Uma décima musa? A Afrodite de Tito Lucrécio

Pensador Da Natureza das Coisas: quem foi Tito Lucrécio?

Imagem de T. Lucrécio (59 a.C. – 17 d.C.)

São poucas as informações que chegaram até nós a respeito da vida e produção de Tito Lucrécio, autor de De rerum natura – épica-didática traduzida para o português como Da natureza das coisas (em algumas traduções, Da natureza do Universo). Apesar de tal ausência de material biográfica, sua obra, editada por Cícero postumamente, possui valor inestimável para a tradição filosófica e literária ocidental.

Resumidamente, a obra, dividida em seis capítulos diferentes, possui como temática geral questões que propõem uma libertação em relação às perspectivas mitológicas que envolvessem divindades ou falsas crenças. Apresenta, como o próprio título sugere, a naturalidade das coisas, além de uma metafísica excessiva. Para tanto, ele se vale principalmente de duas filosofias tradicionais: a atômica e a epicurista, sendo o responsável pela universalização da segunda.

Fora esses seis capítulos, ainda é acrescentado no livro um prólogo, do qual a introdução será analisada neste pequeno texto. Na primeira parte desse prólogo é feita uma invocação para a deusa Vênus. Já aqui, observamos um fato interessante: diferente dos poemas épicos da tradição homérica, Lucrécio invoca uma deusa que não é uma das nove musas do Olimpo, o que, ao mesmo tempo, ressignifica seu texto e atribui a deusa aclamada o estatuto de nova musa. Tal escolha pela deusa do amor está fortemente ligada ao caráter gerador da divindade, que estimula a procriação e que pode ser identificado nos versos:

19 incutindo a todos brando amor no peito, fazes que cupidamente, todos se

20 propaguem por séculos de geração em geração.

Outro traço que justifica a escolha, está relacionado ao apelo que o poeta faz ao leitor romano, familiarizado com os cultos ao deus Marte, em outras palavras, a convivência com a guerra e o combate constantes. Mitologicamente, Marte e Vênus possuem uma relação amorosa, que pode ser interpretada, nas palavras do poeta, como uma relação necessária entre o Amor e a Guerra, paz e luta:

29 Nesse ínterim, faze que os feros trabalhos da guerra

30 por mares e todas as terras repousem aplacados.

31 Pois tu somente podes com paz tranquila socorrer

32 os mortais, uma vez que Marte armipotente rege os feros trabalhos

33 da guerra, que, muitas vezes, no teu regaço se

34 aninha, vencido de eterna ferida de amor

Tal proximidade, apesar de inovadora na construção do prólogo da obra, já se apresentava na cultura grega. A palavra em grego μειγνυμι (meignymi) é um bom exemplo de como já no berço da cultura ocidental não havia uma separação categórica entre a Guerra e o Amor/Desejo. Este vocábulo apresenta duas traduções possíveis para o português: relação sexual ou combate, luta; em síntese, uma relação ‘corpo a corpo’.

É importante lembrarmos que, como disse Horácio, um dos maiores nomes da literatura latina, graecia capta ferum victorem cepit, em tradução: “a Grécia, conquistada, conquistou os selvagens vitoriosos”, frase que confirma e assume as diversas influências e recorrências de signos gregos na literatura e filosofia latina.

Finalmente, nos últimos versos da invocação à deusa, o poeta descreve com que labor a deidade conduz o deus Marte para a paz; é justamente a capacidade de tranquilizar os ânimos, a “leveza” das palavras, que Lucrécio pede à Vênus. Tal pedido guarda em si uma ambiguidade, pois, por mais que se distancie de um pensamento que alinhe as divindades e o mundo, o autor começa seu texto filosófico pedindo os encantos de um deus.

Microfilmagem da primeira parte de De rerum natura.

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