Qual o seu nível de leitura literária? Descubra e aprenda a aprimorá-lo!

Caros leitores e colegas amantes da literatura, o material que trago hoje para vocês foi criado com inspiração nos níveis de proficiência linguística do Quadro Comum Europeu de Referência para Línguas, que serviu de fonte para uma reflexão sobre nossas habilidades de leituras e como desenvolvê-las. Nesse sentido, esses níveis e categorias não são oficiais para esse assunto, embora possam ajudar com situações reais àqueles que buscam se aprimorar nos caminhos da leitura e da crítica literária.

Por essa razão, optamos por que cada um identifique seu próprio nível – com maior ou menor precisão – e escolha entre as muitas dicas desse post aquelas que melhor servirem aos seus objetivos, a partir dos seus próprios desafios e competências. Esperamos que sejam úteis! ♥ E aí, qual o seu nível no nosso Quadro (Incomum) de Referência para Literatura?

A1 – Iniciante

Meus primeiros passos na literatura!
Sou capaz de compreender textos mais simples e ligados ao meu dia a dia, como livros e crônicas que retratam o cotidiano, mas tenho dificuldades com a identificação dos elementos da narrativa e das figuras de linguagem como metáforas e metonímias.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Você muito provavelmente termina de ler um texto e não sabe bem o que dizer sobre ele, não é? Geralmente, quando é assim, é comum que a gente faça críticas “impressionistas” (quer dizer, da nossa impressão do texto) do tipo: Ah, gostei dessa parte! ou Não entendi o que ele quis dizer com isso aqui… Se você quer avançar, fuja dos comentários como “gostei” ou “não gostei”. Tente, antes, prestar atenção aos cinco elementos da narrativa (personagem, espaço, narrador, tempo e enredo – o famoso P.E.N.T.E.) e observar como diferentes autores trabalham seus textos.

Você pode se fazer certas perguntas para direcionar a observação: quem age e/ou sofre as ações da história? onde essa história se passa? quem está contando (é a própria pessoa que vivenciou ou é alguém externo)? quando isso acontece? qual acontecimento ou episódio está sendo narrado? Perceba que, quando começar a responder a essas perguntas naturalmente, você já estará apto para o próximo nível.

A2 – Intermediário

Entrei na roda!
Consigo identificar os elementos da narrativa sem grandes problemas, porém acho difícil reconhecer o uso de ironia e recursos intertextuais. Me dou bem com textos ligados ao meu cotidiano e com textos fantásticos, desde que a narrativa seja envolvente, mas ler textos clássicos é um grande desafio para mim.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Antes de começar a ler, faça uma busca rápida no Google para saber um pouco sobre o autor ou autora que você está prestes a enfrentar. Ele (ou ela) trabalha com alguma temática recorrente? Está ligado(a) a algum tipo de movimento ou escola literária? Quais são as principais características dessa escola? Quando o livro foi publicado, havia algum contexto específico que estivesse em relação com essa narrativa? Esse texto se refere, de algum modo, a outro texto ou autor? De que maneira? Tente manter tudo isso em mente quando tiver o livro em mãos! Se o autor com que você está trabalhando luta por um ideal socialista, por exemplo, suas figuras burguesas muito provavelmente serão ironizadas na forma de bonachões ou hipócritas. Se é feminista, as situações em que suas personagens mulheres se encontram provavelmente estão em relação com essa pauta social! Fique atento para a forma como esses autores constroem seus enredos: imagens repetitivas e palavras recorrentes podem indicar algo que não está explícito na superfície do texto.

B1 – InDEPENDENTE

Nadando de braçada!
Sei me virar bem com textos que usam e abusam de figuras de linguagem e consigo reconhecer recursos estilísticos como ironias, hipérboles, metáforas, alegorias, etc. Posso ler diversos gêneros literários e compreender tanto sua narrativa e seus elementos básicos quanto as escolhas estilísticas do(a) autor(a), mas não tenho conhecimento técnico para analisar uma obra.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Deixo avisado desde já que a maior parte das pessoas não ultrapassa esse nível, seja por acomodação, seja por falta de conhecimento. Daqui pra frente, nos estágios avançado e autônomo, é preciso estudar para conseguir estabelecer um nível de leitura menos diletante e mais profissional. Se você tem esse desejo, é muito importante que você comece a pesquisar sobre teoria literária e que leia muito sobre esse assunto, pois são várias as correntes críticas para analisar uma obra: o formalismo, o estruturalismo, o new criticism, os estudos culturais, o desconstrutivismo, a hermenêutica, a crítica decolonial… Se precisar de dicas para começar, eu sugiro o Iniciação à Literatura Brasileira, de Antonio Candido, o Literatura Comparada, da Tania Carvalhal, ou o Teoria da Literatura, de Roberto Acízelo de Souza. Se estiver se sentindo particularmente confiante, pode ir direto para O Rumor da Língua, de Roland Barthes.

(Aliás, já pensou em fazer Letras? Os bacharelados em estudos literários são uma ótima opção para quem ama trabalhar com literatura! ♡)

B2 – Avançado

Tudo não é interpretação!
Sou capaz de fazer uma análise estrutural da narrativa, bem fazer um close reading (leitura cerrada) ou uma análise comparativa de textos literariamente mais complexos. Contudo, não me sinto confortável com leituras que se guiem muito pelas experimentações com a linguagem, como fluxos de consciência, textos pós-modernos e certos tipos de poesia.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Procure cursos especializados ou disciplinas universitárias que se voltem para a leitura de textos como esses que te causam problemas. Valem os cursos de poesia pós-moderna, de leitura de James Joyce, de Virginia Woolf, Clarice Lispector ou Hilda Hilst. Existem muitas plataformas online e programas de extensão (normalmente, das universidades públicas) com esse tipo de curso. E quando encontrar muitas dificuldades, lembre-se de pesquisar os textos acadêmicos sobre o assunto. O Google Scholar é uma ótima ferramenta para encontrar esses materiais – e, muitos deles, gratuitamente!

C1 – Autônomo

O centro não é o centro!
Minhas habilidades de leitura me permitem apreciar um texto também pelo seu estilo de linguagem, para além da sua trama, e sou capaz de analisar um texto literário de diversas formas, a partir de perspectivas diferentes da teoria da literatura. No entanto, ainda dependo muito da crítica precedente para apoiar a minha própria crítica.

Dicas para aprimorar sua leitura:
Desafie-se! Leia obras da literatura contemporânea e faça o esforço de refletir sobre elas a sério, como faria com um texto já consolidado pela crítica. Lembre-se: o trabalho da crítica não é de exclusão, mas sim de trazer para o público grandes autores e autoras à espera de ser descobertos. Se possível, escreva, compartilhe suas críticas, debata com colegas e continue construindo seu repertório. Quanto mais você trabalhar essa habilidade, melhor você será nela, e em algum momento poderá se sentir mais confiante para propor outras críticas – suas, originais – até para obras já canonizadas.

C2 – Fluente

The fall (bababadal!)
Leio por ofício, não só por prazer. Tenho uma grande bagagem literária e conhecimento teórico, reconheço estruturas e índices e sinto segurança para fazer uma crítica inédita de um texto literariamente complexo, seja ele clássico ou contemporâneo, e posso levar à baila críticas feitas por outros com argumentos sólidos. Além disso, presto muita atenção às escolhas lexicais do autor e verifico sempre que possível os usos feitos no texto original, quando em outro idioma. Posso ler até o Finnegans Wake, se quiser!

Você chegou no último estágio! Uau!
Se chegou até aqui, você já sabe muito bem e melhor que eu como avançar nesse caminho da leitura literária profissional. Agora, quem sabe você não pode levar suas leituras para outros espaços e ajudar novos leitores nessa estrada dos tijolos amarelos? ❤ Seguimos!

Como ler poesia: dicas para desvendar o universo poético

Como ler poesia? Ler poesia é desafiador, mesmo para os leitores mais experientes. O que não quer dizer que não existam estratégias de análise que ajudem na empreitada. As informações a seguir pretendem ajudar você a se aventurar na leitura da poesia – e, quem sabe, ir até mais fundo nas suas experimentações.

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema.

Décio Pignatari

Sintagma e paradigma

Segundo Pignatari, no livro O que é comunicação poética (Ateliê Editorial, 2011) a contiguidade (proximidade) e a similaridade (semelhança) são os dois processos de associação ou organização das coisas, que foram o eixo da seleção, chamado de paradigma, e o eixo da combinação, a que se chama sintagma.

Quando duas (ou mais) coisas se associam por características comuns a si, as associamos pelo eixo paradigmático (o da similaridade). Observe o mosaico abaixo, que ilustra a questão:

Certamente, é só bater os olhos para reparar que os objetos em questão, embora sejam das mais variadas naturezas, partilham de uma mesma cor, o verde, que é seu paradigma. Agora observe a seguinte imagem:

O cardápio acima oferece opções de sorvete, dentre os quais o consumidor deverá escolher o (ou os) que deseja. Se, além do sorvete, ele também escolhe um prato salgado e uma bebida entre as opções, ele irá criar um sintagma, ou seja, uma seleção ou reunião, a partir de escolhas dentro de conjuntos de pratos, bebidas e sobremesas.


Metáfora e metonímia

De acordo com o linguista Jakobson, a metonímia (a tomada da parte pelo todo) e a metáfora (a semelhança entre duas coisas, apresentada por uma palavra ou conjunto de palavras) são as duas figuras de linguagem que predominam nessa lógica, sendo que a metonímia prevalece no sintagma e a metáfora no paradigma.

Pensemos agora nas seguintes frases:

(a) Maria é flor.

Associamos as duas partes, sujeito e predicado, numa metáfora, por contiguidade, que aproxima não as duas palavras em si, mas as duas coisas: entre Maria e a “flor”, deve haver características comuns: o perfume, a delicadeza, ou algo mais. Agora leia a próxima:

(b) Flora é flor.

Nesse caso, além da metáfora do primeiro exemplo, temos ainda a semelhança entre as duas palavras “Flora” e “flor”, fazendo que a semelhança entre os objetos seja traduzida também nos sons das palavras que os designam. A semelhança dos sons entre palavras ou numa mesma palavra é chamada paronomásia, e é ela que possibilita o trocadilho e a poesia. Para facilitar, a metáfora aproxima a semelhança de duas coisas (significados), e a paronomásia, de duas palavras.

Quando o eixo da similaridade se projeta sobre o eixo da continuidade, é quando a linguagem apresenta a sua função poética – é o que concluiu Jakobson. Na terminologia de Pierce, a marca dessa função é a projeção do ícone sobre o símbolo (ou seja, transformar o símbolo, a palavra, em ícone: figura). Podemos ainda pensar nos termos do analógico que se projeta sobre o lógico.


Paronomásia

Exemplos são uma boa forma de entrar neste tópico. Então, diga, o que você observa em cada imagem abaixo?

As paronomásias podem ocorrer em diferentes formas: (i) a paronomásia propriamente dita, (ii) o anagrama, (iii) a aliteração e (iv) a rima. Os exemplos abaixo ilustram cada tipo, respectivamente:

1 — Paronomásia (propriamente dita)

Há soldados armados, amados ou não

— Geraldo Vandré

2 — Anagrama

Amortemor – Augusto de Campos

3 — Aliteração

Se Sara sarar do sarampo
Sara será sereia
pois sara não é feia
embora não seja um anjo
merece um solo de banjo

– Chacal

4 — Rima

Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?

– Cacaso

Ritmo

O ritmo se configura como a divisão no tempo e no espaço de elementos verbovocovisuais (verbais, vocais, visuais). Na linha ocidental, há quatro tipos básicos de ritmo, a serem mostrados a seguir.

(a) Binário ascendente

Um som fraco (breve) seguido de um forte (longo): – —

A coi-sa con-tra a coi-sa (Orides Fontela)

(b) Binário descendente

Um som forte seguido de um fraco: — –

es-sas plan-tas fo-ram vin-do (Ana Martins Marques)

(c) Ternário ascendente

Dois sons fracos seguidos de um forte: – – —

Pe-las on-das do mar sem li-mi-tes (Álvares de Azevedo)

(d) Ternário descendente

Um som forte seguidos de dois fracos: — – –

Fa-ses que vão e que vêm (Cecília Meireles)

Métrica

As possibilidades rítmicas da tradição luso-brasileira se configuram, em geral, por meio de algumas regras. Para conhecê-las, é preciso lembrar que:

(1) As sílabas são contadas apenas até a última tônica (sílaba forte);
(2) A sílaba terminada em vogal átona (fraca) faz elisão (ou seja, emenda) com a vogal átona seguinte, e por isso contam apenas como uma sílaba;
(3) Os acentos das regras são os obrigatórios, não excluindo as possibilidades de outros.

Vamos lá!

a) Versos de 5 e 7 sílabas

Acentue onde quiser. Os versos de 5 sílabas (os pentassílabos) são chamados de redondilha menor. Os de 7 (heptassílabos), redondilha maior.

U | ma | pa | la | vra | se | a | bre (Emily Dickinson)

b) Versos de 8 sílabas

Os acentos tônicos vão na 4ª e na 8ª, ou então na 2ª (ou 3ª), na 5ª e na 8ª.

c) Versos de 9 sílabas

Acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas ou na 4ª e na 9ª.

d) Versos de 10 sílabas (decassílabos)

Acentos na 6ª e na 10ª, ou na 4ª, 8ª e 10ª.

e) Versos de 11 sílabas (hendecassílabos)

Acentos na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª, ou na 5ª e na 11ª, ou ainda na 3ª , 7ª e 11ª.

f) Versos de 12 sílabas (Alexandrinos)

Há três tipos:

  • Acentos na 4ª, 8ª e 12ª – o mais fácil e comum.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que o da 6ª caia em palavra oxítona, marcando o meio do verso.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que a 6ª caia em palavra paroxítona terminada em vogal átona, de modo a fazer elisão (emendar) com a vogal átona seguinte, formando a 7ª sílaba.

Os versos que possuem métrica mas não rima são chamados de versos brancos, enquanto aqueles que não se valem de nenhum dos dois se chamam versos livres.


Rima

Apesar de ser tipicamente reconhecida como paronomásia, as rimas merecem um tópico à parte. Elas são, via de regra, as semelhanças entre os sons que se encontram verticalmente no final dos versos. As rimas mais previsíveis (ar, ão, eira, osa, etc.) são menos prestigiadas, porque informam menos. Rimas menos prováveis informam mais, e por isso têm mais crédito. A rima também pode ocorrer dentro do próprio verbo, como faz Poe em O Corvo, ou ser incompleta (toante), quando só as vogais se assemelham, como no exemplo abaixo:

Pode ser magrela, pode ser retinta
Porte de gazela, olho de leoa
Ser muito versada e hábil com a língua
Do tipo que domina idiomas
Mas ela não samba (...)

Já Reparô? – Adriana Calcanhotto

Os tipos de Pound

Ezra Pound define três tipos fundamentais de poema. São eles os que se sobrepõe a fanopeia, a melopeia ou a logopeia.

Na fanopeia… sobressaem as imagens, as comparações e metáforas.
Na melopeia… sobressai a musicalidade.
Na logopeia… as ideias são o principal, e por isso se aproxima mais da prosa.

No poema acima, de Leminski, qual das três correntes parece predominar? E no trecho a seguir, de Fernando Pessoa?

Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo 
(...)

"Tabacaria" – Fernando Pessoa

Outros caminhos

O poema ao lado, de Anatol Knotek, além de brincar com os sentidos das palavras, se atreve também a pensar sua forma no papel. Ela não obedece a lógica linear comum dos poemas tradicionais, e trabalha em conjunto os significados dos signos (as palavras), o desbotamento da cor e o sumiço de certas letras, criando novas percepções.

O poema abaixo, de Antero de Alda, também não se permite ler pela lógica tradicional. Ele pressupõe seu “desenho” como parte indispensável da leitura, não podendo, por isso mesmo, se reduzir às palavras que o compõem. Veja você!

Também o poema O Pulsar, de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso, partilha desse jogo de sentidos que se dá por meio dos desenhos do próprio poema:

Poema de Augusto de Campos / Canção de Caetano Veloso

Para encerrar, deixo para vocês a sugestão de leitura que inspirou este post, o livro O que é comunicação poéticade Décio Pignatari. Outras leituras que podem inspirá-los também se encontram em ABC da Literatura, de Ezra Pound, Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, Linguística e Comunicação, de Jakobson, O Que é Poesia Marginal, de Glauco Matoso, e O Arco e a Lira, de Octavio Paz.

Como ler Tragédias Gregas: um guia conciso

Algumas das maiores obras preservadas pelos séculos na literatura ocidental têm origem na Grécia Antiga. Poderia estar me referindo à Ilíada, ou à Odisseia, mas me refiro a uma categoria distinta e mais ampla: a tragédia grega, consagrada especialmente pelas peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, três dos maiores dramaturgos da Antiguidade.

Quem nunca ouviu falar no Complexo de Édipo? Ora, o termo freudiano, não por acaso, provém do personagem homônimo, protagonista da peça de Sófocles, Édipo Rei, uma das obras mais célebres da história, que apresenta a desgraça do homem que matou o próprio pai e desposou a mãe, fugindo da própria sina.

Do mesmo autor são as obras Antígona e Édipo em Colono, que junto da primeira compõem a chamada Trilogia Tebana. Aquela, por sua vez, tragédia que conta o triste destino da prole incestuosa de Édipo, destruída na luta pelo trono deixado pelo pai, e esta a ocasião de Édipo a vagar em busca de sua morte.

Ésquilo, Sófocles e Eurípides

Não menos notável é a obra de Eurípides, que assina peças como Medeia e As Bacantes, ou a de Ésquilo, autor de OréstiaOs Persas, entre outras de igual importância. Não é pouco se atrever a ler esses textos, que são parte das maiores e mais ilustres referências literárias da humanidade, mas o desafio pode ser um pouco menor quando sabemos o que procurar nessas leituras – além do deleite e do autoconhecimento. Alguns importantes conceitos para essa empreitada, logo abaixo, podem ajudar a desvendar a tragédia grega. Vamos a eles.

Poética de Aristóteles

A Poética, escrita pelo filósofo discípulo de Platão no século IV a.C., é um conjunto de notas sobre arte, supostamente originárias de suas aulas, nas quais discorre sobre conceitos como a Catarse, a Mímeses, a Anagnorisis, o Mythos, a Peripeteia e outros mais. Considerada durante anos como normativa, hoje se levanta a hipótese de que se trataria antes de um documento descritivo da arte clássica. Independentemente de quais das teses é a correta, a Poética é sem dúvida um dos mais importantes textos para compreender a tragédia antiga.

Catarse

Embora usado corriqueiramente para designar algo como “empatia”, o termo não é muito claro. Aristóteles o menciona associando-o a um sentimento de terror e piedade que ocorre no espectador durante um espetáculo teatral, gerando sua purgação. Para além da banalidade da ideia da identificação com os personagens (já disse Freud: somos todos Édipos), há também os aspectos do horror de seu destino, e a compaixão pelo que ocorre. Em termos simples, isso é catarse. Mas os termos simples são redutores, vale sempre lembrar, e por isso é importante não se limitar a essa visão do termo.

Hybris, Hamartía e Moira

Três dos conceitos mais fundamentais para compreender a tragédia grega, a qual era estruturada com propósito de mais que divertir, mas educar os gregos para a cidadania, são eles a síntese da estrutura do enredo trágico.

O primeiro deles, hybris, pode ser compreendido como o excesso. Este excesso se vê em todas as peças mencionadas na nossa introdução, mas a título de exemplo pensemos o caso de Medeia, que não escuta o conselho da pólis (o conselho da cidade), e vai até o fim na vingança contra Jasão, ultrapassando a sua justa-medida (o métron). O caso de Édipo, também muito exemplar, traz à tona em sua hybris a luta contra o seu destino – luta, portanto, contra os deuses –, que faz com que o personagem entre num conflito em que não poderá sair vencedor.

Associado a este conceito está o da hamartía, a assim chamada falha trágica. Tal falha, ou erro, não advém do caráter “mau” de um personagem, mas de um erro de cálculo que o leva ao desencadeamento funesto de sua história. Voltando a Édipo, como exemplo, o fato de não conhecer sua verdadeira identidade faz com que ele cometa crimes terríveis contra as leis divinas, recaindo sobre o terceiro dos conceitos: a Moira.

O último dos três termos equivale à força do Destino. A Moira, mais poderosa que os outros deuses, pois é quem governa o fio da vida de cada um deles, também gere as profecias que levarão o herói trágico ao desenlace sinistro de sua trama. Assim, finalizando com a obra-prima sofocliana, a piedade que temos de Édipo vem de sabermos que seu destino já estava selado muito antes de que tivesse a possibilidade de se tornar culpado por ele. Mas para a tragédia grega, a consciência ou não do crime não isenta quem o cometeu de sua responsabilidade: temos, então, em desfecho, Édipo, que se cega, e Jocasta, sua mãe, que se suicida ao conhecer a identidade de seu marido.

Nêmesis

Para nossa sociedade contemporânea, talvez pareça um tanto quanto demais que esses personagens sejam culpados e penalizados por fatos que estavam além do seu controle ou alcance, mas para a antiguidade esse desenredo é o que se entende por Nêmesis, a justiça divina – esta que é muito distinta do que temos por justiça, mas que era o acerto de contas, a Lei do Talião, daquela época e daquela cultura. É isso o que leva, por exemplo, ao fatídico fim de Penteu, que é destroçado pelas bacantes, na peça de mesmo nome (só por curiosidade: em grego, esse processo se chama sparagmós).

Deus ex machina

Outro conceito interessante de se ter em mente é este: Deus ex machina, o deus da máquina, aquele elemento, personagem ou saída inesperada que surge ao final para resolver milagrosamente o final catastrófico da trama. O exemplo mais clássico talvez seja o final de Medeia, quando o carro do Sol – que até então não era parte da narrativa –surge ao fim da peça para que Medeia escape à ira de Jasão.

Medeia foge no carro do Sol, em pintura de Charles Andre Van Loo (1759).

Curiosidade

O (polêmico) diretor Woody Allen, traz para a sua composição no filme Poderosa Afrodite (1995) diversos elementos típicos do teatro grego, brincando com sua estrutura e estética… Te desafiamos a identificá-los!

Entre Drummond e Borges

Carlos Drummond de Andrade e Jorge Luis Borges cresceram e criaram suas literaturas em contextos muito similares: embora nunca tenham chegado a se conhecer, os dois foram escritores a presenciar as grandes mudanças da modernidade, a vida da cidade, o conturbado começo do século XX e suas grandes marcas na história. Apesar de o primeiro ter se alçado principalmente como poeta, enquanto o segundo se destaca pelos seus contos, semelhanças relevantes permeiam a literatura desses dois nomes de peso da América do Sul. O texto a seguir apresenta algumas das ligações entre os autores, a partir dos aspectos fundamentais de suas obras.

Tão complexa é a realidade (…) que um narrador onisciente poderia redigir um número indefinido, e quase infinito, de biografias de um homem.

(Jorge Luis BORGES)

A partir dessa citação, é possível observar que na obra borgeana há toda uma apropriação da realidade que assume o pressuposto da multiplicidade e do momentâneo: as muitas camadas do real se sobrepõem e através do seu recorte de imagens e de seu consecutivo desvio se delineia um “caos de aparências” que atravessa a literatura do autor.

Nesse sentido, o argentino delimita um olhar sobre a realidade em que o objetivo não é a mímeses, mas o simulacro metafórico que prescinde de referentes extratextuais. Por essa mesma razão, os personagens borgeanos não são psicologizados, e a ênfase se dá sobre a trama, motivo pelo qual a brevidade se mostra um recurso estilístico recorrente, dialogando com a tradição literária (e não apenas a argentina) em vistas de questioná-la e não enfeitar a flor, propondo mesmo uma reflexão sobre o que significa criar uma literatura argentina – o que ultrapassa em muito a inserção de elementos da cor-local.

Ainda assim, a escrita borgeana se apropria, borra, e miniaturiza toda a tradição argentina do século XIX: parte do caráter popular de seus contos tem a clara influência da literatura gauchesca (marcas de oralidade, culto à coragem, à violência, etc.), como se percebe em Hombre de la esquina rosada, de Historia universal de la infamia, a título de exemplo.

Há também uma forte marca anti-intelectualista, no sentido de que a busca da verdade nas bibliotecas e nos livros não leva a lugar algum. Ela assume, por isso, um caráter populista, escolhendo buscar a verdade na vida do homem comum, ao mesmo tempo que busca a totalização no seu cosmopolitismo, na erudição e no manejo da cultura.

Também parte dessa busca a ideia de circunscrever a realidade através do olhar alheio, o que faz com que seus contos carreguem ares de transcrição de relatos de terceiros. Por isso mesmo, Borges se apropria do outro e distorce a realidade desse outro sem referente externo, até sobrar a imagem comunicada a partir de fragmentos coordenados de forma coerente, ainda que plural. O jogo borgeano é, portanto, o jogo das máscaras e dos contrastes, em que os personagens, a um só tempo, estão e não estão desmascarados, onde o rosto e a máscara se encontram num ponto de divergências.

O poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade

Por sua vez, Drummond se apropria da realidade amparando-se na ideia de registrá-la como se dela estivesse apartado, embora não o esteja de fato, e embora o faça através da estética modernista. A essa busca por limitar-se a registrar (fatos, acontecimentos, sentimentos), contrapõe-se o desejo de criar laços com o outro, motivo pelo qual se apropria das memórias do passado de todos: assim como Borges, revela um claro anseio pela totalização, que se espelha nas muitas menções à palavra “mundo” na sua poesia, como destaca Miguel Wisnik.

Insere-se, assim, o gosto por um cotidiano expandido, alargado, que, como Borges, guarda o traço popular na sua poética. Nesse sentido, livros com o A Rosa do Povo confeccionam uma espécie de epopeia do cotidiano, em que a busca por uma verdade recai inevitavelmente na verdade do homem simples, do qual o poeta se aproxima como uma alteridade, como no poema O Medo, que dialoga com seus próprios temores e sua subjetividade solitária, a exemplo de Consolo na praia.

Nesse aspecto, o eu e o mundo se aproximam, se distanciam, se contradizem e se complementam na medida em que o eu-poético questiona as possibilidades dessa coletividade e de se fazer poesia na cidade e no mundo moderno. Tal inquietude, por certo, permeia toda a construção literária do poeta itabirano: o cosmopolitismo drummondiano, à divergência do escritor porteño, passa pelo sentimento de não pertencer a nenhum lugar ou grupo (“Itabira tornou-se apenas um retrato na parede”), marca de sua profunda solidão e seu senso de dépaysement, como se coloca na incompletude do poeta na roça e no elevador:

Explicação

Meu verso é minha consolação
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre…
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
Mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, [preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola…
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de quaquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era…
no elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

(DRUMMOND, Explicação. In: Alguma Poesia – 1915. Grifo nosso)

Nesses termos, o poeta mineiro demonstra apreender a realidade na perspectiva do objeto que escapa, como se quebrasse a própria possibilidade do fazer poético na bênção e na maldição de fazer parte do mundo moderno. Assim, indivíduo e mundo se flexionam constantemente, dando pistas da posição desse eu-poético frente a esse novo mundo: deslocado, inadequado, anacrônico, que carrega desde seu primeiro verso a profecia gauche (“Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.), mas que se força a esse espaço fronteiriço na postura de reconhecer-se enquanto falta ou sobra, como inclusão excludente, fazendo que essa poesia se insurja contra a “grande máquina” que coisifica pessoas e relações, mas também contra as palavras, colocando-se como uma arte anárquica que subverte o seu sentido. Desse modo, é como se essa procura pela poesia não se afastasse da procura do mundo, em que Drummond se coloca como condenado: ainda bem.

Este texto foi concebido como trabalho final para a disciplina Borges e Drummond, ministrada pelo prof. Roberto Said da Faculdade de Letras da UFMG.

Repensando Vênus

Miguel Spinelli abre seu artigo acerca de De rerum natura, de Lucrécio, com o questionamento da tradução do título. Segundo o autor, se a tradição tende a preferir “Da natureza das coisas”, fórmula mais apurada seria “Das coisas naturais”, o que, de fato, altera em muito o sentido atribuído, e se aplica melhor ao conteúdo do poema.

Em seguida, disserta sobre a abertura do livro, que contempla a invocação a Vênus, “Enéadas genitora”, e as apropriações do mito de Enéias derivado das narrativas da Ilíada de Homero. Eneida e De rerum natura, cujos autores, Virgílio e Lucrécio, são praticamente contemporâneos, denotam o mesmo ethos, tencionando unir o lendário e o real, assim como a herança grega ao berço romano, de acordo com Spinelli. Assim, ele explica, a figura de Vênus foi muito cultuada porque, sendo mãe de Enéias, era tida também como mãe de todos os romanos.

O poema de Lucrécio, no entanto, descreve em seu conjunto o ciclo das coisas naturais, desde a geração até a morte, dando início à tradição filosófica dos estudos da phýsis. Seguindo uma linha de pensamento epicurista, o poeta desloca a questão “o que é o ser?” para o pólo “o que é ou não natural do ser?”. Assim, em sua elucubração, ele defende que nada vem do nada, e tampouco retorna ao nada, sendo os processos de todas as coisas determinados pelo arranjo, desarranjo ou rearranjo dos átomos.

Spinelli disserta, então, quanto às fontes para o poema em questão. Duas delas são manuscritos conservados hoje na Universidade de Leyden, o Oblongus e o Quadratus, que tiveram como títulos De rerum natura, o primeiro, e De physica rerum origine vel effectu, o segundo. Além desses, há os códices chamados Itali, cópias feitas no século XV por Bracciolini, e que deram origem à tradição italiana dos estudos do poema.

O autor apresenta, depois, o que se poderia considerar, à primeira vista, um paradoxo da obra: a invocação de Vênus e a mensagem do livro, de que não há ou houve criação divina, sendo os átomos a origem de tudo. Sua lógica parte do pressuposto (já conhecido de Cícero) de que os deuses são desinteressados e impassíveis às questões humanas, e que em nada interferem.

Assim, se os deuses não se comovem das preces, por que invocar a Vênus logo ao início para frutificar as palavras e apartar as guerras? Dentre as razões apresentadas por Spinelli, existe Mêmio, a quem o poema é dedicado, cuja família cultuava a deusa, e a reverência aos romanos, que tinham Vênus em grande estatuto, por ser a “mãe” de seu povo.

Na perspectiva de Lucrécio, contudo, Vênus governava a natureza junto de Ver (a Primavera) e Ceres (deusa da colheita e da fertilidade), sendo, nesse sentido, a Alma Venus cultuada pelo poeta aquela responsável por promover, alimentar e nutrir a fertilização da vida. Era também ela a responsável, junto a Cupido e Primavera, por unir e festejar a fertilidade dos amantes, fazendo com que se encontrassem e se apaixonassem.

Desse modo, a Vênus de Lucrécio apresenta várias faces, dentre as quais as de musa, de mãe, de cupido, de Alma Venus e também de vulgívaga, que muito para além do arquétipo da meretriz, carrega a representação da mulher volúvel, inconstante e mutável. Todos esses predicados, por sua vez, fazem que sua síntese reapareça em uma palavra, de acordo com Spinelli: amor. Em suas muitas individualidades, esse amor poderia aparecer como amor calmo, altruísta, terno, mas também como o ardoroso e efervescente amor da paixão. (lembrando que Lucrécio, por seguir a linhagem epicurista, tende a pensar o amor-paixão como causador de mais dor que alegrias.)

Em conclusão, a figuração de Vênus retoma o ícone da fertilização da vida: eis a razão de ser uma deusa de todos os povos, mãe de todas as formas de amor.


SPINELLI, Miguel. Lucrécio E Virgílio As Várias Faces De Vênus: Musa, Genitora E Vulgívaga. Hypnos, São Paulo, n. 23, p.258-277, 2009.

Uma décima musa? A Afrodite de Tito Lucrécio

Pensador Da Natureza das Coisas: quem foi Tito Lucrécio?

Imagem de T. Lucrécio (59 a.C. – 17 d.C.)

São poucas as informações que chegaram até nós a respeito da vida e produção de Tito Lucrécio, autor de De rerum natura – épica-didática traduzida para o português como Da natureza das coisas (em algumas traduções, Da natureza do Universo). Apesar de tal ausência de material biográfica, sua obra, editada por Cícero postumamente, possui valor inestimável para a tradição filosófica e literária ocidental.

Resumidamente, a obra, dividida em seis capítulos diferentes, possui como temática geral questões que propõem uma libertação em relação às perspectivas mitológicas que envolvessem divindades ou falsas crenças. Apresenta, como o próprio título sugere, a naturalidade das coisas, além de uma metafísica excessiva. Para tanto, ele se vale principalmente de duas filosofias tradicionais: a atômica e a epicurista, sendo o responsável pela universalização da segunda.

Fora esses seis capítulos, ainda é acrescentado no livro um prólogo, do qual a introdução será analisada neste pequeno texto. Na primeira parte desse prólogo é feita uma invocação para a deusa Vênus. Já aqui, observamos um fato interessante: diferente dos poemas épicos da tradição homérica, Lucrécio invoca uma deusa que não é uma das nove musas do Olimpo, o que, ao mesmo tempo, ressignifica seu texto e atribui a deusa aclamada o estatuto de nova musa. Tal escolha pela deusa do amor está fortemente ligada ao caráter gerador da divindade, que estimula a procriação e que pode ser identificado nos versos:

19 incutindo a todos brando amor no peito, fazes que cupidamente, todos se

20 propaguem por séculos de geração em geração.

Outro traço que justifica a escolha, está relacionado ao apelo que o poeta faz ao leitor romano, familiarizado com os cultos ao deus Marte, em outras palavras, a convivência com a guerra e o combate constantes. Mitologicamente, Marte e Vênus possuem uma relação amorosa, que pode ser interpretada, nas palavras do poeta, como uma relação necessária entre o Amor e a Guerra, paz e luta:

29 Nesse ínterim, faze que os feros trabalhos da guerra

30 por mares e todas as terras repousem aplacados.

31 Pois tu somente podes com paz tranquila socorrer

32 os mortais, uma vez que Marte armipotente rege os feros trabalhos

33 da guerra, que, muitas vezes, no teu regaço se

34 aninha, vencido de eterna ferida de amor

Tal proximidade, apesar de inovadora na construção do prólogo da obra, já se apresentava na cultura grega. A palavra em grego μειγνυμι (meignymi) é um bom exemplo de como já no berço da cultura ocidental não havia uma separação categórica entre a Guerra e o Amor/Desejo. Este vocábulo apresenta duas traduções possíveis para o português: relação sexual ou combate, luta; em síntese, uma relação ‘corpo a corpo’.

É importante lembrarmos que, como disse Horácio, um dos maiores nomes da literatura latina, graecia capta ferum victorem cepit, em tradução: “a Grécia, conquistada, conquistou os selvagens vitoriosos”, frase que confirma e assume as diversas influências e recorrências de signos gregos na literatura e filosofia latina.

Finalmente, nos últimos versos da invocação à deusa, o poeta descreve com que labor a deidade conduz o deus Marte para a paz; é justamente a capacidade de tranquilizar os ânimos, a “leveza” das palavras, que Lucrécio pede à Vênus. Tal pedido guarda em si uma ambiguidade, pois, por mais que se distancie de um pensamento que alinhe as divindades e o mundo, o autor começa seu texto filosófico pedindo os encantos de um deus.

Microfilmagem da primeira parte de De rerum natura.

Quatro mitos modernos

Assim como a Antiguidade Clássica, que deu à luz de Édipo à Odisseia, a modernidade também produziu sua mitologia, inserida e inspirada nos seus próprios temores e situações históricas. Este artigo se propõe a apresentar brevemente como mitos modernos quatro histórias de terror, horror e mistério: O Médico e o Monstro,  de Robert Louis Stevenson, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, e Drácula, de Bram Stoker.

O Médico e o Monstro

deixa no âmbito do não-dito um mal metafórico que se expõe através da figura do doppelgänger (o duplo), aquele que se vale de uma máscara da inocência para agir de maneira livre, mas monstruosa. O mito, pensado em seu contexto, sugere o trabalho sobre um medo que pairava pelo Império Britânico da Era Vitoriana, a terra em que “o sol nunca se põe”. Nesse período, em que a potência vem a conhecer o colonialismo, a industrialização e o avanço científico, surge um temor relativo ao próprio avanço do tempo: afinal, quanto é possível perder, e ainda permanecer humano?

O medo da modernidade e do quanto o contato com outros povos, de culturas completamente diferentes, “bárbaras”, influenciado também pelas novas ideias vindas do evolucionismo darwiniano, das correntes realista e naturalista, e do conflito de classes exposto por Marx, traz em sua sombra o receio de que essas novidades pudessem vir a corromper a suposta pureza dos ingleses, criando uma mal-estar social que aparece retratado nas figuras míticas de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, protagonistas de O Médico e o Monstro.

O Retrato de Dorian Gray

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Companhia das Letras.

O segundo mito, clássico de Oscar Wilde, dá luz ao hedonismo de Lorde Henry, que influencia o jovem Dorian, levando-o a crer que no poder absoluto da beleza. Para que ele possa mantê-la, o retrato de Dorian envelhece em seu lugar, enquanto o homem comete diversos crimes e atrocidades.

O mito também sugere algumas das inquietações dos anos 1890, depois da revolucionária teoria freudiana sobre o inconsciente, onde, muito sucintamente, se alojam desejos e necessidades recalcados. À vista disso, muitos acreditavam que a libertação dessas paixões, escondidas nesse aparato orgânico, poderia gerar barbaridades terríveis.

Questionava-se, então e finalmente, a própria validade do conhecimento científico. Afinal, as conquistas científicas, como a descoberta do inconsciente, levariam a humanidade a uma evolução moral? À época, e ainda hoje, o avanço da ciência não necessariamente anda a par do avanço social, e certamente descobertas e invenções usadas sem senso de responsabilidade e ética podem conduzir a catástrofes históricas, como foi o caso do nazismo alemão ou do imperialismo europeu.

A Ilha do Dr. Moreau

A Ilha do Dr. Moreau, à sua vez, narra a história de um náufrago, Edward Prendick, que é deixado em uma ilha com o protagonista que dá título ao livro. Edward descobre, para seu espanto, que o médico fazia experimentos de vivissecção, mas fica a dúvida se tais experimentos transformavam animais em humanos ou o contrário. Questionado, o Dr. Moreau explica que seu intento é retirar cirurgicamente a “animalidade” dos bichos da ilha.

A dor e a crueldade apresentam-se como temas em pauta, assim como a responsabilidade moral e os efeitos da interferência humana na natureza. O Dr. Moreau busca um conhecimento que é proibido, e a um só tempo é condenado e admirado por essa busca. O receio do declínio do imperialismo branco, que era pensado como modelo de moralidade, e quais seriam as consequências desse declínio para a civilização, se insurgem como ideias fundadoras para a ficção, dando vazão a um medo que era, este sim, real.

Drácula

O último mito, provavelmente o mais famoso, é Drácula, um romance epistolar de dilemas psicológicos. Sendo um vampiro, o conde que nomeia o livro é, portanto, uma criatura perversa, que se alimenta de sangue e que é imortal. Para além da fantasia, a história critica a burguesia, sendo Drácula um aristocrata que se alimenta do sangue camponês. Ela traz também o conflito entre o romântico e o racional, representado pela disputa entre o que é lendário e a “ciência”, e discute tabus, como a animalidade do homem (shape-shifter), a disputa entre homem e Deus, que se instaura na condição e busca da imortalidade, e a própria paixão feminina, que era até então negada pela sociedade.

Fica claro que além de entretenimento, os mitos modernos, assim como os antigos, podem ser analisados como tentativas ficcionais de explicar costumes, crenças, medos e instituições sociais, os quais se tornam recuperáveis através da análise comparativa entre a condição literária e o passo da história.

P.S.

JEHA, Júlio. Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

Este pequeno artigo foi inspirado em uma palestra ministrada pelo doutor e professor Júlio Jeha, da Faculdade de Letras da UFMG, no dia 13 de maio de 2016, para a disciplina de Introdução à Literatura Comparada. Jeha possui inúmeros trabalhos ligados à literatura de monstruosidade e as vastas relações que ela estabelece com o tempo moderno e mesmo o contemporâneo.

Por isso mesmo, se ficou interessado no tema, confira a obra Monstros e monstruosidades na literatura, desenvolvida por Júlio Jeha, e que traz uma análise muito mais aprofundada dos livros supracitados, além de outros que também fazem parte desse universo.

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