Três poemas de Robert Frost

Pensar em Robert Frost no Brasil é, antes de qualquer outra coisa, pensar na ausência dos poemas de Robert Frost nas estantes das livrarias, mesmo porque a vasta obra desse importante nome da poesia estadunidense encontrou pouquíssimo lugar entre as edições em português, chegando aos leitores brasileiros apenas como mais um nome dentro de algumas antologias. Acredito eu que isso esteja relacionado a dois motivos principais: uma associação feita entre a figura de Frost e um discurso conservador (fortemente combatido no meio intelectual do Brasil) e também o desinteresse editorial por um escritor já distante de nosso tempo e que é muito pouco falado em terras brasileiras, diferente de seus conterrâneos Ezra Pound, Walt Whitman ou Emily Dickinson.

Da rápida pesquisa que fiz aqui na internet, descobri que, no Brasil, a única publicação em livro que contempla com maior compromisso a obra desse poeta é Poemas escolhidos de Robert Frost (1969), com tradução para o português de Marisa Murray. O trabalho de Murray é uma joia ante a dívida com Frost, mas traz, entre alguns acertos, problemas na tradução, sejam ligados à linguagem, ou mesmo à atmosfera construída pelos poemas tão particulares. De qualquer maneira, à parte Poemas escolhidos (que não foi reeditado desde 69), não existe publicação em livro que seja exclusiva do autor.

Ainda assim, existem trabalhos acadêmicos ligados à obra de Frost, e dedico atenção especial para a dissertação de Ana Cristina Gambarotto, defendida em 2016, na qual ela disponibiliza a tradução integral de A Boy’s Will (1913), primeiro livro do poeta norte-americano:

Depois desse rápido desabafo, longe de dar conta da tarefa árdua que é traduzir a obra completa de Frost, trago para você três poemas do autor, traduzidos para o português por pesquisadores diferentes. Os poemas Into my own, Stopping by woods on a snowy evening e Mending wall foram pinçados da obra do poeta, escolhidos apenas pelo gosto pessoal desse redator que vos escreve. De qualquer maneira, eles demonstram o rigor com que Frost desenvolveu sua obra, compondo versos de métrica exemplar e consonante com nomes importantes da literatura ocidental, a exemplo de Omar Khayyam. Também, com o terceiro dos poemas, já fica claro o domínio que o autor de North of Boston (1914) tem tanto da linguagem, como da liberdade métrica.

Espero que as palavras precisas do poeta ianque despertem em você a mesma curiosidade que despertaram em mim, a ponto de procurar novos poemas e, quem sabe, uma edição completa de tão belos versos.


Poemas de Robert Frost

INTO MY OWN
(Dentro de mim)

O meu desejo é que essa selva escura,
tão fixa que a brisa mal a mistura,
não fosse a mera máscara das trevas,
mas se estendesse até o fim das eras.

E no dia em que não me deterão,
fugirei furtivo na vastidão,
sem temer jamais encontrar clareira,
ou estrada onde a roda deita a areia.

Não vejo motivos para retornar,
ou para que os saudosos ao meu lugar
não me sigam, nem me alcancem a trilha
curiosos se inda os tenho em alta estima.

Eles não me encontrarão diferente –
só mais seguro do que trago em mente.

Tradução: Ana Cristina Gambarotto

STOPPING BY WOODS ON A SNOWY EVENING
(Parando na mata numa noite de neve)

O dono dessa mata que vejo,
acho que mora além, no vilarejo,
e não me verá aqui parado
na mata, olhando a neve em cortejo.

Meu cavalo acha estranho e inusitado
parar assim sem casa ao lado
entre o lago duro e o desterro
no meio do escuro mais fechado.

Ele balança o seu cincerro
e me pergunta se há algum erro.
Só se ouve o vento a zunir
E os flocos caindo num aterro.

A mata escura e fundo a me sorrir,
mas eu tenho promessas a cumprir,
e muitas milhas antes de dormir,
e muitas milhas antes de dormir.

Tradução: Marcus Vinicius de Freitas

MENDING WALL
(O Conserto do Muro)

Existe alguma coisa que detesta os muros,
Sob eles faz inchar a terra congelada,
Ao sol derrama as pedras superiores,
E rasga brechas em que dois passam de frente.
A obra dos caçadores é outra coisa:
Tenho seguido as suas pegadas, trabalhando
Onde não deixam pedra sobre pedra
Até espantarem o coelho de sua toca
Para o agrado dos cães sempre a latir. Tais brechas
A que me referi, ninguém viu serem feitas,
Nem ouviu serem feitas, mas na primavera
Eu as encontro lá, no tempo dos consertos.
Aviso meu vizinho lá detrás do monte,
E marcamos um dia para vistoriar
E levantar de novo o muro entre nós dois.
E vamos juntos, com o muro entre nós dois.
Cada um repõe o que rolou para seu lado.
Umas pedras são pães e outras parecem bolas,
E só por mágica as mantemos no lugar:
“Até que nos viremos, fiquem onde estão!”
Os dedos criam calos ao lidar com elas.
Com um de cada lado, isto não passa
De outro jogo ao ar livre. E nada mais talvez:
Desnecessário é o muro onde se encontra:
Além há um pinheiral e aqui há macieiras.
As macieiras, digo-lhe, não vão passar
E comer seus pinhões. Mas ele secamente
Responde: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.
A primavera é a minha malvadeza, e penso
Ser capaz de enfiar-lhe ideias na cabeça:
“Mas por que fazem bons vizinhos? Não seria
Apenas onde há gado? E aqui não temos gado.
Antes de erguer um muro, sempre me pergunto
O que busco reter e o que busco deter
E a quem ofenderia, se não o fizesse.
Existe alguma coisa que detesta os muros,
E os quer ver arrasados!” Dir-lhe-ia que os “elfos”;
Mas não são elfos propriamente, e eu gostaria
Que ele mesmo o dissesse. E observo como traz
Firmemente uma pedra em cada mão, pelo alto,
Igual a um homem das cavernas bem armado.
Caminha pelas trevas, me parece,
Que não são as dos bosques ou das sombras de árvores,
E, sem nunca ir além do dito de seu pai,
Satisfeito de nele haver pensado tanto,
Repete: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.

Tradução: Paulo Vizioli


Robert Lee Frost

Robert Frost foi um poeta estadunidense que influenciou gerações de escritores posteriores a ele, considerado, portanto, como um dos principais nomes do modernismo na poesia anglo-americana. Tem entre suas obras mais conceituadas A Boy’s Will (1913) e North of Boston (1914), reconhecidas pelo bom trato de temas ligados à natureza e aos elementos que a compõem e a percepção do mundo moderno pelos olhos de um sujeito lirico fragmentado – traços que o poeta preserva até mesmo em suas últimas publicações. Além de poesias, Frost também escreveu textos para teatro.

Além dos três poemas citados acima, nós também fizemos, aqui no Duras Letras, uma tradução e uma análise do poema “The Pasture”, de Robert Frost, poema esse que abre a coletânea de textos do seu segundo livro – North of Boston –, além de ter sido escolhido como epígrafe para a obra completa do autor, publicada em 1964.

Conto – “Um homem célebre”, de Machado de Assis

– Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe meu modo, mas… é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875… Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

– Diga, minha senhora.
– É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

– Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

– Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

– A bengala.
– Mas parece que hoje chove.
– Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
– Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

– Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

– Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, – ou por alusão a algum sucesso do dia, – ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

– Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.
– Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

– E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil…

– As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

– Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
– Vai casar com uma viúva.
– Velha?
– Vinte e sete anos.
– Bonita?
– Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, – mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

– Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

– Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas… Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação… Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, – uma clara e fresca manhã de maio de 1876, – eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

– Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

– Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
– Nada.
– Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

– Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
– Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

– Adeus.
– Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Referência

ASSIS, Machado de. Um homem célebre. In: Várias Histórias. W. M. Jackson Inc Editores, 1946.

* Este célebre conto de um de nossos maiores autores é utilizado frequentemente por pesquisadores que associam a história da literatura com a história da canção brasileira. O texto que talvez mais se detenha sobre esse relação é Machado Maxixe, de José Miguel Wisnik, que estuda o “caso Pestana”.

Vanguardas europeias e poesia modernista no Brasil em dois poemas

Dentre as inúmeras raízes que a cultura brasileira possui está incluída a europeia. Desde o processo de colonização até as atualizações nos padrões políticos e econômicos contemporâneos, somos atravessador por valores que encontram seu berço no continente europeu. Evidentemente, por ser uma relação tão próxima, todos os campos do saber são afetados, o que explica a similaridade entre os primeiros movimentos modernistas em território nacional com a chamada Era dos Manifestos da Europa.

Nos poemas Tietê (1922), de Mário de Andrade, e Cartão-Postal (1930), de Murilo Mendes. encontramos alguns desses pontos em comum com a arte vanguardista europeia do começo do Século XX:

Tietê

Era uma vez um rio...
Porém os Borba-Gatos dos ultra-nacionais
esperiamente!

Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição…
E as gigânteas!
As embarcações singravam rumo do abismal
Descaminho…

Arroubos… Lutas… Setas… Cantigas… Povoar!…
Ritmos de Brecheret!… E a santificação da morte!…
Foram-se os ouros!… E o hoje das turmalinas!…

– Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso?
– Io! Mai!… (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare com la Ruth.

(Mário de Andrade. In: Pauliceia desvairada, 1922)

Cartão-Postal

Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

(Murilo Mendes. In: Poemas, 1930)

Em ambos os poemas, a linguagem nominal prevalece, traço que é facilmente localizado no segundo verso do texto de Andrade e nos três primeiros do de Mendes: sentenças compostas por sintagmas sem verbo aparente. Para elaborá-las os autores lançam mão das formas nominais dos verbos, como o particípio (pensativo) e o gerúndio (corando), e de neologismos e advérbios (esperiamente). Tais recursos se assemelham aos utilizados pelos expressionistas, os quais faziam poemas com protagonismo nominal no sintagmas.

No poema de Mário encontramos também traços comuns ao futurismo: além da desconstrução da sintaxe tradicional, na terceira estrofe deparamo-nos com uma glorificação (ou constatação positiva) da morte (mesmo que de forma irônica), lugar comum da poesia futurista. Há, além disso, a ausência de um ‘sujeito do poema’ psicologizado. Ou seja, a relação de subjetivação do mundo se dá de forma diferente, beirando a forma literária épica. Esse movimento permite a simultaneidade do passado e do presente, atravessados pelo evento histórico (colonialismo) que é narrado.

Vale lembrar que Mário, em seu primeiro livro de poemas pós-22, mantém uma relação de proximidade com o Futurismo de Marinetti, o que foi sugerido em comentário de Oswald de Andrade sobre o livro, mas refutado no Prefácio Interessantíssimo, que abre Pauliceia Desvairada, pelo próprio Mário de Andrade.

No poema de Murilo Mendes as referências às vanguardas europeias também são claras. Além de também apresentar uma linguagem predominantemente nominal, há uma dissolução do sujeito psicológico do poema em um sujeito mundano, o que se soma à preferência por imagens cotidianas e não sublimes. Ainda que ao fim do poema haja uma imagem, digamos, belíssima, ele a emparelha com um gesto qualquer: o da menina que deita a cabeça na almofada. Essa composição e inter-relação entre imagens lembra a técnica de colagem utilizada pelos cubistas.

A crítica feita à tradição romântica – que europeíza e glorifica o colonialismo como forma de aprendizado e de assimilação da ‘cultura legitimamente brasileira’ – é identificada com maior clareza no poema Cartão-postal, pois aparece marcadamente no quarto verso. Contudo, isso não significa que Tietê não critique o colonialismo: o processo de apropriação do léxico ameríndio, começado pelos poetas românticos, foi preservado por Mário, que diferente daqueles não romantiza o processo colonial.

Apesar das similaridades com as correntes europeias, ambos os poetas deixam marcas de uma identidade moderna nacional, como as já citadas referências à tradição romântica brasileira e as marcas de localidade. Outra particularidade que deve ser ressaltada é justamente a diferença que estes poemas possuem entre si, demonstrando que não há de fato um alinhamento total com parâmetros pré-estabelecidos pelos movimentos modernistas da Semana de 1922 ou do chamado Modernismo de Primeira Fase.

Tanto Mário como Murilo transbordaram os parâmetros técnicos do qual se apropriaram para criar uma obra moderna, o que entra em sintonia com um comentário de Nuno Ramos, poeta, pintor etc. contemporâneo, feito na conferência Conversando com Nuno Ramos, do 50º Festival de Inverno da UFMG. Nele o artista diz que as imposições formais das escolas estéticas acabam por se render nas mãos do amadorismo e do improviso dos brasileiros, sempre em busca de uma “brasilidade” a partir desse lugar estranho.

O que a Música Popular Brasileira tem a ver com literatura?

Confira nossa série de vídeos sobre Literatura e MPB no YouTube.

Abertura

Qual é a música mais antiga que você conhece? E o poema? Você sabia que o Epitáfio de Seikilos é uma composição grega, gravada em uma lápide construída há mais ou menos 2000 anos atrás? Ele é considerado uma das canções mais antigas do mundo e, curiosamente, é entendido tanto quanto música, bem como literatura.

Essa caracterização só é possível porque música e literatura estão, desde os tempos mais antigos, ligadas entre si. Se pegarmos, por exemplo, o caso dos poemas épicos de Homero ou as cantigas medievais, observamos que a relação entre uma melodia e uma letra é antiga e não exclusiva de nossos tempos modernos e contemporâneos. Na esteira dessa antiga tradição, criada pela soma de duas artes, é que se desenvolveu a muito custo a canção popular, tipo de composição que coloca em interdependência e harmonia a poesia e a música.

A proposta deste texto é apresentar para você três pontos de contato entre a música popular e a literatura. Evidentemente, as produções de canção ao redor do mundo remontam história tão distintas quanto antigas. Mas nos detenhamos no caso específico do Brasil!

Estudo

Primeiro movimento – histórias

Não cabe aqui fazer uma longa introdução à história da canção em terras brasileiras, basta saber que sua criação e desenvolvimento está intimamente ligada ao processo de modernização do país, acompanhando de perto a evolução das redes de comunicação, como o jornal, o rádio e a televisão. Mais importante que a historiografia musical em si, parece ser a convivência íntima entre letristas e poetas ao longo do século XX, alimentando reciprocamente seus campos de produção (lembro aqui o caso de destaque de Vinicius de Moraes, que migrou do poema impresso para a música popular e o poema falado) o que contribuiu para o desenvolvimento de uma história da canção comunicante com a história da literatura.

Eis uma primeira relação entre a Música Popular Brasileira e a literatura: suas histórias e produções interdisciplinares.

Musicalização do soneto São demais os perigos desta vida

Neste texto, ainda que limite a descrição histórica aos dois parágrafos anteriores, deixarei a indicação de alguns trabalhos que não podem faltar em sua biblioteca sobre a canção popular do Brasil.

Caso você procure uma abordagem mais histórico-social, os trabalhos de Franklin Martins (à direita), de Jairo Severiano (Uma história da Música Popular Brasileira, 2008) e de José Ramos Tinhorão são indispensáveis. Eles nos contam, de forma minuciosa, a trajetória e as mutações pelas quais a canção passou, até que encontrasse formas consolidadas: o samba, a canção de protesto, o sertanejo etc.

Para os fãs de análises literárias e de flertes entre teoria da literatura e música popular, temos autores como Affonso Romano de Sant’Anna, com seu livro Música popular e moderna poesia brasileira, de título autoexplicativo, e também temos Augusto de Campos, célebre poeta e crítico brasileiro, que, em seu Balanço da bossa e outras bossas (1974), tece relações muito perspicazes sobre a canção, a literatura e os movimentos de vanguarda.

Evidentemente, existem outras perspectivas tão instigantes como as mencionadas acima. É o caso da abordagem intermidiática, à qual nos apresenta a pesquisadora Solange Ribeiro, no texto Canção: letra x estrutura musical; e da semiótica da canção, que tem Luiz Tatit como seu patrono.

Cada um desses percursos nos oferece uma gama de possibilidades para interpretar a canção brasileira e, pensando que a proposta deste texto é aproximar a MPB e a literatura, eu o incluo na segunda das chaves de pesquisa que mencionei acima: uma abordagem literária da canção.

Segundo movimento – Letra de canção é poema?

Com o constante intercâmbio de leituras entre os letristas e os grandes poetas da literatura moderna no Brasil, as letras de canção passaram a ser analisadas por alguns pensadores a partir de recursos que antes eram utilizados exclusivamente para o estudo literário. Esse tipo de análise pode ou não incluir a melodia da canção, e essa opção é o primeiro passo para responder à pergunta: letra de canção é poema? E aproximar, outra vez, os dois grandes campos de estudos, musical e literário.

Se você considerar a integração entre letra e melodia, a resposta para a pergunta certamente é não. Isso se dá, porque uma nova camada de significados e linguagens entra na análise, tornando necessária a utilização de uma abordagem como a da semiótica da canção, eficaz na construção de sentidos suscitada pela integração entre o que é falado e o que é tocado. No entanto, se optarmos pelo caso contrário, separada a melodia das letras, essa pode muito bem vir a ser chamada de poema. E, abaixo, demonstrarei o porquê.

Em termos de literatura, a crítica construiu, ao longo de muitos anos de tradição e crítica, um repertório de conceitos para análise, em que estão presentes tanto elementos técnicos de composição e classificações de acordo com a estrutura (sonetos e redondilhas, por exemplo); bem como elementos de análise do sentido – os lexemas, as metáforas, as imagens – remoídos e talhados pelas incontáveis poéticas ao longo dos séculos.

A título de confirmar a validade de uma leitura das letras a partir dos procedimentos mencionados acima, vejamos como eles aparecem em um pequeno trecho, retirado da clássica canção Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Trata-se dos versos finais da canção:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Começando por uma abordagem formal, identificamos já de saída um grupo de rimas – em -ÃO e em -IDA – e uma estrutura fixa, que se repete em todos os versos: decassílabos, construídos com a primazia de um parnasiano, com marcação nas sílabas 3-6-8-10, podendo ser caracterizado como metro martelo, típico de cantigas e cordéis:

mas – a – LU – a – fu – RAN – do – NOS – so – ZIN (co)
sal – pi – CA – va – d’es – TRE – las – NOS – so – CHÃO

Além disso, a letra presenteia o leitor/ouvinte com um enjambement – corte de um verso para o outro – belíssimo nas duas estrofes finais:

sem saber que a ventura dessa vida
é a cabrocha, o luar e o violão.

Já no que diz respeito à semântica do texto, temos a metáfora principal, que inclusive dá seu título, chão de estrelas. É uma imagem extremamente inovadora e muito rica, que, além de propor a equivalência entre o universo popular do morro e o erudito das escolas literárias – no qual uma cena própria à natureza e ao bucolismo irrompe em um barracão –, concede ainda mais força à outra personagem da canção: a mulher. Retratada pela voz principal como pomba-rola que voou, essa antagonista pisa nos astros distraidamente, gesto que inclusive alcança seu admirador, graças à polissemia da palavra “estrela”, que também é utilizada como adjetivo para artistas, sinônimo de “famoso”, “popular” etc.

Tu pisavas nos astros, distraída

A partir de uma análise que leva em conta os dois aspectos – formal e semântico – para a leitura das letras de canção, observamos como os elementos constitutivos das letras são muito similares, para não dizer idênticos, àqueles próprios à poesia impressa. Só que, além dessa aproximação por via das técnicas, temos também um similaridade de tradições e de referências, o que nos leva ao próximo tópico.

Variação

Terceiro movimento – tradição e intertextos

A ideia de apropriação das formas e imagens é comum e natural para os desdobramentos de qualquer arte e, sendo tão próximas na forma e na técnica, as correntes literárias e os ciclos de canção com toda certeza criaram pontos de comunicação.

Um artista que faz frequentemente deslocamentos da tradição literária para a musical em suas canções é Chico Buarque de Holanda. Em vários dos álbuns, e até mesmo em suas composições para o teatro, encontramos letras que são traduções de outros textos e melodias. É o caso da composição de Joe Darion e Mitch Leigh, The imposible dream, para a qual o compositor brasileiro, junto de Ruy Guerra, propõe uma tradução curiosa.

Sendo também escritor e um grande leitor dos poetas modernos, Chico Buarque, para a tradução feita com Ruy Guerra, insere nos versos finais uma imagem que pode ser lida como referência a um célebre poema de Carlos Drummond de Andrade:

E assim, seja lá como for
vai ter fim a infinita aflição
e o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão.

A imagem da flor que brota do chão entra em sintonia direta com aquela que o poeta itabirano utiliza “A flor e a náusea”, de A Rosa do Povo (1945):

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Encontramos um caso parecido de referência sutil na canção “Disparada”, de Geraldo Vandré. Se trata de uma intertextualidade ou menção velada à umas das passagens mais célebres da peça Hamlet, dita pelo próprio príncipe da Dinamarca.

The time is out of joint. Oh, cursed spite,
that ever i was born to set it right

Muitos tradutores de Shakespeare encararam com dificuldade a complexidade e a dimensão que os versos do dramaturgo inglês suscitam. Na tradução de Millôr Fernandes, por exemplo, temos o seguinte:

Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina
Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!

Ele consegue preservar o sentido principal da frase e a rima entre os versos passa a ser interna e toante, entre desnorteado e consertá-lo. No caso da letra de Vandré, a solução aparece de forma distinta e é particularmente encantadora a simplicidade com que ele a constrói:

E a morte, o destino, tudo,
a morte e o destino, tudo
estava fora do lugar,
eu vivo pra consertar

Desdobrado em quatro versos, a rima é rica, como no caso shakespeariano, e está nos dois últimos. Intencional ou não, há claramente uma sintonia com as palavras de Hamlet, recontextualizada e adaptada para a jornada retirante que a canção expressa.

Além dessas referências pontuais, existem ainda aquelas que são diretas, como a canção Lobo bobo, interpretada por João Gilberto em 1959; ou mesmo a Terceira margem do rio, de Milton Nascimento e Caetano Veloso, canções que se apropriam diretamente de um texto literário e lhe concedem nova roupagem.

Nos exemplos acima, observamos com nitidez o alinhamento entre a música popular e a literatura, o que se dá, nesse caso, por vias da referência e da intertextualidade. Gostaria de acrescentar, ainda, que há também a constituição de uma tradição interna na canção, na qual as referências são próprias ao seu universo:

Lembremo-nos rapidamente dos seguintes versos de Chão de estrelas:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão

Agora, vejamos outra composição, Como dois e dois, escrita por Caetano Veloso, e consagrada na voz de Roberto Carlos:

A mesma porta sem trinco
O mesmo teto,
E a mesma lua a furar
Nosso zinco

Fugindo da estrutura fixa de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, e se apoiando em versos escritos com maior liberdade métrica e rítmica, essa repetição da imagem da lua furando o teto de zinco aponta para a formação de um repertório próprio à canção popular. Esse diálogo se intensificou com o avançar do século XX e com a consolidação dos meios de distribuição e gravação das canções.

Cabe lembrar que, se de um lado temos esse movimento no qual a canção vai ao encontro da literatura, do outro a literatura vai ao encontro da canção.

Machado de Assis é um bom exemplo de literato que se interessava pelo meio popular e mais especificamente pelo ritmo e musicalidade populares. O conto Um homem célebre, objeto de estudo de José Miguel Wisnik, no livro Machado Maxixe, está entre as narrativas do autor que apresentam claramente esse interesse. Também, um escritor contemporâneo – Luiz Antônio de Assis Brasil – faz essas aproximações entre música e literatura (apesar de as letras de canção não serem o destaque em seus textos).

É preciso dizer, ainda, que, no Brasil, as duas artes já participaram abertamente de um mesmo movimento estético: o tropicalismo, que muito contribuiu para a criação de um cenário rico tanto teoricamente quanto artisticamente, e isso beneficiou ambas as artes.

Fuga

Por fim, compartilhando os métodos e lançando mão de tantas referências e minúcias, as letras de canção são um objeto instigante para a análise literária e esse olhar analítico (para ler poemas, principalmente) concede a elas uma roupagem nova, um novo olhar, que contribui para a expansão do conceito de literatura e de poesia e para uma melhor compreensão dos traços específicos que separam e aproximam as duas artes.

E que tal curtir uma playlist que conta uma história do Brasil através da música?

“Infância”, de Graciliano Ramos: memória e transculturação narrativa

Texto de apresentação por Gabriel Reis Martins
Clique na imagem

A memória, com seus funcionamentos e seus mistérios, é um tema que atravessa não só inúmeras obras da filosofia desde a antiguidade, como também se faz presente nos mais variados escritos da literatura. Quem não se lembra, por exemplo, dos três calhamaços que compõem Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, obra que, para além de sua beleza, funda inúmeros procedimentos narrativos, principalmente ligados à rememoração?

Pois bem, nesta publicação, gostaríamos de trazer um artigo que faz luz justamente na dimensão literária da memória – e, mais especificamente, da memória na literatura brasileira –, procurando entender de que maneira os autores frequentemente preenchem as lacunas, efeito natural do tempo, de suas lembranças. O artigo foi escrito pelo pesquisador de literatura brasileira Alexandre Fonseca, que analisa a obra Infância, de Graciliano Ramos, a partir de percepções extraídas do próprio livro e de considerações feitas por seus críticos.

Nós do Duras Letras agradecemos ao pesquisador pela redação do artigo e esperamos que suas palavras possam contribuir com a leitura de vocês, como contribuiu para a nossa!

Para baixar o texto, clique no botão abaixo:

Repensando a sociedade com “Primeiro de Maio”, um conto de Mário de Andrade

O nome de Mário de Andrade (1893-1945) é tão corriqueiro e importante para a historiografia literária brasileira que dispensa apresentações longas. Autor do célebre Macunaíma e um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna, de 1922, Mário pode muito bem ser considerado uma das “antenas da raça” – expressão utilizada por Ezra Pound para descrever os grandes literatos – que perambulava pelas ruas de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.

Antenado não só ao cotidiano da grande cidade moderna, Mário também se mostrava um leitor assíduo das teorias e correntes filosóficas que tiveram seu germe no século XIX, destilando em suas obras conteúdos que se assemelham às ideias de inconsciente, de Freud, de classe, a partir do marxismo, e de linguagem, no sentido saussuriano. A coletânea Contos novos, publicada postumamente, em 1947, organizada por amigos do escritor, condensa muitos desses traços significativos que Mário assimilou ao longo de seus anos de pesquisa estética. A oralidade e a linguagem cinematográfica estão entre os aspectos estilísticos de escrita que o autor esmerava, diretamente relacionados às vanguardas europeias, principalmente o Futurismo, de Marinetti (1876-1944). Além disso, as narrativas estão estritamente relacionadas aos acontecimentos vivenciados pelos brasileiros daquele tempo. Qualquer um desses elementos pode ser identificado em um dos nove contos que compõem a obra, como veremos a seguir.

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Um bom exemplo desse olhar sobre a história e sobre as grandes revoluções filosóficas aparece no conto Primeiro de Maio, terceira estória do livro. Nesse breve escrito, o narrador acompanha a trajetória e pensamentos de 35, um trabalhador da Estação da Luz, que queria celebrar e havia de celebrar o Dia do Trabalhador. Primeiramente, cabe dizer sobre esse conto que é aliado aos traços estilísticos próprios de Mário de Andrade (como o uso de “si“, ao invés de “se” e “pra“, ao invés de “para”), que há nessa narrativa um alinhamento entre um corpo social, uma ideia de trabalhador como classe, e um corpo psíquico, os desejos individuais do protagonista.

Mas, de fato, os primeiros traços que chamam a atenção no conto são os nomes das personagens, que, obviamente e não por acaso, se resumem a números (35, 22 e 486), e o tempo diegético da narrativa, que representam uma jornada de trabalho convencional, começando não bem às seis da manhã e terminando pouco depois das dezessete.

(19)35 – Ano da proclamação do Dia do Trabalhador;
(19)22 – Ano de fundação do Partido Comunista Brasileiro;
D. lei nº 486, de 10 de junho de 1938: institucionaliza o feriado de Primeiro de Maio.

Já no significado desses nomes encontramos uma ideia que se fazia presente naquele tempo e que ainda hoje possui repercussões: o alinhamento político-ideológico entre o trabalhador e o movimento comunista, que encontra seu ápice ao fim da narrativa, como uma esperança de mudança frente a todos os acontecimentos daquele dia de primeiro de maio, frustrado: 35 ajuda 22, também um trabalhador da Estação da Luz, a carregar as malas e, detalhe importante, não há cobranças por parte daquele. É nesse ponto da estória que a violência do protagonista se dissolve em um simples “soco só de pândega” no camarada: aquele que antes queria “dar um soco num polícia”, arranjar um “turumbamba” a todo instante, agora apenas caía na gargalhada com o colega.

A forma utilizada pelo protagonista para se expressar é majoritariamente violenta. Tal violência exacerbada é em parte responsável pelas inúmeras contradições da narrativa, pois ao mesmo tempo que se quer queimar a igreja, lembra-se que fez primeira comunhão quando era criança. Além disso, as repressões que perpassam 35 são simpáticas às repressões dos desejos por parte das instituições, como os bancos que estão dispostos sob o sol e os policiais que mantêm sob vigília os trabalhadores no pátio.

Também, desde o início, Mário faz questão de marcar, a partir da agressividade, a rivalidade e raiva que o protagonista possui com as instâncias de poder: a polícia, os políticos, a igreja, e inclusive com os próprios trabalhadores, o que se manifesta em um sentimento de desconfiança com isso tudo e que advém, segundo o próprio personagem, da experiência (o que é irônico, pois ele possui apenas vinte anos).

Assim, mesmo a mídia, que tem um protagonismo forte na vida dos trabalhadores daquela época, e que também era um veículo de informação capital, não escapa da desconfiança de 35. Ele lê recorrentemente o jornal, que anuncia a união e a revolução, contudo sua leitura cria um conflito de interesses entre a classe e seus desejos:

O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Também aqui se pode ver mais uma vez expressa a divergência entre o indivíduo e sua consciência de pertencimento à classe operária, fora o fato de sua postura com o jornal mostrar ao leitor que 35 não sabe se se alinha com o valor de nação e esforço (comemorando o Dia do Trabalhador), ou com os “revolucionários”, que espalham motins pelo mundo afora e expressam sua indignação com qualquer que seja o ponto.

Participar das comemorações do primeiro de maio ou das revoltas internacionais?

Eis uma resposta que 35 não responde e mal entende o porquê. Ora 35 é reconhecido por si e pelos outros, como quando os colegas vêm até ele perguntar sobre as cerimônias de comemoração, ora ele se reconhece e é reconhecido como a prostituta que passava na rua, que aparenta um sentimento de sem lugar, marginalizado, sem perspectivas.

Toda sua jornada aparece como uma aporia do desejo, pois sua vontade é nebulosa e complexa. Se quer celebrar e ao mesmo tempo não se quer; se quer violentar, mas sempre há uma desculpa para que não faça;  e a garota do apartamento continua como um sonho distante, no qual 35 reconhece que, apesar de todo o seu desejo, “nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez”.

Por fim, é necessário dizer que, apesar de Contos Novos ser publicado postumamente e consequentemente atribuído a uma fase madura do escritor paulista, as ideias que aparecem nessa obra e, de forma mais ilustrativa, no conto Primeiro de Maio, também podem ser encontradas em Pauliceia desvairada, livro de poemas publicado em 1922, em que as ideias de O rebanho estão próximas das expressas no conto (claro que com as devidas variações que dizem respeito ao contexto em que se inserem: República Velha nesse e Estado Novo naquele):

O Rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
Saírem de mãos dadas do Congresso…
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos salvadores do meu Estado amado!…

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
Entre o trepidor dos taxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro…
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos heróis do meu Estado amado!…

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos…
Emigram os futuros noturnos…
E verde, verde, verde!…
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
Mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhe os cornos, descem-lhe as barbinhas…
E vi que os chapéus altos do meu Estado amado,
Com os triângulos de madeira no pescoço,
Nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,
Se punham a pastar
Rente do palácio do senhor presidente…
Oh! minhas alucinações!

“Fazenda”: a canção como metonímia de Minas Gerais

O álbum Geraes, lançado em 1976, aparece em um período em que Milton Nascimento, seu autor, já era consagrado e reconhecido nacional e internacionalmente. Como em muitas das produções de “Bituca”, esse CD apresenta diversas parcerias, seja com músicos mineiros, ou com músicos de outras regiões do Brasil, além de uma parceria internacional, que aparece em Volver a los 17, de Violeta Parra, cantada por Milton e Mercedes Sosa.

As canções se dividem em seis para cada lado da obra em LP, inteirando doze canções ao todo. Essa divisão se baseia em uma separação entre os temas infância e maturidade, que aparecem destilados nas letras pertencentes a cada lado do disco. A divisão é marcada por uma música instrumental, Caldeira, faixa sete do álbum.

A partir dessa separação em temas, a ordem em que as letras são colocadas é importante para a configuração de uma narrativa. Apesar de não haver uma unidade na voz de quem narra, no disco há uma progressão, um amadurecimento, tanto com relação à idade, quanto no que diz respeito a sua visão do mundo. Além disso, todas as vozes que perpassam as canções estão fortemente ligadas às raízes interioranas, ideia que é sugerida já no título do álbum, Geraes, referência direta ao estado de Minas Gerais e ao seu passado, que é recuperado principalmente na última canção, homônima do estado, que retoma todas as outras canções do disco:

Todas as canções inutilmente
Todas as canções eternamente
Jogos de criar sorte e azar

A atmosfera criada a partir dessas imagens, objetos ou maneiras de falar, presentes nas canções e que lembram o ambiente rural, é responsável pelo caráter bucólico da obra como um todo.

https://durasletras.com/wp-content/uploads/2022/07/01-fazenda.mp3

É possível identificar todas essas características citadas acima na primeira faixa de Geraes: “Fazenda”, de Nelson Ângelo e Milton Nascimento. Nela, o sujeito da canção narra um episódio da infância, em que ele vai a uma fazenda, como incitado pelo título; sua memória é dada com tom nostálgico, relacionando a geografia, as pessoas, o tempo e os sentimentos.

A tradição literária reforça a ideia de que no campo o tempo passa mais devagar, e, na canção, esse imaginário aparecerá também. O esquecer é permitido na fazenda, onde o tempo seria o tempo da vida e não o do relógio, que é o tempo da cidade (do mercado, do trabalho):

E o esquecer
Era tão normal
Que o tempo parava

Aliada ao tempo particular expresso na obra, a paisagem campestre é construída com vividez a partir de elementos característicos do interior, como a bica, a varanda, o quintal e as árvores que aparecem na canção. Além disso, a relação familiar, e a sua menção na letra, também são marcas que ajudam a reforçar a paisagem construída e reforçam o caráter memorialístico de uma infância passada.

Por fim, a despedida do sujeito que fecha a canção corrobora o caráter nostálgico e bucólico, pois, apesar da partida e do jipe na estrada, o coração permanece lá. A letra com facilidade consegue descrever todo o ambiente e sintetizar o imaginário que será cantado nas faixas seguintes.

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