Repensando a sociedade com “Primeiro de Maio”, um conto de Mário de Andrade

O nome de Mário de Andrade (1893-1945) é tão corriqueiro e importante para a historiografia literária brasileira que dispensa apresentações longas. Autor do célebre Macunaíma e um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna, de 1922, Mário pode muito bem ser considerado uma das “antenas da raça” – expressão utilizada por Ezra Pound para descrever os grandes literatos – que perambulava pelas ruas de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.

Antenado não só ao cotidiano da grande cidade moderna, Mário também se mostrava um leitor assíduo das teorias e correntes filosóficas que tiveram seu germe no século XIX, destilando em suas obras conteúdos que se assemelham às ideias de inconsciente, de Freud, de classe, a partir do marxismo, e de linguagem, no sentido saussuriano. A coletânea Contos novos, publicada postumamente, em 1947, organizada por amigos do escritor, condensa muitos desses traços significativos que Mário assimilou ao longo de seus anos de pesquisa estética. A oralidade e a linguagem cinematográfica estão entre os aspectos estilísticos de escrita que o autor esmerava, diretamente relacionados às vanguardas europeias, principalmente o Futurismo, de Marinetti (1876-1944). Além disso, as narrativas estão estritamente relacionadas aos acontecimentos vivenciados pelos brasileiros daquele tempo. Qualquer um desses elementos pode ser identificado em um dos nove contos que compõem a obra, como veremos a seguir.

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Um bom exemplo desse olhar sobre a história e sobre as grandes revoluções filosóficas aparece no conto Primeiro de Maio, terceira estória do livro. Nesse breve escrito, o narrador acompanha a trajetória e pensamentos de 35, um trabalhador da Estação da Luz, que queria celebrar e havia de celebrar o Dia do Trabalhador. Primeiramente, cabe dizer sobre esse conto que é aliado aos traços estilísticos próprios de Mário de Andrade (como o uso de “si“, ao invés de “se” e “pra“, ao invés de “para”), que há nessa narrativa um alinhamento entre um corpo social, uma ideia de trabalhador como classe, e um corpo psíquico, os desejos individuais do protagonista.

Mas, de fato, os primeiros traços que chamam a atenção no conto são os nomes das personagens, que, obviamente e não por acaso, se resumem a números (35, 22 e 486), e o tempo diegético da narrativa, que representam uma jornada de trabalho convencional, começando não bem às seis da manhã e terminando pouco depois das dezessete.

(19)35 – Ano da proclamação do Dia do Trabalhador;
(19)22 – Ano de fundação do Partido Comunista Brasileiro;
D. lei nº 486, de 10 de junho de 1938: institucionaliza o feriado de Primeiro de Maio.

Já no significado desses nomes encontramos uma ideia que se fazia presente naquele tempo e que ainda hoje possui repercussões: o alinhamento político-ideológico entre o trabalhador e o movimento comunista, que encontra seu ápice ao fim da narrativa, como uma esperança de mudança frente a todos os acontecimentos daquele dia de primeiro de maio, frustrado: 35 ajuda 22, também um trabalhador da Estação da Luz, a carregar as malas e, detalhe importante, não há cobranças por parte daquele. É nesse ponto da estória que a violência do protagonista se dissolve em um simples “soco só de pândega” no camarada: aquele que antes queria “dar um soco num polícia”, arranjar um “turumbamba” a todo instante, agora apenas caía na gargalhada com o colega.

A forma utilizada pelo protagonista para se expressar é majoritariamente violenta. Tal violência exacerbada é em parte responsável pelas inúmeras contradições da narrativa, pois ao mesmo tempo que se quer queimar a igreja, lembra-se que fez primeira comunhão quando era criança. Além disso, as repressões que perpassam 35 são simpáticas às repressões dos desejos por parte das instituições, como os bancos que estão dispostos sob o sol e os policiais que mantêm sob vigília os trabalhadores no pátio.

Também, desde o início, Mário faz questão de marcar, a partir da agressividade, a rivalidade e raiva que o protagonista possui com as instâncias de poder: a polícia, os políticos, a igreja, e inclusive com os próprios trabalhadores, o que se manifesta em um sentimento de desconfiança com isso tudo e que advém, segundo o próprio personagem, da experiência (o que é irônico, pois ele possui apenas vinte anos).

Assim, mesmo a mídia, que tem um protagonismo forte na vida dos trabalhadores daquela época, e que também era um veículo de informação capital, não escapa da desconfiança de 35. Ele lê recorrentemente o jornal, que anuncia a união e a revolução, contudo sua leitura cria um conflito de interesses entre a classe e seus desejos:

O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Também aqui se pode ver mais uma vez expressa a divergência entre o indivíduo e sua consciência de pertencimento à classe operária, fora o fato de sua postura com o jornal mostrar ao leitor que 35 não sabe se se alinha com o valor de nação e esforço (comemorando o Dia do Trabalhador), ou com os “revolucionários”, que espalham motins pelo mundo afora e expressam sua indignação com qualquer que seja o ponto.

Participar das comemorações do primeiro de maio ou das revoltas internacionais?

Eis uma resposta que 35 não responde e mal entende o porquê. Ora 35 é reconhecido por si e pelos outros, como quando os colegas vêm até ele perguntar sobre as cerimônias de comemoração, ora ele se reconhece e é reconhecido como a prostituta que passava na rua, que aparenta um sentimento de sem lugar, marginalizado, sem perspectivas.

Toda sua jornada aparece como uma aporia do desejo, pois sua vontade é nebulosa e complexa. Se quer celebrar e ao mesmo tempo não se quer; se quer violentar, mas sempre há uma desculpa para que não faça;  e a garota do apartamento continua como um sonho distante, no qual 35 reconhece que, apesar de todo o seu desejo, “nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez”.

Por fim, é necessário dizer que, apesar de Contos Novos ser publicado postumamente e consequentemente atribuído a uma fase madura do escritor paulista, as ideias que aparecem nessa obra e, de forma mais ilustrativa, no conto Primeiro de Maio, também podem ser encontradas em Pauliceia desvairada, livro de poemas publicado em 1922, em que as ideias de O rebanho estão próximas das expressas no conto (claro que com as devidas variações que dizem respeito ao contexto em que se inserem: República Velha nesse e Estado Novo naquele):

O Rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
Saírem de mãos dadas do Congresso…
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos salvadores do meu Estado amado!…

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
Entre o trepidor dos taxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro…
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos heróis do meu Estado amado!…

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos…
Emigram os futuros noturnos…
E verde, verde, verde!…
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
Mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhe os cornos, descem-lhe as barbinhas…
E vi que os chapéus altos do meu Estado amado,
Com os triângulos de madeira no pescoço,
Nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,
Se punham a pastar
Rente do palácio do senhor presidente…
Oh! minhas alucinações!

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