Conto – “A filha da neve”, de Angela Carter

⚠️ O conto abaixo possui linguagem sexual e obscena ⚠️

Pleno inverno – invencível, imaculado. O conde e sua esposa saem para cavalgar, ele numa égua cinzenta e ela numa preta, ela envolta em peles brilhantes de raposas pretas; e ela usava botas altas, pretas e brilhantes, com saltos escarlates, e esporas. Neve fresca caía sobre a neve já acumulada; quando cessou, o mundo inteiro estava branco.

— Gostaria de ter uma menina branca como a neve — diz o conde.

Seguem cavalgando. Chegam a um buraco na neve; o buraco está cheio de sangue. Ele diz:

— Gostaria de ter uma menina vermelha como sangue.

E seguem cavalgando; ali está um corvo, empoleirado num galho nu.

— Gostaria de ter uma menina negra como a pena daquele pássaro.

Assim que ele terminou sua descrição, lá estava ela, ao lado da estrada, pele branca, boca vermelha, cabelo preto e completamente nua; ela era a filha do seu desejo e a condessa a odiou. O conde ergueu-a e a sentou na frente dele na sela, mas a condessa tinha um único pensamento: como poderei me livrar dela?

A condessa deixou a luva cair na neve e disse à menina que fosse procurar; pretendia galopar para longe e deixá-la ali, mas o conde disse:

— Eu compro luvas novas.

Com isso, as peles saltaram dos ombros da condessa e se retorceram em volta da menina nua. A condessa então jogou seu broche de diamante através do gelo de um lago congelado.

— Mergulhe e vá buscá-lo para mim — disse ela, pensando que a menina fosse se afogar.

Mas o conde disse:

— Ela por acaso é um peixe para nadar num tempo tão frio?

Então as botas saltaram dos pés da condessa e foram para as pernas da menina. Agora, a condessa estava nua em pelo, e a menina coberta de peles e usando suas botas; o conde sentiu pena de sua esposa.

Chegaram a uma roseira, coberta de flores.

— Apanhe uma para mim — disse a condessa à menina.

— Não posso lhe negar isso — disse o conde.

Então, a menina apanha uma rosa; espeta o dedo no espinho; sangra; grita; cai.

Chorando, o conde desceu do cavalo, desabotoou as calças e colocou seu membro viril dentro da menina morta. A condessa freou sua égua, que batia com as patas no chão, e observou-o atentamente; ele logo terminou.

Então, a menina começou a derreter. Logo já não restava dela nada mais além da pena que um pássaro talvez tivesse deixado cair, uma mancha de sangue, como o rastro da caça de uma raposa na neve, e a rosa que ela tirara do arbusto. Agora a condessa estava com todas as suas roupas novamente. Com a longa mão, acariciou suas peles. O conde pegou a rosa, curvou-se e a entregou à mulher; quando ela a tocou, deixou-a cair:

— Ela morde! — disse.


“A filha da neve” é um dos contos que compõem o livro The bloody chamber (1979), da escritora inglesa Angela Carter. A obra teve sua primeira versão publicada no Brasil pela editora Rocco, sob o título de O quarto de Barba Azul (1999), com tradução de Carlos Nougué. Em 2017, o livro foi reeditado e publicado pela editora Dublinense, em parceria com a TAG – Experiências literárias, que o lançou com nova tradução, de Adriana Lisboa, e com o título A câmara sangrenta.

30 contos incríveis de H. G. Wells para adicionar hoje à sua lista de leituras

H. G. Wells (Londres, 1866-1946) é até hoje um dos mais prodigiosos e conhecidos autores de ficção científica, tendo escrito clássicos como A guerra dos mundos, A ilha do doutor Moreau, O homem invisível e A máquina do tempo. Mas o que muita gente não sabe é que, entre as centenas de histórias mais ou menos famosas que Wells escreveu, há uma grande quantidade de contos extraordinários que, além da ficção científica, contemplam os gêneros da fantasia, do terror, da aventura e até do realismo (geralmente, contos muito cômicos ou filosóficos neste último caso).

Pensando nisso, elaboramos para vocês uma lista com a seleção dos meus 30 contos favoritos de Wells, mesclando entre esses diversos gêneros que a literatura do autor abarca. (Até agora, nenhuma coletânea incluiu a tradução de todos eles para o português em volume único, mas um passarinho me contou que vem coisa boa por aí! Aguardem. ♥)

Decidimos não dividir a lista por gênero porque muitos dos contos caberiam em mais de um enquadramento. Por exemplo, será que The Star ficaria melhor classificado como ficção científica ou terror cósmico? E My first aeroplane“Alauda Magna”, aventura ou realismo? Do mesmo modo, muitos outros podem ser lidos e compreendidos por mais de um ponto de vista, já que não existe pureza na distinção dos gêneros literários. De um jeito ou de outro, temos certeza de que nessa seleção é possível encontrar contos para os mais diversos tipos de leitores.

Ah! Outro ponto importante: os contos não estão na ordem dos meus favoritos – preferi organizá-los por ordem cronológica, de acordo com o ano da primeira publicação (vocês sabem, é tão difícil escolher… rs). Alguns deles já foram traduzidos e podem ser encontrados à venda em sites e livrarias. Recomendamos a leitura do e-book de A porta no muro, lançado pela editora Wish no projeto Sociedade das Relíquias Literárias. O livro pode ser baixado gratuitamente clicando aqui. 📚🦊

Também vamos deixar no final desse post alguns links para compra de livros de H. G. Wells. Usando nosso link, você apoia o nosso trabalho sem pagar nem um centavo a mais por isso. 🤩

A lista completa dos 30 contos de H. G. Wells vocês conferem logo abaixo. Esperamos que gostem!

  1. The Diamond Maker (1894)
  2. Mr. Ledbetter’s Vacation (1894)
  3. The Flowering of the Strange Orchid (1894)
  4. Aepyornis Island (1894)
  5. In the Abyss (1894)
  6. In the Modern Vein (1894)
  7. The Obliterated Man (1895)
  8. The Moth (1895)
  9. Pollock and the Porroh Man (1895)
  10. A Catastrophe (1895)
  11. The Magic Shop (1895)
  12. A Slip Under the Microscope (1896)
  13. The Story of Late Mr. Elvesham (1896)
  14. The Rajah’s Treasure (1896)
  15. The Red Room (1896)
  16. The Apple (1896)
  17. The Sea Raiders (1896)
  18. The Crystal Egg (1897)
  19. The Star (1897)
  20. A Story of the Stone Age (1897)
  21. Miss Winchelsea’s Heart (1898)
  22. The Man who Could Work Miracles (1898)
  23. Jimmy Goggles the God (1898)
  24. A Dream of Armageddon (1901)
  25. The Story of the Inexperienced Ghost (1902)
  26. The Country of the Blind (1904)
  27. The Door in the Wall (1906)
  28. A Moonlight Fable (1909)
  29. My First Aeroplane – “Alauda Magna” (1910)
  30. Little Mother up the Mörderberg (1910)

Links para os livros de H. G. Wells

🪐 A Guerra dos Mundos

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Excelsior (edição de luxo): https://amzn.to/3B8R5mC
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🪐 A Ilha do doutor Moreau

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Panini: https://amzn.to/2UgDl92
Principis: https://amzn.to/3ilTzpa
L&PM Pocket: https://amzn.to/2UX05dP

🪐 A Máquina do Tempo

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Principis: https://amzn.to/3ipP24X

🪐 O Homem Invisível

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🪐 O País dos Cegos e Outras Histórias (coletânea de contos)

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🪐 Boxes

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Oito romances fundamentais para ficar por dentro dos clássicos da ficção científica

Texto por Isadora Urbano

Oiê! Na lista de hoje, elencamos oito romances (e uma surpresa!) para quem quer começar a se aventurar pelos mares da ficção científica. A lista inclui desde textos muito antigos e canonizados a outros menos conhecidos, mas que têm conquistado seu lugar entre os destaques do gênero! Além desses, muitos outros seriam dignos de entrar numa lista dos melhores ou mais importantes – e é também por isso que não vamos colocar os romances indicados nesse tipo de competição: afinal, tem espaço pra todo mundo, não é mesmo?

Ainda assim, os romances escolhidos foram selecionados a dedo por uma aca-fan que tem buscado conhecer mais desse imenso universo literário! Vamos embarcar nessa com a gente? 😃

1. Frankenstein, de Mary Shelley (1818)

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O clássico de Mary Shelley foi considerado por Brian Aldiss o primeiro romance de ficção científica já escrito. 😮
E nós também achamos que ele merece a honraria! Afinal de contas, o célebre romance de Shelley mistura elementos da literatura gótica e de horror com extrapolações dos avanços científicos no campo da biologia e da medicina.
Brincando de deus, Frankenstein criou um monstro – um que vive no mundo, e um que habita dentro de si. Mas qual dos dois será mesmo o pior? 🧠🦴🧟

2. Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne (1864)

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Outro autor que merece destaque no campo da ficção científica é Júlio Verne, que escreveu, dentre tantas histórias, Vinte mil léguas submarinas, A volta ao mundo em 80 dias, A ilha misteriosa e Viagem ao centro da Terra, que escolhemos para entrar nessa lista.
Apesar de ser considerado um dos pais do gênero ficção científica, os livros de Júlio Verne costumam aparecer mais ligados às histórias de aventura – como se um um livro de sci-fi não pudesse ser ao mesmo tempo uma aventura!
Em Viagem ao centro da Terra, um cientista e seu sobrinho, acompanhados de um guia islandês, conseguem descer pelo interior da crosta terrestre, e lá encontram todo um mundo desconhecido, que contém desde dinossauros e homens das cavernas aos mais estranhos animais imaginários!
Com certeza, é um dos livros que não poderia passar batido! 💛

3. A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells (1898)

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Outro clássico indispensável na lista dos romances de ficção científica é A guerra dos mundos, de H. G. Wells – outro nome incontornável do gênero!
Inventor de diversos temas que se tornaram convenções na escrita do sci-fi, em A guerra dos mundos, Wells nos apresenta uma invasão marciana narrada em primeira pessoa por uma de suas testemunhas.
Nesse contexto, o poder bélico dos alienígenas é tão superior ao dos seres humanos que pouco resta à nossa pobre espécie senão se resignar ao massacre. Mas nem tudo está perdido! E a narrativa de Wells mostra como acontece de os seres mais subestimados se tornarem os heróis da vez.

🤑 Você pode adquirir gratuitamente o e-book do conto A porta no muro, também de Wells, em sua edição Kindle pela editora Wish.

4. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932)

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No mais conhecido livro de Huxley, entramos em contato com a primeira distopia da lista! – Sim, distopias também são ficção científica!
Nesse mundo, os bebês são criados em laboratório e condicionados – química e psicologicamente – a agir de acordo com suas castas: alfas e betas ganham os melhores cargos e luxos, enquanto deltas e gamas vivem mecanicamente suas vidas de exploração, e todos são viciados em soma, uma droga para aliviar o vazio dessa vida medonha!
Mas tudo começa a dar errado quando Bernard, o protagonista, começa a questionar a superficialidade da sua existência, almejando mais, ainda que permaneça guiado por princípios fúteis.
Ao fazer uma viagem a uma “reserva”, onde vivem os povos que não foram atingidos por essa civilização, Bernard e a moça que está tentando impressionar conhecem John, o selvagem, que volta com eles para o mundo moderno. A partir desse ponto, é só confusão atrás de confusão – e garanto que, pelo desenrolar da história, Huxley não parecia nada otimista quanto ao futuro que imaginou! 🚁

5. Blade Runner: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick (1968)

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Nessa narrativa, acompanhamos um caçador de androides, que trabalha “aposentando” (um eufemismo para matando) um grupo específico de andys, que teria fugido da colônia em Marte para viver livremente na Terra. Alternadamente, assistimos à vida mais monótona, e mais sensível, de Isidore, um “cabeça de galinha”, afetado pela poeira radioativa que atingiu todo o planeta.
O livro aborda diversos temas da maior importância, como a religião e a nossa relação com os animais, mas sem dúvidas o tema que mais chama a atenção é a dificuldade da distinção entre os que são e os que não são humanos, pois nesse mundo os androides fugitivos são praticamente idênticos a nós.
Para distingui-los, o caçador Deckard aplica um teste de empatia e no contexto do livro, é o resultado desse teste o que justifica o assassinato a sangue frio e a absurda desumanização dos androides. Por essas e outras, as questões que Blade Runner levanta continuam mais que atuais – e a leitura, por si mesma, é muito envolvente.

6. A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin (1969)

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No romance de Le Guin, o embaixador Genly Ai visita o planeta Gethen para convencer seus líderes a se unir à Liga de Todos os Mundos (algo como a ONU, ou parecido). Mas Genly se depara com entraves de um tipo inesperado: o fato de os gethenianos não possuírem as nossas formas de gênero – não sendo nem homens, nem mulheres.
Além de discutir os papeis de gênero, A mão esquerda da escuridão também proporciona reflexões muito válidas sobre a amizade, a lealdade e as dinâmicas da vida política, e isso tudo sem falar na incrível aventura no gelo que se passa por volta da segunda metade do livro!

Vale lembrar que esse romance é considerado um dos pioneiros no subgênero de ficção científica feminista, que também conta com grandes nomes como os de Joanna Russ (The female man) e Angela Carter (A paixão da nova Eva). 💋💪

7. Matadouro Cinco, de Kurt Vonnegut (1969)

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O romance de Vonnegut é instigante por várias razões: além de ser fragmentado e pós-moderno, ele apresenta uma narrativa muito próxima à vida pessoal do escritor, um dos sobreviventes ao bombardeio na cidade alemã de Dresden, durante a Segunda Guerra Mundial.
No livro, o personagem central viaja no tempo – e no espaço – entre seu futuro como um optometrista casado e com filhos, que leva uma vida relativamente tranquila, e os momentos do passado, em que era ainda um jovem soldado tentando sobreviver à dura realidade como prisioneiro de guerra.
Além disso, o personagem também conta de suas viagens ao planeta Tralfamadore, para onde teria sido sequestrado para servir de reality show aos tralfamadorianos.

O livro deixa livre a interpretação quanto à questão das viagens no tempo – se seriam, de fato, viagens reais ou viagens na memória. Independentemente disso, é uma obra que vale a leitura, sendo um dos bons exemplos de como a ficção científica também pode servir a repensar os traumas da nossa história.

8. Kindred: Laços de Sangue, de Octavia E. Butler (1979)

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No romance Kindred – Laços de família você vai acompanhar a história de Dana, uma jovem escritora afro-americana, que de repente viaja para o tempo de seu tataravô, Rufus: um menino branco e filho único de uma família latifundiária do sul dos Estados Unidos. Só que o salto temporal de Dana é um mistério que o livro de Butler não soluciona: não há qualquer sugestão de tecnologias, sofisticadas ou não, que sejam capazes de romper a barreira do tempo – uma das razões porque, vez por outra, aparece a dúvida quanto ao enquadramento do romance na categoria de ficção científica, o que pesa ainda mais por ser uma narrativa muito próxima à história e às questões pós-coloniais.

Agora, um detalhe interessante e que corrobora a ideia de se tratar de uma ficção científica é a posição de Dana em relação à maior parte das personagens da trama. Pelo fato de o período histórico para o qual ela foi transportada ser antes da guerra civil americana, Dana se vê como uma espécie de alienígena: incapaz de se comunicar e agir da forma que conhece e sendo sempre vista com desconfiança, como uma “pessoa fora do lugar”. 👽 E aí, o que você acha?

Bônus: A Verdadeira História da Ficção Científica, de Adam Roberts (2018)

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Se você se interessou pelo gênero e gostaria de ler mais sobre suas questões históricas e teóricas, uma ótima recomendação é o livro A verdadeira história da ficção científica, de Adam Roberts!

Nele, o autor apresenta algumas das muitas definições de sci-fi e o desenvolvimento histórico do gênero, passando pelas suas origens entre os séculos XVI e XIX, as revistas pulp e os sucessos nas telas de cinema.

O livro é dividido em 16 capítulos, sendo que o último é sobre a ficção científica do século XXI. A primeira publicação do livro, em inglês, foi feita em 2005, mas foi em 2018 que chegou para o público brasileiro pela editora Seoman.

O que achou da nossa lista? E o que mais você acha que deveria aparecer por aqui? Conta pra gente! Vamos adorar te ouvir ♥

Sula Peace, uma megera? Questões de amizade e sexo em “Sula”, de Toni Morrison

Toni Morrison, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993 e autora de Sula

Se você ainda não conhece, Sula (1973) é um romance de Toni Morrison, recentemente trazido para o público brasileiro pela TAG Curadoria – por indicação da grande Conceição Evaristo!
O romance acompanha a fundação do Fundão, uma comunidade negra situada em Medallion (cidade ficcional em Ohio, nos Estados Unidos), marcada pela camaradagem tanto quanto pela violência, a luta pela sobrevivência e a solidão daquelas pessoas.
Ali começa a história da família Peace, que acompanha as vidas de quatro mulheres cujos caminhos são entrelaçados uns aos outros: as três gerações da família Peace – Eva, Hannah e Sula – e a melhor amiga de Sula, Nel Wright.

Capa da primeira edição de Sula

Criada numa casa movimentada e abarrotada de gente, Sula cresce num profundo isolamento, cuja única exceção é a presença reconfortante da amiga, Nel. Unha e carne, as duas chegam à vida adulta compartilhando as mais duras experiências, enfrentando a violência dentro da própria comunidade, as desavenças familiares e as mortes que estão sempre acontecendo ao seu redor.

Porém, depois de adultas, seus caminhos divergem: enquanto Nel se casa, tem filhos e se torna uma mulher de família, Sula sai de Medallion para fazer faculdade e conhecer o mundo, e assim como a mãe, Hannah, não se apega a nada nem a ninguém.

Dez anos depois de sua partida, Sula retorna à cidade natal, onde sua presença se torna um estorvo cada vez maior, dadas a sua arrogância e seu desprezo pelos laços matrimoniais. Exercendo intensamente o potencial de sua liberdade, Sula destrói os laços mais caros de sua existência, cujo destino é uma solidão cada vez mais acentuada.

A cidade, então, transforma Sula em uma Geni (vocês sabem, a Geni do Chico: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni”), fazendo com que a protagonista seja alvo de uma série de superstições e fofocas maliciosas: nem sempre falsas, quase nunca verdadeiras. Rejeitada pela comunidade, sua única companhia são os parceiros com quem se deita, frequentemente casados ou comprometidos – o que, logicamente, não contribuía muito para a sua popularidade entre as mulheres locais.

“Ela ia para a cama com homens na maior frequência possível. Era o único lugar onde achava o que procurava: sofrimento e a capacidade de sentir profunda tristeza.”

Sula, então, assume o papel da megera perversa: achincalhada pelas mulheres e temida pelas crianças; amada apenas pelos homens, mas somente enquanto dura a paixão de seus corpos. Nem família, nem amigos, nem amores – ninguém capaz de compreender sua forma perigosa de existir e de pensar. Por isso mesmo, Sula é uma eterna estranha, que por escolha própria se exila do pacto social e da vida em comunidade.

“Você monta no pônei e a gente raspa a bosta”?

Morrison, em seu brilhantismo de escrita, não nos autoriza a crer que sua protagonista seja apenas uma vilã implacável, uma destruidora de lares perversa e maquiavélica. Atentando para seus momentos íntimo de sensibilidade e introspecção, somos convidados a perceber o que os moradores de Medallion não poderiam jamais vislumbrar: que Sula, a despeito de seu comportamento antissocial e desagradável, não age por má-fé ou para causar intriga – Sula enxerga o mundo de uma forma diferente da que os outros o veem, de menos posse e mais liberdade.

Afinal, o desejo de Sula não é de “roubar” maridos e competir com as outras mulheres; ele passa pela defesa de uma moral que não seja pautada na exclusividade do acordo sexual, mas numa política de amizade que seja capaz de superar até mesmo a possessividade e o ciúme dos laços monogâmicos. De certo modo, o que Sula põe à prova é o limite das relações de companheirismo, evidenciando as contradições que estão no fundo das regras e acordos da vida em sociedade no que tange ao domínio do sexual.

“Depois que todas as velhas tiverem se deitado com os adolescentes; quando todas as meninas jovens tiverem dormido com os tios bêbados; depois que todos os homens negros treparem com todos os brancos; quando todas as mulheres brancas beijarem todas as negras; quando os guardas tiverem estuprado todos os presos e depois que todas as putas fizerem amor com as avós; depois que todas as bichas tiverem comido a mãe; quando Lindbherg dormir com a Bessie Smith e a Norma Shearer fizer aquilo com o Stepin Fetchit; depois que todos os cachorros tiverem fodido com todos os gatos e todo cata-vento em todo celeiro voar pelos ares para montar nos porcos… então vai sobrar algum amor por mim. E sei muito bem qual vai ser a sensação.”

A escritora Conceição Evaristo foi a curadora que indicou Sula para a TAG, em fevereiro de 2021

Sula pode não ser nenhum anjo, mas certamente também não é a bruxa má que tentam pintar a seu respeito. Se sua filosofia de vida nos é tão estranha quanto era para a população do Fundão – criando todo esse alvoroço –, é que também nós vivemos sob a égide das relações monogâmicas, românticas e idealizadas, associando o amor à exclusividade sexual de maneira muito imediata, numa construção que mal se questiona, e que se pretende passar por natural. Quem sabe não possamos caminhar para novos acordos e possibilidades de arranjos, em que para cada par (ou conjunto, que seja) a lealdade tenha seu próprio significado? Afinal, se para alguns a fidelidade é um ponto fundamental para investir em um relacionamento, para outros há valores mais importantes, como a liberdade e a honestidade, por exemplo. Que cada um saiba do seu desejo e faça o melhor que puder com ele, sem que isso precise se aplicar a todo mundo por igual. Até porque nós não somos todos iguais, e nem precisamos ser.

Resenha – “A mulher ruiva”, de Orhan Pamuk

Um Édipo em Istambul

Em janeiro deste ano, voltei a assinar a TAG livros, depois de mais de três anos desde que havia encerrado minha assinatura, especialmente por não conseguir conciliar o ritmo das leituras que o clube propunha com as leituras da faculdade de Letras e com as que, me chamando mais atenção, vez por outra eu decidia passar na frente. Mas desde o fim de 2020, apesar de o meu tempo livre não ser muito maior do que era antes, consegui retomar uma frequência mais alta de leituras, de em média um livro por semana, e decidi renovar a assinatura no plano Curadoria. Para minha grata surpresa, o primeiro livro que recebi foi, sem rodeios, um dos melhores e mais impressionantes dentre muitos dos que li nos últimos anos – e olha que não foi pouca coisa. Por isso mesmo, decidi trazer para vocês uma breve apresentação desse livro extraordinário que é A mulher ruiva (2016), de Orhan Pamuk.

Indicado por Milton Hatoum, o livro de Pamuk acompanha a história de Cem Çelik, um jovem turco que vive com os pais em Istambul, em meados dos anos 1980. Quando o rapaz está com dezesseis anos, seu pai, envolvido na militância política, deixa a família sem nenhum aviso, e Cem começa a trabalhar para ajudar nas despesas da casa.

Assim, quando surge a oportunidade, Cem se torna aprendiz de cavador de poços junto a mestre Mahmut, na pequena cidade de Öngören, nos arredores de Istambul. Durante os meses em que estão juntos cavando o poço, a relação entre Cem e Mahmut vai se tornando cada vez mais próxima de uma relação entre pai e filho, e Mahmut passa a ocupar uma posição paterna de afeto, orientação e proteção para Cem. Contudo, à medida que o tempo passa e a água parece cada vez mais distante, o relacionamento entre os dois começa a azedar, e, junto com a admiração, vêm o medo e o rancor de Cem por essa figura paterna.
Nesse meio tempo, o rapaz conhece a mulher ruiva, uma atriz de teatro com o dobro da sua idade, por quem ele fatalmente se apaixona. Mas mestre Mahmut o proíbe de visitar o Teatro de Moralidades onde ela atua, de modo que Cem passa a procurar qualquer desculpa para conseguir vê-la, mesmo que a distância.

Édipo fura os olhos, após descobrir que matou o pai e se casou com a própria mãe

Cem passa a sentir cada vez mais medo e raiva de Mahmut, e a rivalidade entre eles, que à primeira vista parece pouco justificável, passa a se concentrar cada vez mais intensamente em fantasias edípicas. Na verdade, o mito de Édipo é de importância fundamental para a história: não apenas ele é referido e narrado mais de uma vez ao longo do livro, como também os laços entre os personagens de A mulher ruiva tornam-se paralelos – mas de maneira nada óbvia – aos dos personagens da peça de Sófocles, na complexa triangulação entre pai, mãe e filho.
Devido a um incidente durante o trabalho no poço, após o qual ele volta para Istambul e para a casa da mãe, Cem fica obcecado com a história de Édipo Rei, que parece estar muito ligada à sua própria história.

Algum tempo depois, Cem vai para a faculdade e conhece Ayse, com quem se casa, e se tornam donos de uma empreiteira. No entanto, o casal tem dificuldades para conceber, e, mesmo procurando ajuda de diversos médicos, o tempo passa e Ayse não engravida, de modo que passam a tratar a empresa que fundaram juntos como o filho que nunca tiveram.

Rostam reconhece Sohrab

Numa viagem de negócios, Cem vê uma pintura que o impressiona muito: a cena em que o guerreiro Rostam reconhece ser seu filho, Sohrab, quem acabou de matar numa batalha. Cem, então, fica novametne obcecado e passa a procurar pelas histórias do Shahnameh, a Épica dos Reis, do escritor persa Ferdusi, do qual faz parte o ciclo de Rostam e Sohrab.
Ele e Ayse decidem batizar sua empresa com o nome do filho morto pelo pai, e no seu tempo livre estão sempre discutindo as histórias de Édipo e de Sohrab, classificando as pessoas entre as de um tipo ou de outro: os filhos de pais autoritários seriam como Sohrab, enquanto os filhos que se rebelam contra seus pais, como Édipo. E de que tipo seria o próprio Cem?

Para não contar demais, vou parar por aqui. O fato é que, lendo A mulher ruiva, os fatos se sobrepõem e se multiplicam em camada após camada, surpreendendo sempre com as reviravoltas da história e seus paralelos com Édipo, Rostam e Sohrab. É bom lembrar que, para ler o livro de Pamuk, não é preciso ter lido as outras histórias, pois elas nos são apresentadas à medida que aparecem na narrativa (apesar de que, é claro, quem conhece já vai estar mais familiarizado com os acontecimentos em questão). Além destas referências principais, Pamuk também evoca, em dados momentos, Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e Hamlet, magnum shakespeariano, que também se concentram nos embates edipianos entre pais e filhos.


Sem dúvidas quanto a isso, A mulher ruiva é um cinco estrelas que vale cada segundo da leitura. Como escrevi antes, foi um dos melhores livros que li nos últimos anos, então indico sem medo de ser feliz. (Mas quem sou eu para recomendar, se o próprio Milton Hatoum já falou que é bom, né? Obrigada, Hatoum!)

📚 Para comprar o livro, clique aqui. (Loja TAG, R$ 65,90 + frete)

Clique aqui se quiser ler o spoiler! (Por sua conta e risco, hein?) 🙂 Cem tem um caso de uma noite com a mulher ruiva, mas após o acidente no poço, em que acredita ter matado mestre Mahmut sem querer (o que na realidade não foi o que aconteceu), ele foge de Öngören e passa vários anos sem tornar a vê-la. Um dia, ele recebe uma carta de um filho seu, que é o filho que, sem saber, concebeu com a mulher ruiva, aos dezesseis anos. Sem saber como agir, ele volta até a cidade, e lá ele e o filho, num breve momento de reconhecimento e acusações, lutam. Cem estava armado, mas o filho toma a arma deste e – acidentalmente? – acaba o matando. Além disso, descobrimos que a mulher ruiva, antes de ser amante de Cem, fora amante do pai dele, algo em torno dez anos antes de conhecê-lo. Assim, ela ocupa uma posição materna em relação a ele, além de ser muito próxima de seu próprio filho com Cem. O protagonista, portanto, é tanto Édipo (pensando ter matado o “pai”, Mahmut, e dormido com a “mãe”, a mulher ruiva), como Laio, morto por seu próprio filho. Ufa! Haja sangue, não é?!

A poesia nonsense além de Alice: desvendando os Limericks de Edward Lear

Quando se trata de poesia nonsense, o primeiro nome que vem à mente é, sem dúvida, Lewis Carroll, com os muitos poemas que recheiam tanto Alice no país das maravilhas como Alice através do espelho. Mas há outro grande e importante autor da poesia nonsense que, sobretudo fora da Inglaterra, por vezes é deixado de lado – ou você já conhece os limericks de Edward Lear?

Conterrâneo e contemporâneo a Carroll, Lear publicou o célebre A book of nonsense (algo como “Um livro de abobrinhas”) em 1846, cujo conteúdo era uma divertida poesia convivial que ganhou grande popularidade entre os ingleses da época, os quais brincavam de fazer versos de improviso e competir na maestria dessa habilidade.
Como os limericks seguem uma forma muito regular, tanto no que diz respeito ao ritmo e às rimas, como no conteúdo que cada verso deveria apresentar (como veremos daqui a pouco), o desafio era não somente criar versos engraçados e mordazes, mas também colocá-los dentro de uma “fôrma” como essa usada nos poemas de Lear.

Vejamos um exemplo de limerick:

Traduzidos muito ao pé da letra, os versos são assim:

"Havia um velho homem de Whitehaven,
Que dançava uma quadrilha com um corvo;
Mas eles disseram 'É absurdo
Encorajar esse pássaro!'
E esmagaram o velho homem de Whitehaven."

A tradução, nesse caso, não permite uma equivalência com o ritmo e com as rimas do original (mea culpa), mas possibilita, pelo menos, apresentar a sequência dos conteúdos que se pode esperar encontrar em um limerick:

  1. O primeiro verso introduz o protagonista: “Havia um(a) velho(a)/jovem fulano de tal lugar”;
  2. O segundo apresenta a situação inicial: “Que fazia (alguma coisa incomum, normalmente)”;
  3. O terceiro e quarto introduzem a ação;
  4. O verso final conclui e/ou comenta o que se sucedeu no fim da breve narrativa.

Como se pode notar, o limerick substitui o discurso coerente e articulado em privilégio da concisão, inclusive por ser uma grande aliada na obtenção do humor (como já havia dito Shakespeare, ‘Brevity is the soul of wit’, ou, “A brevidade é a alma do chiste”). Também é muito em função desse caráter inventivo e bem-humorado que o limerick se apoia em formas muito fixas: a novidade da informação, em rimas muitas vezes inusitadas ou disparatadas, contribui para a “não-sensidade” da historieta, e o desafio de rimas e manter a métrica enquanto se inventa uma narrativa coloca em posição desfavorável a linguagem lógica e coesa da vida cotidiana.

Tomemos mais um limerick como exemplo; neste, tentei fazer uma tradução (na verdade, transcriação) que preservasse mais da sonoridade original. Vejamos:

“Havia uma velha da França,
que ensinava a uns patinhos a dança;
Se ela diz ‘Tique-taque’
– eles fazem ‘Quack!’
Afligindo a velha da França.”

A partir desse poema, podemos exemplificar o esquema de métrica e rimas, que tende a obedecer o seguinte padrão: o primeiro, o segundo e o quinto versos, com três pés (ou três “batidas”); o terceiro e o quarto, mais curtos, com dois pés. Também as rimas aparecem assim: o primeiro, o segundo e o último rimando entre si (França/dança/França), enquanto o terceiro e o quarto possuem outro tipo de rima (Tique-taque/Quack), ou seja, seguindo a ordem AABBA.
Visualmente, podemos esquematizar o formato de um limerick desta forma:

— — — (A)
— — — (A)
♥ ♥ (B)
♥ ♥ (B)
— — — (A)

Quanto aos temas e situações apresentados nos poemas desse tipo, há uma grande recorrência de assuntos ligados à comida e aos animais: as inversões, aqui, são de mão única, uma vez que os humanos, nos limericks, se assemelham a animais (vale prestar atenção também às ilustrações de Lear, que era desenhista!), mas os animais não são antropomorfizados, embora façam coisas típicas de seres humanos (como dançar, nos dois exemplos anteriores).

Também verificamos nos limericks uma desproporção sempre inconsistente entre as ações iniciais e a reação popular: por pouca coisa, às vezes eles espancam, esmagam ou matam (!) uma pessoa; outras vezes, por mais grave que tenha sido seu crime, há uma resposta branda (até irrazoável) da parte ofendida, como no exemplo a seguir:

“Havia um velho de Chester,
a quem várias crianças atormentavam;
Elas jogaram grandes pedras,
que quebraram a maior parte de seus ossos,
E desagradaram o velho de Chester.”

No caso de velho de Chester, é de se espantar que a reação a tamanha violência por parte das crianças tenha sido um mero “desagrado”, enquanto que, no primeiro exemplo, a população esmagou o velho de Whitehaven simplesmente por ele dançar com um corvo (o que, pelo menos num primeiro momento, não apresenta mal algum).
Se há algo de constante, no entanto, com relação a esses comportamentos, é que a fuga da normalidade tende a ser muito mal recebida, de maneira a haver um embate entre o singular e o coletivo, em que o singular geralmente sai perdendo.

Só para não passar batido…

Não se sabe qual é a origem precisa do limerick, porém, a estimativa mais aceita é que tenha vindo da Irlanda (o que se especula pelo tipo de ritmo, comum da música folclórica irlandesa, e pelo nome, que remete ao Condado de Limerick, na região de Munster, ao sul do país).

Além disso, há a informação acerca de dois outros livros muito importantes nessa história – anônimos, History of sixteen wonderful old women (“História de dezesseis maravilhosas velhas”) e Anecdotes and adventures of fifteen gentlemen (“Anedotas e aventuras de quinze cavalheiros”) foram editados entre 1820 e 1822, e serviram de modelo aos limericks do próprio Lear. Por sorte, graças à digitalização e divulgação científica, hoje podemos acessar esses conteúdos sem grandes dificuldades, como este que trago logo abaixo:

“Veio uma senhora da França,
Que ensinava a crianças grandes a dança.
Mas eles eram tão duros,
[Que] ela os mandou para casa irritada;
A alegre senhora da França.”

Para bom entendedor, meia palavra basta – e para quem leu todos os exemplos até aqui, a referência é mais do que clara. Quack! 😉

Para quem acompanha a série The Crown, da Netflix, há na terceira temporada um episódio em que a princesa Margaret e o presidente Johnson iniciam uma disputa de limericks que ganha um caráter bastante pornográfico (como de fato passou a ocorrer, nos meios mais elevados). Assistindo à cena, dá pra perceber bem a estrutura que apontamos aqui – e rir um pouquinho da obscenidade da realeza! Rs.

E para fechar…

É bom lembrar que, por mais que seja uma tradição muito distante da nossa, também nós temos nossas brincadeiras, como os versos improvisados no formato do “Vampiro doidão” e de “Se a Perpétua cheirasse…”, repentes e jogos envolvendo sagacidade, inventividade e humor ácido. Dá até pra brincar de “limeriques” – mas não é bem essa a questão, né?

Para quem se interessou e quer saber mais sobre o tema, a recomendação é o livro que usei como referência para esse post, que é Rima e Solução (1996), de Myriam Ávila. Além disso, é possível encontrar Adeus, ponta do meu nariz (tradução de Marcos Maffei) e Conversando com varejeiras azuis e Viagem numa peneira (traduções de Dirce Waltrick do Amarante), também de Edward Lear, traduzidos para o português e a preços bem acessíveis – pelo menos, até a presente data. Do futuro, yo qué sé? O A book of nonsense, por outro lado, não é nada fácil de se achar em português (eu, pelo menos, não consegui), mas pelo menos em inglês é bem fácil de se encontrar (para quem se vira bem no inglês, uma opção com bom custo-benefício é o The complete nonsense of Edward Lear). Quem sabe algum tradutor bem animado não encontre por aqui um último estímulo que faltava? Rs. Não deixem de me avisar!

Aos queridos e queridas que chegaram até aqui, espero que tenham gostado e que esse material tenha sido fonte de um doce deleite. ♥

5 contos clássicos de ficção científica para se apaixonar pelo gênero

Olá! E bem-vindos ao primeiro post do Duras Letras em 2021! Para abrir o ano com chave de ouro, especialmente de um 2020 tão surreal como todos sabemos que foi, proponho aos queridos leitores uma breve lista de 5 contos de ficção científica escolhidos a pente fino – só a nata da nata!

E se você ainda tem dúvidas se o gênero ficção científica é para você, saiba que essas são algumas das melhores histórias para tirar a prova, selecionadas a dedo para impressionar até os leitores mais exigentes! Vamos lá?

1. “Razão” (1941), de Isaac Asimov

O primeiro conto da lista é Razão (do livro “Eu, robô”), do consagrado Isaac Asimov, em que acompanhamos a tentativa de um androide de compreender sua própria origem e propósito. Recém-construído por dois humanos numa estação espacial, o robô não acredita que seres cuja inteligência fosse tão menor que a dele próprio pudessem tê-lo criado, a despeito das inúmeras evidências que seus criadores apresentam para convencê-lo do contrário.

O conto é instigante por levantar reflexões sobre a relação entre criador e criatura, aí inserido o debate sobre o criacionismo e a fundação das religiões. Asimov também nos faz encarar, não sem dificuldades, a complexa situação dos postulados lógicos, que – no limite – se aproximariam muito das questões de fé. A pergunta final que o conto suscita é: como saber o que é real?

Para os amantes do ceticismo e questionadores de carteirinha, é uma ótima pedida! Se é o seu caso, clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto completo.

“Razão”, de Isaac Asimov

2. “Vocês, zumbis…” (1959), de Robert Heinlein

O segundo conto da nossa lista é Vocês, zumbis… (“All you zombies“), que talvez conheçam por meio da adaptação cinematográfica Predestinado (Predestination). Nele, seguimos de perto o relato de Jane, um homem que, tendo nascido com os dois sexos, passou a maior parte da juventude como mulher e, após ter tido uma filha, foi transformado cirurgicamente para manter apenas os caracteres sexuais masculinos.

Ainda na maternidade, contudo, sua filha é sequestrada, e Jane, que nunca desistiu de encontrá-la, segue sua vida sem muito entusiasmo. Enquanto conta sua história para o barman com quem conversa, este revela, misteriosamente, já conhecer muitos detalhes da sua vida, e apresenta a solução para finalmente encontrar a filha, depois de muitos anos – a solução que, no fim das contas, está na origem do próprio problema, com direito a descobertas bombásticas.

Gostou? Clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto traduzido.

“Vocês, zumbis”, de Robert Heinlein

3. “A gaiola de areia” (1962), de J. G. Ballard

O terceiro conto, “A gaiola de areia” (The cage of sand), de J. G. Ballard, presente no livro As vozes do tempo, apresenta uma perspectiva existencialista sobre os sonhos da conquista espacial.

Acompanhamos de perto a vida de Bridgeman numa Cabo Canaveral aterrada de areia marciana, onde, além dele, vivem apenas dois outros personagens: Travis, um ex-astronauta com problemas de consciência, e Louise, uma viúva cujo marido morreu no espaço. Ao longo do conto, descobrimos que os três personagens têm relação próxima com a atividade espacial, e vivem como fugitivos numa terra desertificada e contaminada. À noite, eles assistem juntos à “conjunção”, isto é, o momento em que as cápsulas de astronautas que morreram em serviço atravessam o céu como estrelas cadentes – mas também como caixões em perpétuo movimento.

Mais que pelo desenrolar do enredo, o conto nos toca por falar de questões próprias a toda a humanidade, como a solidão, a relação com a morte e o desafio de seguir em frente. Além disso, Ballard é um mestre da escrita, e suas descrições são tão vívidas e impactantes que só por elas a leitura já valeria a pena.

4. “Podemos recordar por você, por um preço razoável” (1966), de Philip K. Dick

 

 

(“We can remember it for you wholesale”, 1966)

O conto Podemos recordar por você, por um preço razoável (“We can remember it for you wholesale”), de Philip K. Dick – autor do clássico Blade Runner e outras obras de sucesso –, conta a história de Douglas Quail, um homem cujo sonho sempre foi conhecer Marte. Sendo um incompreendido e frustrado, ele recorre a uma empresa de implantação de falsas memórias para realizar esse desejo, porém, durante o procedimento, descobre-se que essa memória já estava em sua mente. A partir daí, a história se torna cada vez mais próxima de um suspense/thriller, em que seguimos junto a Quail na tentativa de saber o que de fato aconteceu e como ele está envolvido nessa história. Para quem curte narrativas com muita ação, surpresas e reviravoltas, a história de Dick é imperdível.

O conto faz parte da coletânea “Minority Report – A Nova Lei”, e foi adaptado para o cinema no filme “O vingador do futuro” (“Total Recall”), que ganhou uma nova versão cinematográfica em 2012. Outro filme que trabalha a questão da implantação (ou, no caso, remoção) de memórias e que vale a pena conferir é “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, do impecável Charlie Kaufman.

 

5. “Superbrinquedos duram o verão todo” (1969), de Brian Aldiss

 

 

(“Supertoys last all summer long“, 1969)

Chegamos ao último conto da nossa lista: Superbrinquedos duram o verão todo (“Supertoys last all summer long“), de Brian Aldiss, publicado no livro de mesmo título.

O conto apresenta a perspectiva de David, um menino robô cujas capacidades para amar, interagir e compreender o mundo são como as de um menino humano. Contudo, David não é amado, e embora se esforce para expressar seu afeto à mãe, Monica Swinton, ela não retribui seus sentimentos e não consegue se conectar com ele, de modo que os dois sentem a presença pesada da solidão e da incompreensão, e o único que de fato se aproxima de David é Teddy, um robô ursinho que lhe faz companhia – e que também é rejeitado pela “mãe”. Ao final do conto, o senhor e a senhora Swinton celebram o fato de finalmente terem recebido a autorização do governo para ter um filho, e paira a dúvida sobre o que será feito de David e Teddy.

O conto é singular por sua capacidade de nos levar a pensar sobre a natureza do amor, as condições de um ser para se conectar a outro e as formas nocivas com que muitas vezes tentamos preenchemos o vazio e a infelicidade de nossas vidas, sem nos atentar para como isso pode causar sofrimento a outros seres. Afinal, quem é mesmo capaz de amar?
Também este conto foi levado às telas do cinema na adaptação “A.I. – Inteligência Artificial”, do diretor Steven Spielberg, uma versão que certamente vale a pena conferir.

 

Para finalizar…

 

Essa seleção foi pensada com carinho especialmente para as pessoas que têm curiosidade com ficção científica, mas pouca disposição para quebrar a cabeça tentando achar sozinhas aquilo que vale à pena. Não quer dizer que sejam as únicas: na verdade, existem muitas outras histórias legais por aí, esperando apenas ser encontradas. Espero que esse post tenha ajudado a entender que ficção científica não é só sobre robôs, astronautas, marcianos e raios-laser, mas sobre a nossa realidade, identidade e questões fundamentais, ficcionalizadas em outros universos possíveis. E aí, qual você vai ler primeiro?

 

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