moedinhas rolavam no chão de terra socada. Mas Maria Cuncau fora tão rápida como a outra, encontrara de peito com a fugitiva, foi um baque surdo, e a luta muda, odienta, cheia de guinchos entre as duas pastoras enfurecidas. Nós nos voltáramos aturdidos com o caso e a multidão devorava a briga das pastoras, também pasma, incapaz de socorrer ninguém. E aqueles braços se batiam,
se agarravam, se entrelaçavam numa briga chué, entre bufidos selvagens, até que Maria Cuncau, mordendo de fazer sangue o punho da outra, lhe agarrou a nota, enfiou-a fundo no seio, por baixo da faixa azul apertada. A outra agora chorava, entre borbotões de insultos horríveis.

— É da lapinha! que Maria Cuncau grunhia, se encostando na mesa, esfalfada, É da lapinha!

Os homens já se riam outra vez com caçoadas ofensivas, e as pastoras se ajuntando, faziam dois grupos em torno das briguentas, consolando, buscando consertar as coisas.

Partimos apressados, sem nenhuma vontade ainda de rir nem conversar, descendo por entre as árvores, com dificuldade, desacostumados à escureza da noite. Já estávamos quasi no fim da descida, quando um ruído arrastado de animal em disparada, cresceu por trás de nós. Nem bem eu me voltara que duas mãos frias me agarraram pela mão, pelo braço, me puxavam, era Maria Cuncau. Baixinha, magríssima, naquele esbulho grotesco de luz das lantejoulas, cabeça que era um ninho de cabelos desgrenhados…

— Moço! ôh moço!… me deixa alguma nota pra mim também, aquela é da lapinha!… eu preciso mais! aquela é da lapinha, moço!

.Aí, Carlos perdeu a paciência, Agarrou Maria Cuncau com aspereza, maltratando com vontade, procurando me libertar dela:

— Deixe de ser sem-vergonha, Maria Cuncau! Vocês repartem o dinheiro, que história é essa de dinheiro pra lapinha! largue o homem, Maria Cuncau!

— Moço! me dá uma nota pra… me largue, seu Carlos!

E agora se estabelecia uma verdadeira luta entre ela e o Carlos fortíssimo, que facilmente me desvencilhara dela.

— Carlos, não maltrate essa coitada…

— Coitada não! me largue, seu Carlos, eu mordo!…

— Vá embora, Maria Cuncau!

— Olha, esta é pra…

— Não! não dê mais não! faço questão que…

Porém Maria Cuncau já arrancara o dinheiro da minha mão e num salto pra trás se distanciara de nós, olhando a nota. Teve um risinho de desprezo:

— Vôte! só mais vinte!…

E então se aprumou com orgulho, enquanto alisava de novo no corpo o vestido desalinhado. Olhou bem fria o meu companheiro:

— Dê lembrança a seu pai.

Desatou a correr para o mocambo.

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