Como ler a Eneida de Virgílio?

Um dos livros que li no ano de 2023 foi a Eneida, de Virgílio, livro publicado postumamente no antigo Império Romano, por volta do século 1 A.C., que teve canonização quase imediata, sendo usado como material didático para jovens romanos serem alfabetizados na língua latina. Por ter achado a experiência definitivamente transformadora, decidi vir aqui compartilhar algumas dicas sobre como ler a Eneida de Virgílio, para aqueles que também querem enfrentar essa obra prima da literatura. Para isso nesta publicação decidi responder a algumas perguntas que as pessoas me fizeram, quando viam que o livro que eu estava lendo era a Eneida.

Sobre o que fala a Eneida?

A Eneida conta alguns anos da vida de de Eneias após a queda da cidade de Troia. Enquanto soldado troiano, inimigo dos gregos, Eneias é obrigado a reunir seu pai, seu filho, sua esposa, soldados e amigos para fugir de Ílio – outro nome para Troia – que tinha sido destruída durante os muitos anos da Guerra de Troia. 

O livro está dividido em doze capítulos (cantos ou livros, nome que varia de acordo com a tradução) e pode ser separado em duas grandes seções: a primeira, dos cantos 1 a 6, pode ser lida como inspirada pela Odisseia. Isso significa que nela assistimos a errância de Eneias pelo mar, passando por ilhas misteriosas e maravilhosas, e enfrentando desafios terríveis. Por sua vez, a segunda parte, cantos 7 a 12, se refere à seção “ilidíaca” do livro, na qual acontecem os confrontos em terra, nos quais Eneias é levado a enfrentar Turno, herói latino comparado a Aquiles. 

Para ler a Eneida é preciso ter lido a Ilíada e a Odisseia de Homero?

Essa é uma pergunta muito comum e a resposta é simples: NÃO

Apesar de essas três obras estarem em diálogo direto, você não necessariamente precisa lê-las na ordem cronológica de seus acontecimentos, que leva da Ilíada, passa pela Odisseia, para só então chegar a Eneida. Digo isso porque as três narrativas são autônomas e os poetas, Homero e Virgílio, oferecem tudo que você precisa saber em cada um dos seus poemas épicos.

Mas isso não significa, é claro, que as histórias não estão relacionadas. Porque, como eu disse antes, as três estão em diálogo direto e envolvem a famosa Guerra de Troia. 

Qual edição comprar?

Edição é um assunto realmente pessoal, porque cada uma das versões vai ter características particulares, que podem ou não chamar a nossa atenção. Por exemplo, eu gosto das traduções de poesia épica feitas por Carlos Alberto Nunes, porque o tradutor adota o verso hexâmetro dactílico: uma estrutura métrica formada por dezesseis sílabas, sempre intercalando uma sílaba forte (ou longa) com duas breves.

CAN – ta – me’a – -le -r’oh – DEU – sa – fu –NES – ta – d’a – QUI – les – pe – LI -da

De todo modo, se seu desejo é ler o texto em português, duas edições que gosto bastante são a da Editora 34 – que tem tradução justamente de Carlos Alberto Nunes – e a da Editora Autêntica, traduzida por João Carlos de Melo Mota. Ambas têm a vantagem de ser edições comentadas, que trazem detalhes interessantes e explicações para as passagens obscuras nos rodapés.



Vale à pena fazer leituras coletivas ou acompanhadas?

SIM! É claro que vale!

Na verdade, falando de minha própria experiência de leitura, ler em conjunto os poemas épicos faz com que eles sejam ainda mais… épicos! Esse gênero nasceu de uma tradição oral, ou seja, os poemas eram cantados, lidos em voz alta, fosse em momentos de celebração ou de memória. Por isso, trazer alguém para ler com você vai incrementar a experiência de recepção do texto. Fora que, de vez em quando, ler uma frase usando sua própria voz (e não o silêncio dos olhos) ajuda a entender melhor o que está sendo descrito.

Quanto às leituras guiadas e podcasts que procuram explicar o texto, eles são importantes e também têm o seu lugar no lado esquerdo do peito. Encarar sozinho um clássico da literatura nem sempre é tarefa fácil, e ter algum especialista ou leitor apaixonado destrinchando as passagens com você ameniza bastante o fardo que as páginas da Eneida podem trazer.

Inclusive, nós fizemos uma série de vídeos no canal do Duras Letras no Youtube, atravessando a Eneida, canto por canto, chamando a atenção para os detalhes.

Leitura da Eneida – Gabriel Reis Martins

12 Videos




Livro 1: Introdução à épica de Virgílio

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Livro 2: A queda e o Cavalo de Tróia

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Livro 3: Viagens de Eneias pelo mar

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Livro 4: Tragédia amorosa de Dido




Livro 5: Jogos para Anquises




Livro 6: Descida de Eneias ao mundo dos mortos




Livro 7: Ilíada de Virgílio e catálogo de heróis




Livro 8: O escudo de Eneias




Livro 9: O ataque dos rútulos e a aristeia de Turno




Livro 10: A impiedade de Eneias




Livro 11: Política e guerra com os latinos




Livro 12 — FINAL: Eneias versus Turno

O que é preciso para ler a Eneida?

Dizendo de maneira muito direta: um bom par de olhos (ou uma boa versão em audiobook).

Mas não há por que mentir, dizendo que se trata de um livro fácil ou coisa parecida. Na verdade, a leitura da Eneida pode ser lenta e complicada, com passagens que nos pedem muita atenção de vez em quando. Porém é o tipo de desafio que vale cada segundo, por cenas como a saída de Troia, no Canto 2: quando Eneias coloca o pai, um idoso, nas costas e pega o filho pela mão, arrastando os dois para fora da cidade em chamas. Ou pela cena de batalha de Turno, do Canto 9, quando sozinho ele invade o acampamento troiano e faz uma chacina. 

Enfim, encerro este texto dizendo que, para ler a Eneida, basta um pouquinho de desejo de ver belezas como essas: cenas que sobreviveram a mais de vinte séculos de história, para serem traduzidas, impressas e levadas para o gabinete, a página branca/tela na frente dos olhos.

Como escrever um ensaio acadêmico?

O mais certo seria escrever este texto de maneira ensaística. Porém, como vocês logo vão perceber, a forma ensaio pode ser enigmática e obscurecer um pouco as coisas, não podendo ser entendida e planejada como uma receita de bolo ou coisa parecida, já que o ensaio se desenrola e se desenvolve à medida que se escreve, e não inteiramente de antemão.

Como o intuito desta publicação é a objetividade, optamos por uma forma, digamos, menos aberta, mas não de todo fechada, para orientar escritores que querem ou precisam (por quaisquer motivos) escrever um ensaio acadêmico ou científico.

Antes de começar, no entanto, gostaríamos de dizer que o texto abaixo é uma adaptação de alguns trechos e comentários feitos por pesquisadores da Unicamp que comentam sobre o gênero. A ideia foi disponibilizar o conteúdo desse texto de um jeito mais descontraído. Esperamos que vocês façam bom proveito!

O que é um ensaio?

Antes de qualquer coisa, é muito importante destacar os adjetivos que você coloca depois da palavra “ensaio”: literário, científico, acadêmico, jornalístico, biográfico etc., porque, se você deseja escrever um ensaio, é preciso saber de que tipo de ensaio estamos falando, já que esse gênero textual é mutante e está presente tanto no vasto grupo das literaturas, quanto entre os vários gêneros acadêmicos.

Entende-se por ensaio um texto que, à maneira dos artigos, tem por pretensão apresentar ideias e pontos de vista a respeito de determinado assunto. Mas não se engane: o ensaio não é um simples texto dissertativo e/ou argumentativo, porque nele o escritor tem maior liberdade formal e não precisa explorar o tema principal de um jeito tão aprofundado e sistemático.

Nesse caso, é possível dizer que ao contrário de ter que defender e argumentar contra ou a favor de uma tese, no ensaio o escritor precisa desenvolver e sustentar uma hipótese. Nesse sentido, o ensaio pode ser entendido como uma tentativa, um lançar-se sobre um tema na busca de melhor compreendê-lo e situá-lo, sem ainda chegar ao ponto de construir uma visão sólida sobre ele.

O ensaio acadêmico

Esta é a modalidade mais utilizada nas universidades, principalmente nos cursos de Ciências Humanas. Em geral, os trabalhos finais de disciplina pedem justamente para que o aluno escreva um ensaio acadêmico sobre determinado assunto, levando em conta os textos que foram lidos e o conhecimento que foi adquirido ao longo das aulas, além da bagagem pessoal construída pelo estudante durante sua formação.

Normalmente, é avaliada tanto a pertinência das hipóteses apresentadas pelo autor como sua argumentação em favor dessas hipóteses, além da originalidade da escrita. Por esse último motivo, o ensaio também pode apresentar certa literariedade, já que é um espaço em que as marcas do estilo pessoal do autor não só são aceitas como também desejáveis. Dessa forma, em alguns casos, o ensaio tende a performar aquilo que apresenta por meio de sua linguagem.

A forma ensaística

Muita gente acredita que basta escrever na primeira pessoa do singular – “eu penso” ou “eu existo” – para que um texto adquira ares de ensaio.

Contudo, a primeira pessoa do singular pode ser uma grande armadilha, podendo levar o texto ensaístico a um discurso barato e opinativo, se não trouxer a necessária reflexividade e potência do pensamento que fazem do ensaio algo cativante e provocador para aquele que o lê.

Mais do que simplesmente usar o eu para marcar o discurso, a forma ensaística está na ousadia de quem ensaia, ou, dizendo de um outro modo, não reside na tentativa de convencer o leitor com argumentos frios, mas de convidá-lo a experimentar o texto como se experimenta uma dança – o que não quer dizer que a lógica e a coerência não sejam importantes aqui.

Estrutura

É durante o ensaio que se cria mais livremente, enquanto a coreografia ainda não está totalmente definida. Por isso, diferentemente dos artigos científicos, no ensaio os escritores têm muita liberdade formal; um ensaísta não precisa, por exemplo, respeitar estruturas do tipo introdução-desenvolvimento-conclusões, embora também não seja errado fazer um texto “fechadinho”. O ponto é que no ensaio pode-se desenvolver o argumento pelo caminho que melhor funcionar para o autor, sem seguir um modelo pré-formatado.

É claro que isso depende da revista, plataforma, e até daquilo que seus professores ou contratantes entendem por “ensaio”. No entanto, não há dúvidas de que esse gênero tem uma abertura formal difícil de encontrar em outros textos acadêmicos, diferente do artigo, do projeto ou do relatório, que são mais restritivos e rigorosos.

Agora, é preciso dizer também que “essa tal liberdade” formal pode embaralhar o começo da escrita, ficando o ensaísta sem saber muito bem por qual trilha seguir. É por isso que é comum encontrar algumas sugestões de estrutura, que podem ajudar na hora do bloqueio. Abaixo, deixamos alguns modelos para você se inspirar.

Ensaio descritivo
Apresenta, de forma expressiva, objetos, locais e eventos para que o leitor consiga vislumbrar e tenha uma sensação clara sobre aquilo que foi descrito.

Ensaio explicativo
Tem por objetivo descrever um termo ou fato específico através de outros termos, fatos e metáforas.

Ensaio narrativo
Descreve uma sucessão de eventos a partir de uma perspectiva subjetiva privilegiada e explicita o desenvolvimento pessoal do narrador em termos de experiências e reflexões.

Ensaio comparativo
Visa demonstrar relações e diferenças mais substanciais entre dois ou mais itens analisados.

Ensaio de persuasão
Pretende convencer o leitor sobre as ideias ou opiniões do autor. O autor precisa (a) demonstrar que seu ponto de vista é razoável, (b) manter a atenção do leitor ao longo do texto e (c) fornecer evidências fortes para sustentar o seu ponto de vista.

Ensaio reflexivo
Inicia-se com uma proposição e um argumento, a seguir apresenta um contra-argumento e, por fim, derruba o contra-argumento com um novo argumento.

Fonte: Redação Científica/Unicamp.

É claro que nenhuma dessas estruturas é definitiva, e é sempre importante considerar que possivelmente o tema discutido vai impactar na forma como você escreve e no percurso das letras diante da tela. Por isso, não se esqueça: esses modelos são apenas uma ignição para que você desenvolva sua própria estrutura textual, de acordo com o caminhar da redação. Na dúvida, tente estruturar o texto com apenas um tópico ou argumento por parágrafo, buscando passar de um tema ao próximo com sutileza para que o leitor não fique perdido. Afinal, você (provavelmente) quer que seu leitor te acompanhe nesse percurso. Certo?

Dicas de ouro

1. Distancie-se do texto. Dê a você mesmo, se for possível, um tempo para assimilar e refletir sobre o que está escrevendo. Ao se afastar do texto, pode ser que você faça novas conexões, perceba erros de que não tinha se dado conta ou queira acrescentar ou remover algo que faltou ou sobrou. Para isso, um intervalo entre a escrita e a releitura é fundamental e vai ajudar a melhorar seu ensaio.

2. Suavize suas afirmações. Pode parecer estranho (ainda mais se você cresceu praticando o “modelo Enem” de redação, em que não há muito espaço para antíteses e reflexões mais aprofundadas), mas ser categórico demais tira parte da força do seu texto. É preciso pensar que o que você está expondo não são fatos – contra os quais não há opiniões –, mas interpretações, conexões, tentativas de explicações, etc. Portanto, ao invés de escrever que “o que Sócrates quis dizer com o mito da caverna é que…”, é melhor modular a frase e propor algo como “o mito da caverna pode ser interpretado como…” ou “o mito nos leva a pensar que…”, etc. Além disso… É básico, mas não custa lembrar: evite escrever de maneira preconceituosa e/ou ofensiva. O cuidado com a escrita também é o cuidado com o outro que irá ler o seu texto.

3. Capriche na conclusão. Em especial, capriche na última frase, que você pode aproveitar para reforçar a ideia principal do texto de uma maneira marcante para o leitor. É com ela que seu leitor vai ficar depois de terminar a leitura, então vale a pena investir em algo que o deixará com a impressão desejada. Um final de impacto – e não de efeito – ainda tem seu lugar ao sol.

Por onde começar a ouvir Clube da Esquina

Por conta do “Top 10 álbuns” lançado pelo Podcast Discoteca Básica, o álbum Clube da Esquina (1972) entra mais uma e outra vez nos debates e ouvidos da população, tendo assumido a primeira posição em uma lista que contou com mais de quatrocentos discos avaliados por especialistas. O resultado dessa avaliação está sendo divulgado aos poucos pelos produtores do podcast citado, mas será disponibilizado, em definitivo, com a publicação do livro Os 500 maiores álbuns brasileiros de todos os tempos.

Mas o que será que faz de Clube da Esquina um disco tão especial? Por onde começar a  a escutá-lo e, mais, quais os motivos de seu destaque entre os melhores álbuns brasileiros já lançados?

Certamente, não há uma resposta única para essas perguntas. Ainda assim, uma breve viagem pela trajetória que leva ao célebre álbum de 1972 pode ajudar a esclarecer um pouco mais sua produção e também sua relevância e impacto enquanto “maior disco brasileiro de todos os tempos”, nas palavras dos produtores do Discoteca Básica.

Foto: Reprodução / O Tempo

O que é o Clube da Esquina?

Essa é uma pergunta importante para começar a entender o projeto musical que envolve o elepê duplo de 72. Isso porque, para alguns especialistas na obra do Clube da Esquina – como Sheila Diniz e Luiz Henrique Garcia – o nome não se refere especificamente a este ou àquele álbum (lembrando aqui também o lançamento de Clube da Esquina 2, de 1978, por Milton Nascimento), mas sim a uma formação cultural ou, ainda, um tipo de movimento musical feito a partir de Minas Gerais.

Nesse sentido, além de grupos e identidades sonoras como a Bossa Nova, a Tropicália, a Canção de Protesto e a Jovem Guarda, por exemplo, todas que ocorrem com certa proximidade e participam de um processo de modernização musical no Brasil, o país teria conhecido também uma inflexão musical encabeçada por um coletivo de músicos e letristas que passaram sua juventude na cidade de Belo Horizonte, e que acabaram ficando conhecidos pelo nome Clube da Esquina, por conta de uma canção e de dois elepês (que os consagraram).

Agora, com toda certeza, se visto enquanto movimento ou formação cultural, esse Clube acaba sendo muito maior do que a produção restrita de um disco, mesmo porque – segundo uma divisão já canônica, proposta por Leandro Garcia – sua trajetória data de 1967 até 1979, isto é, de quando Milton Nascimento lança seu primeiro elepê – Travessia (1967) – até o momento de publicação dos últimos trabalhos coletivos dos artistas envolvidos com o álbum Clube da Esquina, de 1972.

Por onde começar a ouvir?

Vamos voltar à pergunta chave desta publicação: por onde começar a ouvir e a entender Clube da Esquina? Bem, para ela, existem pelo menos duas respostas simples: a primeira delas, um tanto quanto óbvia, é partir diretamente para a escuta do elepê duplo de 1972 – ir direto na raiz. Afinal de contas, ele é certamente uma síntese dos elementos que, aos olhos da crítica e da historiografia musical brasileira, fazem parte não apenas da sonoridade específica do Clube, como também da modernização da canção popular no país. 

Porém, é interessante fazer uma escuta um pouco mais atenta do que de costume, pensando que o Clube da Esquina contém uma multidão e que, como mencionado anteriormente, se estende por cerca de dez anos de produção. Então, coloque o disco para tocar, mas se pergunte também: o que afinal define essa musicalidade?

Aqui vai uma dica, que também é uma redução um tanto quanto brusca: é possível dizer que existem três elementos de destaque na obra “mineira” – a “mineiridade”, a coletividade e a contradição – que são justamente os gatilhos para um experimentalismo de difícil comparação na música popular.

É claro que cada um desses traços poderia ser discutido longamente, mas deixo aqui apenas a sugestão de encontrá-los durante uma audição do disco de 1972. Repare, por exemplo, como “mineiridade” e contradição se manifestam no uso dos muitos signos tradicionais do estado, que são conjugados com elementos chamados “modernos”. Essa mistura entre tradição “regional” e modernização está tanto na musicalidade (com o uso de apitos, coro, órgão e tambores, associados a violão, bateria, guitarra, baixo, teclados eletrônicos e sintetizadores), como também nas letras das canções, que falam de trens, janelas que dão para cemitérios, estradas, ruas de uma capital provinciana etc.

Agora, no que diz respeito à coletividade, é interessante conhecer um pouco mais sobre a obra de cada artista que participou do álbum. Porém, pensando que são dezesseis envolvidos nessa concepção musical, minha sugestão é você restringir sua pesquisa a alguns nomes célebres: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes e o Som Imaginário, que cantam e tocam e dão o tom multifacetado que é encontrado em Clube da Esquina.

Isso nos leva para um caminho um tanto quanto paralelo àquele da primeira resposta, pois aponta para álbuns distintos do elepê duplo de 1972. Esses discos, no entanto, à sua própria maneira dão conta da produção musical mineira belo-horizontina e das tensões entre modernidade e tradição. Trata-se dos álbuns Milton (1970), assinado por Milton Nascimento; Som Imaginário (1970), do grupo de mesmo nome; Lô Borges (1972), do compositor homônimo; e Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli, Toninho Horta (1973), elepê que recebeu o nome de seus artistas.

Todas essas obras representam uma espécie de gestação musical pela qual os músicos e letristas “mineiros” estavam passando e, nesse ponto, pode-se dizer que são laboratórios. Ainda, repare como são trabalhos muito diferentes se comparados entre si, mas que, quando colocados ao lado de Clube da Esquina, encontram uma estranha sintonia com ele, em canções que funcionam como espelhos ou fragmentos de um mesmo mosaico.

Cada vez mais Clube da Esquina

Como se trata de um álbum duplo, com suas boas 21 canções, é bem comum descobrir novas faces e movimentos a cada vez que voltamos ao Clube, o que fica ainda melhor quando somos orientados a perceber alguns pequenos detalhes e também a colocar o elepê em paralelo com outras produções contemporâneas. Com o tempo, começam a saltar aos ouvidos elementos como os vocais de apoio e a guitarra de Beto Guedes; os momentos épicos e sombrios do piano de Wagner Tiso (em canções como “Cais” e “Um gosto de sol”); o surrealismo das paisagens construídas pelas canções de Lô Borges, que contrastam com o tom político e ritualístico encampado por Milton; etc.

Se realmente é o “melhor disco brasileiro de todos os tempos” é difícil dizer, porque esses juízos são sempre limitados e duvidosos, ainda que embasados em alguma medida. Mas sem dúvida alguma com Clube da Esquina estamos diante de uma obra prima da canção moderna e popular no Brasil, além de ser um dos discos sem os quais minha vida e minhas experiências estéticas estariam mais pobres. Com isso, fica, outra vez, o convite à escuta: escute Clube da Esquina!

https://www.youtube.com/watch?v=WwTf61AZNEo&t=51s
Texto por Gabriel Reis Martins

A família de Édipo: um resumo da tragédia grega

Apresentação

O nome de Édipo é, sem dúvida alguma, um dos mais consagrados da literatura, e sua fama ficou ainda maior quando Sigmund Freud, pai da psicanálise, se valeu do personagem grego para dar sentido a uma questão muito comum entre seus pacientes: o “Complexo de Édipo”. Mas, apesar de a personagem ser uma estrela importante na constelação literária, não é tão comum ouvirmos falar sobre sua origem e, principalmente, sobre sua genealogia: mesmo na clássica trilogia do tragediógrafo Sófocles – que inclui Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona –, nós não vemos presentes os antepassados de Édipo, e suas histórias são apenas levemente mencionadas.

Quem me iluminou quanto a essa ausência foi minha companheira, que lendo o livro A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelheim, comentou sobre um resumo preciso feito pelo psicanalista acerca das histórias que precedem a tragédia familiar de Édipo. E, pensando que o texto não é muito longo, nós decidimos compartilhá-lo aqui no Duras Letras.

Como o interesse principal desta publicação é o drama envolvendo o personagem clássico, tomei a liberdade de retirar do texto de Bettelheim os trechos nos quais ele faz paralelos entre a história edípica e os contos de fada (que são o objeto principal de seu livro). Por isso mesmo, aos que se interessarem por ver o texto integral de Bettelheim, recomendo acessar diretamente o livro do psicanalista.

A genealogia de Édipo – de Tântalo a Ismênia

Texto de Bruno Bettelheim (modificado)

Os contos de fadas não dizem a razão de um pai ser incapaz de apreciar que o filho cresça e o supere, e fique também com ciúmes da criança. Não sabemos porque a rainha em “Branca de Neve” não consegue envelhecer com graça e se satisfazer de modo substitutivo com a transformação e florescimento da menina numa moça adorável, mas algo deve ter acontecido no passado dela que a torna vulnerável e faz com que odeie uma criança que ela deveria amar. O ciclo de mitos de que a estória de Édipo é parte central ilustra como a sequência de gerações pode contribuir para o temor que os pais sentem dos filhos.

Tântalo

Este ciclo mítico, que termina com Os Sete Contra Tebas, começa com Tântalo, que, sendo amigo dos deuses, tentou testar a capacidade deles de saberem de tudo assassinando seu filho Pélope e servindo-o como jantar para os deuses. […] O mito conta que foi a vaidade de Tântalo que motivou sua ação malvada. […] Tântalo, que tentou enganar os deuses apresentando o corpo de seu filho como alimento, sofre eternamente no Inferno, sendo tentado a satisfazer sua fome e sede intermináveis com água e frutos que parecem estar a seu alcance, mas que se retraem quando ele tenta pegá-los. Assim, o crime é castigado no mito […].

Nas estória, a morte não significa necessariamente o fim da vida, pois Pélope é ressuscitado pelos deuses […]. A morte é mais um símbolo de que desejam sumir com esta pessoa – assim como a criança edípica não deseja realmente que o pai-competidor morra, mas simplesmente quer removê-lo de seu caminho para obter a atenção completa do outro pai. […] Tântalo foi um pai disposto a arriscar o bem-estar do filho para alimentar sua vaidade, e isto destruiu a ele e ao filho. Pélope, tendo sido usado desta forma pelo pai, não hesita mais adiante em matar um pai para conseguir seus objetivos.

Pélope

O Rei Enomaus de Elis desejava de modo egoísta guardar sua linda filha, Hipodamia, só para ele, e planejou um esquema no qual disfarçava este desejo e ao mesmo tempo se assegurava de que a filha nunca o deixaria. Qualquer pretendente de Hipodamia tinha que competir com o Rei Enomaus numa corrida de carruagens; se o pretendente ganhasse, podia casar-se com Hipodamia; se perdesse, o rei tinha direito de matá-lo, e ele sempre o fazia. Pélope sub-repticiamente substituiu as barras de cobre da carruagem do rei por outras de cera, e com isso ganhou a corrida, em que o rei morreu.

O mito indica que as consequências também são trágicas se um pai se utiliza erroneamente do filho para suas próprias finalidades, ou se o pai, devido a uma ligação edípica com a filha, tenta privá-la de uma vida própria, ou tirar a vida dos pretendentes.

Atreus e Tiestes

Em seguida, o mito fala das terríveis consequências da rivalidade “edípica” fraterna. Pélope tinha dois irmãos legítimos, Atreus e Tiestes. Por ciúmes, Tiestes, o mais novo dos dois, roubou o carneiro de Atreus, que tinha os pelos de ouro. Em retribuição, Atreus assassinou os dois filhos de Tiestes, e serviu-os como alimento para Tieste em um grande banquete.

Crisipo e Laio

Este não foi o único exemplo de rivalidade fraterna na casa de Pélope. Este tinha também um filho ilegítimo, Crisipo. Laio, o famigerado pai de Édipo, quando jovem encontrara proteção e abrigo na corte de Pélope. Apesar da gentileza de Pélope, Laio não agiu corretamente com ele, pois abduziu – ou seduziu – Crisipo. Podemos considerar que Laio agiu assim por ciúmes de Crisipo, que era preferido por Pélope. Como castigo por este ato de rivalidade, o oráculo de Delfo disse a Laio que ele seria morto pelo próprio filho. Assim como Tântalo destruíra, ou tentara destruir o filho de Pélope, e como Pélope forjara a morte do sogro, Enomaus, também Édipo viria a matar seu pai, Laio. No curso normal dos eventos, um filho substitui o pai – por isso a leitura destas estórias nos fala dos desejos de um filho fazer isto e da tentativa do pai impedi-lo. Mas este mito relata que os atos edípicos por parte dos pais precedem às atuações edípicas por parte dos filhos.

Édipo e Laio

Para impedir que seu filho o matasse, quando Édipo nasceu Laio mandou perfurar os calcanhares do filho e atar seus pés. Ordenou que um pastor levasse Édipo e o abandonasse no deserto para morrer. Mas o pastor […] teve pena da criança; fingiu ter abandonado Édipo, mas entregou o menino aos cuidados de outro pastor. Este levou Édipo a um rei, que o criou como filho.

Quando rapaz, Édipo consultou o oráculo de Delfo e foi-lhe dito que assassinaria o pai e desposaria a mãe. Pensando que o casal de reis que o criara fossem seus pais, Édipo não voltou para casa e ficou vagando, para impedir tal horror. Numa encruzilhada matou Laio, sem saber que era seu pai. Nas suas andanças, chegou até Tebas, resolveu o enigma da Esfinge, e assim libertou a cidade. Como recompensa, casou-se com a rainha – sua mãe viúva, Jocasta. Assim, o filho substituiu o pai como rei e marido; apaixonou-se pela mãe, e esta teve relações sexuais com o filho. Quando a verdade finalmente foi descoberta, Jocasta suicidou-se e Édipo perfurou os próprios olhos; destruiu-os como castigo por não ter visto o que estava fazendo.

Étocles, Polinice e Antígona

Mas a estória trágica não termina aí. Os filhos gêmeos de Édipo, Étocles e Polinice, não o apoiaram nesta miséria, e só sua filha Antígona permaneceu ao seu lado. O tempo passou, e na guerra dos Sete Contra Tebas, Eteocles e Polinice mataram-se um ao outro no combate. Antígona enterrou Polinice contra as ordens do Rei Creonte, e por isso foi morta. Uma rivalidade fraterna intensa é devastadora, como o demonstra o destino dos dois irmãos, mas uma ligação fraterna muito intensa é igualmente fatal, como nos ensina a sorte de Antígona.

Resumindo a variedade de relações que ocasionam morte nestes mitos temos: em vez de aceitar amorosamente o filho, Tântalo sacrifica-o para seus próprios fins; o mesmo faz Laio com Édipo, e os dois pais terminam destruídos. Enomaus morre porque tenta guardar a filha só para si, como também Jocasta, que se liga intimamente ao filho: o amor sexual pelo filho do outro sexo é tão destrutivo quanto um temor concretizado de que a criança do mesmo sexo substitua e supere os pais. Matar o pai do mesmo sexo foi a ruína de Édipo, como também de seus dois filhos que o abandonaram na desgraça. A rivalidade fraterna mata os filhos de Édipo. Antígona, que não renegou o pai, Édipo, mas ao contrário compartilhou sua miséria, morre por uma devoção intensa ao irmão.

Creonte e Ismênia

Mas a estória ainda não se conclui. Creonte, que, sendo rei, condenou Antígona à morte, faz isto contra as súplicas de seu filho, Hemon, que amava Antígona. Destruindo Antígona, Creonte destrói também o filho; mais uma vez, encontramos um pai que não abandona o controle sobre a vida do filho. Hemon, desesperado com a morte de Antígona, tenta matar o pai, e, não o conseguindo, suicida-se; o mesmo sucede com sua mãe, esposa de Creonte, como consequência da morte do filho. A única a sobreviver na família de Édipo é Ismênia, irmã de Antígona, que não estava tão profundamente ligada a nenhum dos pais, nem aos irmãos, e não estava envolvida profundamente com nenhum membro próximo da família. De acordo com o mito, não parece haver saída: quem, por acaso ou por desejo próprio, se envolver profundamente numa relação edípica será destruído.

Referência

• BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Arlene Caetano (Tradução). ed. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 234-237.

É possível ensinar poesia? Indagações sobre poesia, ensino e filosofia

Desaprender oito horas por dia ensina os princípios

Manoel de Barros, O livro das ignorãças.

Se uma das prerrogativas da poesia é promover a liberdade – conferindo “um novo sentido às palavras da tribo”, já escrevera Stéphane Mallarmé –, não seria contraditório submeter o jovem leitor às amarras de um ensino tradicional, e ainda assim esperar que ele aprenda a ser livre, isto é, que aprenda “poesia”? E, pensando por outro lado, a poesia não deve, ou melhor, não pode ser ensinada?

Afinal, como ensinar a ser livre? — seria uma outra maneira de perguntar: como ensinar poesia, gênero dos mais conhecidos da literatura, mas simultaneamente (e infelizmente) um dos menos apreciados pelos leitores brasileiros. Foi pensando nisso que trouxemos esta publicação de fim de ano, convidando a pesquisadora e autora Isadora Urbano para discutir e refletir sobre essas questões em um texto breve, mas provocador.

Para baixá-lo e conferir, clique no botão abaixo:

Por onde começar a ler Freud

A dúvida sobre por onde começar a ler Freud é compartilhada por muitas pessoas e pode, realmente, gerar algum embaraço, especialmente porque sua obra é bastante extensa e volumosa, com dezenas de textos que vão construindo progressivamente a teoria psicanalítica freudiana. Contudo, isso não significa – ou não necessariamente significa – que seja preciso começar “pelo começo”, cronologicamente e fazer uma leitura extensiva, de cabo a rabo. Para quem quer conhecer a obra de Freud, mas não espera examiná-la à exaustão, existem várias opções possíveis, de modo que a resposta à nossa pergunta deve, antes de tudo, levar em conta que não existe um só caminho para começar a ler Freud.

Por esse motivo, outro ponto importante é saber qual é o seu interesse nessa leitura, uma vez que é totalmente válido ler Freud pensando no conhecimento da sua técnica ou teoria psicanalítica, em vista de um ponto de vista filosófico, com um recorte bem específico (por exemplo, usa-se muito os conceitos freudianos de trauma, infamiliar e sintoma em outras áreas que não a própria psicanálise), ou por curiosidade, já que os textos de Freud também possuem uma grande qualidade literária – aliás, sabia que Freud foi laureado no Prêmio Goethe de Literatura, em 1930? Ele também chegou a ser indicado ao Nobel de Literatura em 1936, mas este quem levou foi Eugene O’Neill.

Tendo isso em mente, como analista em formação e entusiasta da teoria e da prática psicanalítica, gostaria de indicar algumas possibilidades para quem ainda não decidiu de onde partir. 🙂

Para quem quer ler Freud como pensador da cultura

Aos que estão procurando um Freud filosófico, com mais atenção ao seu pensamento enquanto um intelectual de seu tempo que como médico e psicanalista, as sugestões de leitura são Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915), A transitoriedade (1916) e O mal estar na civilização (1930), sendo o terceiro deles o mais longo e mais desafiador, enquanto os outros ganham na sua linguagem acessível e na beleza das ideias, além de serem textos bem breves.

Freud para quem quer estudar psicanálise

Como vocês já devem ter desconfiado, nem se eu elencasse aqui uma dúzia de textos seria possível dar conta de passar por tudo que a teoria que Freud produziu. Por isso, considero essas indicações apenas um aperitivo, sem pretensão nenhuma de esgotar o assunto, mas só pra dar aquele gostinho em quem está a fim de conhecer mais do assunto, ok? Então, aí vão as sugestões: para quem quer ler Freud para estudar psicanálise, alguns textos interessantes são O sonho é a realização de um desejo (1900), Os instintos e seus destinos (1915) e A questão da análise leiga (1926). Dica de ouro: se puder, consulte um dicionário de psicanálise quando bater a dúvida sobre o que quer dizer algum conceito. Pessoalmente, gosto muito do Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis, mas existem outros igualmente competentes, como o de Roudinesco e Plon, por exemplo.

Freud para os amantes de literatura e outras artes

Além de um exímio médico e pesquisador, Freud também foi um grande admirador da literatura e de outras artes, tendo usado delas para ajudar a construir sua teoria – não vamos esquecer a importância do mito de Édipo para Freud, por exemplo – e escrito sobre elas em algumas ocasiões. Na verdade, muitos de seus textos têm pinceladas com referências a poetas, dramaturgos e romancistas admirados pelo autor. Se você também se interessa por esses temas, pode gostar de textos como O escritor e a fantasia (1908), O tema da escolha do cofrinho (1913) e O inquietante (1919).

Freud para quem procura histórias reais

Uma última aposta, para os quem ainda estão indecisos, são os casos clínicos de Freud, em que o autor relata em minúcias os encontros com pacientes, suas queixas, a evolução dos seus sintomas, seus sonhos e suas interpretações. Cada caso costuma trazer importantes contribuições à teoria freudiana, pois é a partir deles, ou seja, a partir da experiência clínica, que Freud faz as suas proposições para o campo psicanalítico. Alguns dos casos mais importantes e conhecidos de Freud são O caso Dora (1905), O pequeno Hans (1909), O homem dos ratos (1909), O caso Schreber (1911) e O homem dos lobos (1918), além dos que estão em seus Estudos sobre a histeria (1893-1895), dos quais gosto particularmente do caso sobre Emmy von N., a partir do qual Freud deixa a hipnose e começa a se valer da associação livre na condução dos tratamentos.

Qual ler primeiro: Ilíada ou Odisseia?

Essa provavelmente é uma das perguntas que todo leitor dos clássicos já se fez ou fez para algum colega ou conhecido que já encarou a Ilíada e a Odisseia, ambas obras primas assinadas pelo grande poeta grego, Homero. O objetivo desse post é responder à questão de forma rápida e precisa, além de explicar, muito brevemente, do que se trata cada uma dessas narrativas épicas.

Por onde começar?

Bom, começo essa conversa dizendo que não existe uma “ordem necessária” para você iniciar a sua leitura: pode pegar tanto a Ilíada, quanto a Odisseia para ler; são clássicos que, mesmo comunicantes entre si, não se prendem um ao outro. Isso se dá de maneira que as narrativas funcionam de forma independente e, ainda que apresentem eventos diretamente relacionados, em vários momentos do texto são trazidas as informações necessárias à compreensão do leitor.

Pelo fator cronológico

I

Contudo, se você procura ler respeitando a cronologia da mitologia à qual pertencem essas duas histórias clássicas, comece pela Ilíada, história que aconteceu antes dos eventos cantados na Odisseia.

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Nessa narrativa, você vai acompanhar, ao longo de vinte e quatro cantos (ou capítulos, se preferir), os dramas vividos pelos gregos – aqueus, ageus ou argivos – e pelos teucros, ou troianos, que se enfrentam durante mais ou menos uma semana, no décimo ano da guerra que a Grécia levou até Troia.

No texto, tudo começa quando Aquiles, o herói mais notável de todo o exército grego, decide deixar a batalha contra os troianos, por conta de um grave desentendimento com Agamenão, anaxandrom, rei sobre os homens, senhor dos senhores. Essa intriga dos dois heróis é um gatilho que desencadeia tanto uma reviravolta no campo de batalha, com as derrotas sucessivas dos gregos, quanto uma viravolta entre os deuses do Olimpo, que participam ativamente da guerra, tomando o partido de uns ou de outros.

Você conhecerá guerreiros apaixonantes, como Heitor e Pátroclo, Diomédes e Odisseu, os dois Ajazes, enfim… mas não se enganem: na Ilíada, você não vai encontrar nenhum cavalo de madeira, nem a queda de Troia e muito menos vai saber como essa história acaba. Para isso, você vai precisar ler a Odisseia, ou as outras narrativas que contam sobre fragmentos diversos desse longo episódio do mundo grego (um desses textos, a título de curiosidade, é a Posthomerica, que ainda não tem tradução para o português e que conta os episódios subsequentes à Ilíada).

Mas vamos ao caso específico da Odisseia!

II

A Odisseia dá seguimento à narrativa da Ilíada, mas sua história nos leva para outros lugares, bem distantes de Troia: vamos dos cenários paradisíacos, conhecidos e enfrentados durante os dez anos de viagem pelos quais passou Odisseu; até a ilha de Ítaca, terra natal do herói que tem papel fundamental na guerra contra os troianos, sendo muito inteligente e engenhoso, inclusive abençoado pela deusa da estratégia, Atena. Na ilha de cenário árido e pedregoso, conheceremos Telêmaco, filho e herdeiro do guerreiro grego, que, junto de Penélope, sua mãe, espera ansioso pelo retorno do pai, Odisseu, que estava na guerra contra os troianos, mas demora mais do que devia em voltar.

A essa altura, inúmeros casos que não aparecem nem na Ilíada e nem na Odisseia já se desenrolaram: Aquiles já foi atingido por Páris no calcanhar; Troia já foi destruída; Eneas já partiu para novas terras; Agamenão já foi morto pelo amante de sua esposa, Clitemnestra, que foi morta por seu filho, Orestes, etc. etc. etc. Com isso, temos o drama da Odisseia centrado nos problemas enfrentados pela família de Odisseu e por ele próprio, nas muitas aventuras que o herói relata para Alcinoo – rei dos feáceos – sobre os deuses e as deusas, o Ciclope, os monstros marítimos e seus tantos fracassos na tentativa de voltar para casa.

É interessante observar como a Ilíada ocorre no tempo de apenas alguns dias, enquanto a Odisseia se estende por anos, o que marca também o estilo adotado nas duas obras, sendo a primeira uma narrativa linear e a segunda de estrutura cíclica. Além disso, se lida depois da Ilíada, as referências da Odisseia se tornam mais claras e prazerosas, pois, finalmente, descobrimos que fim levaram muitos dos heróis gregos que marcharam contra Troia, se encontraram ou não um fim trágico, na guerra ou fora dela.

A questão da leitura

Epero que, com isso, suas dúvidas estejam respondidas e que você já queira velejar por entre Cila, sereias e Calipso; ou guerrear ao lado de Odisseu, Diomédes, Aquiles e Heitor! Nós não prometemos que a viagem será tranquila, porém, com uma boa nau e conhecendo os ventos, qualquer trajeto pode ser cumprido, mesmo que, como o do nosso nobre herói Odisseu, isso demore mais de dez anos.

Sendo bem sincero e fugindo um pouco da pergunta principal, Ilíada e Odisseia são textos complexos, com uma tessitura narrativa densa, cheia de detalhes e pequenas conexões internas, escritas em verso, com vários traços sutis de uma cultura que chegou para nós às migalhas. Isso, muitas vezes, pode assustar os navegantes de primeira viagem. Mas, se você está decidido a encarar a tarefa árdua da leitura, aqui no Duras Letras nós temos um pequeno manual, que pode ajudar com os preparativos da sua embarcação.

Ele trata de uma edição específica dos cantos gregos de Homero, feita por Carlos Alberto Nunes, em uma tradução brilhante, que procura preservar o verso tradicional da língua de Homero. Essa edição dos dois livros foi publicada em box e lançada pela Nova Fronteira. Acrescento que, se for para começar de algum lugar, que seja por uma boa edição e uma boa tradução, pois essas histórias não merecem menos do que isso.

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