5 contos clássicos de ficção científica para se apaixonar pelo gênero

Olá! E bem-vindos ao primeiro post do Duras Letras em 2021! Para abrir o ano com chave de ouro, especialmente de um 2020 tão surreal como todos sabemos que foi, proponho aos queridos leitores uma breve lista de 5 contos de ficção científica escolhidos a pente fino – só a nata da nata!

E se você ainda tem dúvidas se o gênero ficção científica é para você, saiba que essas são algumas das melhores histórias para tirar a prova, selecionadas a dedo para impressionar até os leitores mais exigentes! Vamos lá?

1. “Razão” (1941), de Isaac Asimov

O primeiro conto da lista é Razão (do livro “Eu, robô”), do consagrado Isaac Asimov, em que acompanhamos a tentativa de um androide de compreender sua própria origem e propósito. Recém-construído por dois humanos numa estação espacial, o robô não acredita que seres cuja inteligência fosse tão menor que a dele próprio pudessem tê-lo criado, a despeito das inúmeras evidências que seus criadores apresentam para convencê-lo do contrário.

O conto é instigante por levantar reflexões sobre a relação entre criador e criatura, aí inserido o debate sobre o criacionismo e a fundação das religiões. Asimov também nos faz encarar, não sem dificuldades, a complexa situação dos postulados lógicos, que – no limite – se aproximariam muito das questões de fé. A pergunta final que o conto suscita é: como saber o que é real?

Para os amantes do ceticismo e questionadores de carteirinha, é uma ótima pedida! Se é o seu caso, clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto completo.

“Razão”, de Isaac Asimov

2. “Vocês, zumbis…” (1959), de Robert Heinlein

O segundo conto da nossa lista é Vocês, zumbis… (“All you zombies“), que talvez conheçam por meio da adaptação cinematográfica Predestinado (Predestination). Nele, seguimos de perto o relato de Jane, um homem que, tendo nascido com os dois sexos, passou a maior parte da juventude como mulher e, após ter tido uma filha, foi transformado cirurgicamente para manter apenas os caracteres sexuais masculinos.

Ainda na maternidade, contudo, sua filha é sequestrada, e Jane, que nunca desistiu de encontrá-la, segue sua vida sem muito entusiasmo. Enquanto conta sua história para o barman com quem conversa, este revela, misteriosamente, já conhecer muitos detalhes da sua vida, e apresenta a solução para finalmente encontrar a filha, depois de muitos anos – a solução que, no fim das contas, está na origem do próprio problema, com direito a descobertas bombásticas.

Gostou? Clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto traduzido.

“Vocês, zumbis”, de Robert Heinlein

3. “A gaiola de areia” (1962), de J. G. Ballard

O terceiro conto, “A gaiola de areia” (The cage of sand), de J. G. Ballard, presente no livro As vozes do tempo, apresenta uma perspectiva existencialista sobre os sonhos da conquista espacial.

Acompanhamos de perto a vida de Bridgeman numa Cabo Canaveral aterrada de areia marciana, onde, além dele, vivem apenas dois outros personagens: Travis, um ex-astronauta com problemas de consciência, e Louise, uma viúva cujo marido morreu no espaço. Ao longo do conto, descobrimos que os três personagens têm relação próxima com a atividade espacial, e vivem como fugitivos numa terra desertificada e contaminada. À noite, eles assistem juntos à “conjunção”, isto é, o momento em que as cápsulas de astronautas que morreram em serviço atravessam o céu como estrelas cadentes – mas também como caixões em perpétuo movimento.

Mais que pelo desenrolar do enredo, o conto nos toca por falar de questões próprias a toda a humanidade, como a solidão, a relação com a morte e o desafio de seguir em frente. Além disso, Ballard é um mestre da escrita, e suas descrições são tão vívidas e impactantes que só por elas a leitura já valeria a pena.

4. “Podemos recordar por você, por um preço razoável” (1966), de Philip K. Dick

 

 

(“We can remember it for you wholesale”, 1966)

O conto Podemos recordar por você, por um preço razoável (“We can remember it for you wholesale”), de Philip K. Dick – autor do clássico Blade Runner e outras obras de sucesso –, conta a história de Douglas Quail, um homem cujo sonho sempre foi conhecer Marte. Sendo um incompreendido e frustrado, ele recorre a uma empresa de implantação de falsas memórias para realizar esse desejo, porém, durante o procedimento, descobre-se que essa memória já estava em sua mente. A partir daí, a história se torna cada vez mais próxima de um suspense/thriller, em que seguimos junto a Quail na tentativa de saber o que de fato aconteceu e como ele está envolvido nessa história. Para quem curte narrativas com muita ação, surpresas e reviravoltas, a história de Dick é imperdível.

O conto faz parte da coletânea “Minority Report – A Nova Lei”, e foi adaptado para o cinema no filme “O vingador do futuro” (“Total Recall”), que ganhou uma nova versão cinematográfica em 2012. Outro filme que trabalha a questão da implantação (ou, no caso, remoção) de memórias e que vale a pena conferir é “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, do impecável Charlie Kaufman.

 

5. “Superbrinquedos duram o verão todo” (1969), de Brian Aldiss

 

 

(“Supertoys last all summer long“, 1969)

Chegamos ao último conto da nossa lista: Superbrinquedos duram o verão todo (“Supertoys last all summer long“), de Brian Aldiss, publicado no livro de mesmo título.

O conto apresenta a perspectiva de David, um menino robô cujas capacidades para amar, interagir e compreender o mundo são como as de um menino humano. Contudo, David não é amado, e embora se esforce para expressar seu afeto à mãe, Monica Swinton, ela não retribui seus sentimentos e não consegue se conectar com ele, de modo que os dois sentem a presença pesada da solidão e da incompreensão, e o único que de fato se aproxima de David é Teddy, um robô ursinho que lhe faz companhia – e que também é rejeitado pela “mãe”. Ao final do conto, o senhor e a senhora Swinton celebram o fato de finalmente terem recebido a autorização do governo para ter um filho, e paira a dúvida sobre o que será feito de David e Teddy.

O conto é singular por sua capacidade de nos levar a pensar sobre a natureza do amor, as condições de um ser para se conectar a outro e as formas nocivas com que muitas vezes tentamos preenchemos o vazio e a infelicidade de nossas vidas, sem nos atentar para como isso pode causar sofrimento a outros seres. Afinal, quem é mesmo capaz de amar?
Também este conto foi levado às telas do cinema na adaptação “A.I. – Inteligência Artificial”, do diretor Steven Spielberg, uma versão que certamente vale a pena conferir.

 

Para finalizar…

 

Essa seleção foi pensada com carinho especialmente para as pessoas que têm curiosidade com ficção científica, mas pouca disposição para quebrar a cabeça tentando achar sozinhas aquilo que vale à pena. Não quer dizer que sejam as únicas: na verdade, existem muitas outras histórias legais por aí, esperando apenas ser encontradas. Espero que esse post tenha ajudado a entender que ficção científica não é só sobre robôs, astronautas, marcianos e raios-laser, mas sobre a nossa realidade, identidade e questões fundamentais, ficcionalizadas em outros universos possíveis. E aí, qual você vai ler primeiro?

 

Como ler poesia: dicas para desvendar o universo poético

Como ler poesia? Ler poesia é desafiador, mesmo para os leitores mais experientes. O que não quer dizer que não existam estratégias de análise que ajudem na empreitada. As informações a seguir pretendem ajudar você a se aventurar na leitura da poesia – e, quem sabe, ir até mais fundo nas suas experimentações.

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema.

Décio Pignatari

Sintagma e paradigma

Segundo Pignatari, no livro O que é comunicação poética (Ateliê Editorial, 2011) a contiguidade (proximidade) e a similaridade (semelhança) são os dois processos de associação ou organização das coisas, que foram o eixo da seleção, chamado de paradigma, e o eixo da combinação, a que se chama sintagma.

Quando duas (ou mais) coisas se associam por características comuns a si, as associamos pelo eixo paradigmático (o da similaridade). Observe o mosaico abaixo, que ilustra a questão:

Certamente, é só bater os olhos para reparar que os objetos em questão, embora sejam das mais variadas naturezas, partilham de uma mesma cor, o verde, que é seu paradigma. Agora observe a seguinte imagem:

O cardápio acima oferece opções de sorvete, dentre os quais o consumidor deverá escolher o (ou os) que deseja. Se, além do sorvete, ele também escolhe um prato salgado e uma bebida entre as opções, ele irá criar um sintagma, ou seja, uma seleção ou reunião, a partir de escolhas dentro de conjuntos de pratos, bebidas e sobremesas.


Metáfora e metonímia

De acordo com o linguista Jakobson, a metonímia (a tomada da parte pelo todo) e a metáfora (a semelhança entre duas coisas, apresentada por uma palavra ou conjunto de palavras) são as duas figuras de linguagem que predominam nessa lógica, sendo que a metonímia prevalece no sintagma e a metáfora no paradigma.

Pensemos agora nas seguintes frases:

(a) Maria é flor.

Associamos as duas partes, sujeito e predicado, numa metáfora, por contiguidade, que aproxima não as duas palavras em si, mas as duas coisas: entre Maria e a “flor”, deve haver características comuns: o perfume, a delicadeza, ou algo mais. Agora leia a próxima:

(b) Flora é flor.

Nesse caso, além da metáfora do primeiro exemplo, temos ainda a semelhança entre as duas palavras “Flora” e “flor”, fazendo que a semelhança entre os objetos seja traduzida também nos sons das palavras que os designam. A semelhança dos sons entre palavras ou numa mesma palavra é chamada paronomásia, e é ela que possibilita o trocadilho e a poesia. Para facilitar, a metáfora aproxima a semelhança de duas coisas (significados), e a paronomásia, de duas palavras.

Quando o eixo da similaridade se projeta sobre o eixo da continuidade, é quando a linguagem apresenta a sua função poética – é o que concluiu Jakobson. Na terminologia de Pierce, a marca dessa função é a projeção do ícone sobre o símbolo (ou seja, transformar o símbolo, a palavra, em ícone: figura). Podemos ainda pensar nos termos do analógico que se projeta sobre o lógico.


Paronomásia

Exemplos são uma boa forma de entrar neste tópico. Então, diga, o que você observa em cada imagem abaixo?

As paronomásias podem ocorrer em diferentes formas: (i) a paronomásia propriamente dita, (ii) o anagrama, (iii) a aliteração e (iv) a rima. Os exemplos abaixo ilustram cada tipo, respectivamente:

1 — Paronomásia (propriamente dita)

Há soldados armados, amados ou não

— Geraldo Vandré

2 — Anagrama

Amortemor – Augusto de Campos

3 — Aliteração

Se Sara sarar do sarampo
Sara será sereia
pois sara não é feia
embora não seja um anjo
merece um solo de banjo

– Chacal

4 — Rima

Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?

– Cacaso

Ritmo

O ritmo se configura como a divisão no tempo e no espaço de elementos verbovocovisuais (verbais, vocais, visuais). Na linha ocidental, há quatro tipos básicos de ritmo, a serem mostrados a seguir.

(a) Binário ascendente

Um som fraco (breve) seguido de um forte (longo): – —

A coi-sa con-tra a coi-sa (Orides Fontela)

(b) Binário descendente

Um som forte seguido de um fraco: — –

es-sas plan-tas fo-ram vin-do (Ana Martins Marques)

(c) Ternário ascendente

Dois sons fracos seguidos de um forte: – – —

Pe-las on-das do mar sem li-mi-tes (Álvares de Azevedo)

(d) Ternário descendente

Um som forte seguidos de dois fracos: — – –

Fa-ses que vão e que vêm (Cecília Meireles)

Métrica

As possibilidades rítmicas da tradição luso-brasileira se configuram, em geral, por meio de algumas regras. Para conhecê-las, é preciso lembrar que:

(1) As sílabas são contadas apenas até a última tônica (sílaba forte);
(2) A sílaba terminada em vogal átona (fraca) faz elisão (ou seja, emenda) com a vogal átona seguinte, e por isso contam apenas como uma sílaba;
(3) Os acentos das regras são os obrigatórios, não excluindo as possibilidades de outros.

Vamos lá!

a) Versos de 5 e 7 sílabas

Acentue onde quiser. Os versos de 5 sílabas (os pentassílabos) são chamados de redondilha menor. Os de 7 (heptassílabos), redondilha maior.

U | ma | pa | la | vra | se | a | bre (Emily Dickinson)

b) Versos de 8 sílabas

Os acentos tônicos vão na 4ª e na 8ª, ou então na 2ª (ou 3ª), na 5ª e na 8ª.

c) Versos de 9 sílabas

Acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas ou na 4ª e na 9ª.

d) Versos de 10 sílabas (decassílabos)

Acentos na 6ª e na 10ª, ou na 4ª, 8ª e 10ª.

e) Versos de 11 sílabas (hendecassílabos)

Acentos na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª, ou na 5ª e na 11ª, ou ainda na 3ª , 7ª e 11ª.

f) Versos de 12 sílabas (Alexandrinos)

Há três tipos:

  • Acentos na 4ª, 8ª e 12ª – o mais fácil e comum.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que o da 6ª caia em palavra oxítona, marcando o meio do verso.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que a 6ª caia em palavra paroxítona terminada em vogal átona, de modo a fazer elisão (emendar) com a vogal átona seguinte, formando a 7ª sílaba.

Os versos que possuem métrica mas não rima são chamados de versos brancos, enquanto aqueles que não se valem de nenhum dos dois se chamam versos livres.


Rima

Apesar de ser tipicamente reconhecida como paronomásia, as rimas merecem um tópico à parte. Elas são, via de regra, as semelhanças entre os sons que se encontram verticalmente no final dos versos. As rimas mais previsíveis (ar, ão, eira, osa, etc.) são menos prestigiadas, porque informam menos. Rimas menos prováveis informam mais, e por isso têm mais crédito. A rima também pode ocorrer dentro do próprio verbo, como faz Poe em O Corvo, ou ser incompleta (toante), quando só as vogais se assemelham, como no exemplo abaixo:

Pode ser magrela, pode ser retinta
Porte de gazela, olho de leoa
Ser muito versada e hábil com a língua
Do tipo que domina idiomas
Mas ela não samba (...)

Já Reparô? – Adriana Calcanhotto

Os tipos de Pound

Ezra Pound define três tipos fundamentais de poema. São eles os que se sobrepõe a fanopeia, a melopeia ou a logopeia.

Na fanopeia… sobressaem as imagens, as comparações e metáforas.
Na melopeia… sobressai a musicalidade.
Na logopeia… as ideias são o principal, e por isso se aproxima mais da prosa.

No poema acima, de Leminski, qual das três correntes parece predominar? E no trecho a seguir, de Fernando Pessoa?

Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo 
(...)

"Tabacaria" – Fernando Pessoa

Outros caminhos

O poema ao lado, de Anatol Knotek, além de brincar com os sentidos das palavras, se atreve também a pensar sua forma no papel. Ela não obedece a lógica linear comum dos poemas tradicionais, e trabalha em conjunto os significados dos signos (as palavras), o desbotamento da cor e o sumiço de certas letras, criando novas percepções.

O poema abaixo, de Antero de Alda, também não se permite ler pela lógica tradicional. Ele pressupõe seu “desenho” como parte indispensável da leitura, não podendo, por isso mesmo, se reduzir às palavras que o compõem. Veja você!

Também o poema O Pulsar, de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso, partilha desse jogo de sentidos que se dá por meio dos desenhos do próprio poema:

Poema de Augusto de Campos / Canção de Caetano Veloso

Para encerrar, deixo para vocês a sugestão de leitura que inspirou este post, o livro O que é comunicação poéticade Décio Pignatari. Outras leituras que podem inspirá-los também se encontram em ABC da Literatura, de Ezra Pound, Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, Linguística e Comunicação, de Jakobson, O Que é Poesia Marginal, de Glauco Matoso, e O Arco e a Lira, de Octavio Paz.

Como ler Tragédias Gregas: um guia conciso

Algumas das maiores obras preservadas pelos séculos na literatura ocidental têm origem na Grécia Antiga. Poderia estar me referindo à Ilíada, ou à Odisseia, mas me refiro a uma categoria distinta e mais ampla: a tragédia grega, consagrada especialmente pelas peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, três dos maiores dramaturgos da Antiguidade.

Quem nunca ouviu falar no Complexo de Édipo? Ora, o termo freudiano, não por acaso, provém do personagem homônimo, protagonista da peça de Sófocles, Édipo Rei, uma das obras mais célebres da história, que apresenta a desgraça do homem que matou o próprio pai e desposou a mãe, fugindo da própria sina.

Do mesmo autor são as obras Antígona e Édipo em Colono, que junto da primeira compõem a chamada Trilogia Tebana. Aquela, por sua vez, tragédia que conta o triste destino da prole incestuosa de Édipo, destruída na luta pelo trono deixado pelo pai, e esta a ocasião de Édipo a vagar em busca de sua morte.

Ésquilo, Sófocles e Eurípides

Não menos notável é a obra de Eurípides, que assina peças como Medeia e As Bacantes, ou a de Ésquilo, autor de OréstiaOs Persas, entre outras de igual importância. Não é pouco se atrever a ler esses textos, que são parte das maiores e mais ilustres referências literárias da humanidade, mas o desafio pode ser um pouco menor quando sabemos o que procurar nessas leituras – além do deleite e do autoconhecimento. Alguns importantes conceitos para essa empreitada, logo abaixo, podem ajudar a desvendar a tragédia grega. Vamos a eles.

Poética de Aristóteles

A Poética, escrita pelo filósofo discípulo de Platão no século IV a.C., é um conjunto de notas sobre arte, supostamente originárias de suas aulas, nas quais discorre sobre conceitos como a Catarse, a Mímeses, a Anagnorisis, o Mythos, a Peripeteia e outros mais. Considerada durante anos como normativa, hoje se levanta a hipótese de que se trataria antes de um documento descritivo da arte clássica. Independentemente de quais das teses é a correta, a Poética é sem dúvida um dos mais importantes textos para compreender a tragédia antiga.

Catarse

Embora usado corriqueiramente para designar algo como “empatia”, o termo não é muito claro. Aristóteles o menciona associando-o a um sentimento de terror e piedade que ocorre no espectador durante um espetáculo teatral, gerando sua purgação. Para além da banalidade da ideia da identificação com os personagens (já disse Freud: somos todos Édipos), há também os aspectos do horror de seu destino, e a compaixão pelo que ocorre. Em termos simples, isso é catarse. Mas os termos simples são redutores, vale sempre lembrar, e por isso é importante não se limitar a essa visão do termo.

Hybris, Hamartía e Moira

Três dos conceitos mais fundamentais para compreender a tragédia grega, a qual era estruturada com propósito de mais que divertir, mas educar os gregos para a cidadania, são eles a síntese da estrutura do enredo trágico.

O primeiro deles, hybris, pode ser compreendido como o excesso. Este excesso se vê em todas as peças mencionadas na nossa introdução, mas a título de exemplo pensemos o caso de Medeia, que não escuta o conselho da pólis (o conselho da cidade), e vai até o fim na vingança contra Jasão, ultrapassando a sua justa-medida (o métron). O caso de Édipo, também muito exemplar, traz à tona em sua hybris a luta contra o seu destino – luta, portanto, contra os deuses –, que faz com que o personagem entre num conflito em que não poderá sair vencedor.

Associado a este conceito está o da hamartía, a assim chamada falha trágica. Tal falha, ou erro, não advém do caráter “mau” de um personagem, mas de um erro de cálculo que o leva ao desencadeamento funesto de sua história. Voltando a Édipo, como exemplo, o fato de não conhecer sua verdadeira identidade faz com que ele cometa crimes terríveis contra as leis divinas, recaindo sobre o terceiro dos conceitos: a Moira.

O último dos três termos equivale à força do Destino. A Moira, mais poderosa que os outros deuses, pois é quem governa o fio da vida de cada um deles, também gere as profecias que levarão o herói trágico ao desenlace sinistro de sua trama. Assim, finalizando com a obra-prima sofocliana, a piedade que temos de Édipo vem de sabermos que seu destino já estava selado muito antes de que tivesse a possibilidade de se tornar culpado por ele. Mas para a tragédia grega, a consciência ou não do crime não isenta quem o cometeu de sua responsabilidade: temos, então, em desfecho, Édipo, que se cega, e Jocasta, sua mãe, que se suicida ao conhecer a identidade de seu marido.

Nêmesis

Para nossa sociedade contemporânea, talvez pareça um tanto quanto demais que esses personagens sejam culpados e penalizados por fatos que estavam além do seu controle ou alcance, mas para a antiguidade esse desenredo é o que se entende por Nêmesis, a justiça divina – esta que é muito distinta do que temos por justiça, mas que era o acerto de contas, a Lei do Talião, daquela época e daquela cultura. É isso o que leva, por exemplo, ao fatídico fim de Penteu, que é destroçado pelas bacantes, na peça de mesmo nome (só por curiosidade: em grego, esse processo se chama sparagmós).

Deus ex machina

Outro conceito interessante de se ter em mente é este: Deus ex machina, o deus da máquina, aquele elemento, personagem ou saída inesperada que surge ao final para resolver milagrosamente o final catastrófico da trama. O exemplo mais clássico talvez seja o final de Medeia, quando o carro do Sol – que até então não era parte da narrativa –surge ao fim da peça para que Medeia escape à ira de Jasão.

Medeia foge no carro do Sol, em pintura de Charles Andre Van Loo (1759).

Curiosidade

O (polêmico) diretor Woody Allen, traz para a sua composição no filme Poderosa Afrodite (1995) diversos elementos típicos do teatro grego, brincando com sua estrutura e estética… Te desafiamos a identificá-los!

Uma introdução à literatura comparada

Texto por Isadora Urbano

“Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos.” (Joseph Campell – O Herói de Mil Faces, 1989)

Alguns dos primeiros registros de literatura existentes atentam para a Grécia Antiga. A Ilíada, que narra a Guerra de Troia, e a Odisseia, que conta o retorno de Ulisses a Ítaca, ambas atribuídas a Homero, são os poemas épicos que deram origem à tradição literária ocidental. Assim como elas, as obras escritas na Antiguidade Clássica, que sobrevieram aos séculos, constituem a pedra fundamental para a concepção e modelo de literatura que temos e (re)criamos até hoje.

É fato que histórias de qualquer tempo e espaço possuem semelhanças e contrastes. Essas similaridades e discrepâncias podem ocorrer através dos personagens, dos recursos estilísticos dos autores, das descrições paisagísticas, do contexto histórico, geográfico, político ou social, da trama, do canal de transmissão, do público a quem se direciona, entre tantos outros fatores. São essas as relações que a Literatura Comparada tem por objeto de estudo.

No que tange, entretanto, à literatura considerada clássica, saltam aos olhos aqueles elementos que coexistem, de maneiras diversas, em todas ou quase todas as obras. Se tomamos como referências os livros canônicos – como a Ilíada, a Odisseia, Eneida, Édipo Rei, A Divina Comédia, Dom Quixote, Hamlet, O Pequeno Príncipe, Os Miseráveis, Crime e Castigo, Orgulho e Preconceito, Walden, etc., temos a rápida percepção de que todas essas histórias que sobreviveram aos seu tempo e continuam sendo lidas têm em comum o fato de tocarem questões atemporais da humanidade.

Citando Ítalo Calvino, “um clássico é um livro que nunca terminou aquilo que tinha pra dizer.” Talvez seja essa uma das razões para haver tantas releituras dessas obras, em todos os sentidos.

Dentre os clássicos, há uma categoria que se destaca pela sua influência em toda a cultura e forma de pensamento ocidentais: a mitologia. Mesmo quando não lemos os textos originais, que já não existem na cultura da oralidade, mas que foram escritos e por isso preservados, estamos sempre rodeados de suas releituras, seja na forma literária, no cinema, na pintura, escultura ou música, entre tantas outras mídias modernas.

Exemplos incontáveis se encontram na literatura pop, nos quadrinhos e no cinema hollywoodiano. Percy Jackson, a Mulher Maravilha e Hércules possuem referenciais não muito difíceis de se recuperar, enquanto algumas outras obras que se apropriaram desses referentes exigem uma investigação mais atenta. 

Na mitologia grega, Hemione é filha do rei Menelau e de Helena de Troia. Na saga, é uma das protagonistas, junto a Harry e Rony, reconhecida pela sua inteligência e sagacidade imbatíveis.

Um exemplo é a saga Harry Potter, da escritora britânica J. K. Rowling, em que encontram-se vários elementos provenientes de lendas celtas, escandinavas, irlandesas e orientais, dentre as quais a mitologia greco-romana, que inspirou desde nomes de personagens a monstros e criaturas mágicas.

Evidentemente, os elementos foram usados em contextos e com objetivos muito diferentes do que possuíam nas suas histórias de origem, mas ainda são próximos o bastante para notarmos com clareza o impacto da cultura mitológica clássica em uma das sagas de maior sucesso e difusão da literatura infanto-juvenil contemporânea.

Algumas outras referências, a título de exemplo, estão listadas abaixo:

É ao crítico de literatura comparada que cabe identificar e analisar a fundo as relações que se estabelecem entre os elementos que se aproximam e se contrastam, evidenciando as reverberações e criação de sentidos que se instauram a partir desses alinhamentos, mas para o leitor comum também pode ser um exercício de leitura instigante.

Até hoje, as relações entre influência e a ideia de talento individual se discutem, embora muito já tenha sido superado. Sabe-se que toda a literatura está inserida em um sistema que se apropria e reelabora o que já foi lido, com ou sem a intenção de fazê-lo. Contudo, o que antes se admitia apenas como plágio ou ausência de criatividade, hoje é visto sobre outro prisma.

Exemplo clássico é O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, que por longa data foi rechaçado como réplica de Madame Bovary, do francês Flaubert. Atualmente, o olhar que se lança é o da intertextualidade, que cria novos sentidos e coloca outros elementos em evidência. Assim, o escritor já não carrega o fardo de renegar a influência e combatê-la, mas, pelo contrário, lhe é permitido explorar suas potencialidades a partir de uma bagagem única.

Jorge Luis Borges (1899-1986)

Kafka e seus precursores, conto do argentino Jorge Luís Borges, é bastante usado para ilustrar a questão. Pela lógica da inversão, o conto joga luz sobre o escritor como criador de seus precursores. O exemplo é simples de ser entendido: uma vez que se tornou célebre, o estudo de Kafka levou ao exame das suas influências, que por si só não tinham grande importância até então. Por isso mesmo, o sentido da influência se questiona, dando destaque à importância da consagração e do próprio mercado na criação de grandes nomes.

Outro conto provocativo dessas questões, do mesmo escritor, é Pierre Menard, autor do Quixote. Nele, Menard decide reescrever Dom Quixote, de Cervantes, palavra por palavra, ipsis litteris, com as mesmas letras, mesmo papel e tudo exatamente igual. Depara-se, contudo, com a impossibilidade do feito, pois o tempo já não era o mesmo, o público, o contexto histórico e as referências imediatas da época já haviam se perdido.

Pierre Menard é extremamente provocatório justamente por levar à pauta da impossibilidade de se realizar o que outro já realizou, e ridiculariza a própria chance de se apropriar por completo de outra obra. É, por isso, um texto que tematiza a natureza da influência e se posiciona criticamente frente a ela, conferindo aos novos autores o reconhecimento da criatividade do mosaico e do rapsódico.

Para a literatura comparada, os laços intertextuais são virtualmente infinitos, e fontes de debates e reflexões ilimitadas. Para o leitor, fica o desafio de perceber os pontos de encontro entre as obras do seu repertório, observando entre elas os vínculos, as particularidades e seus alcances individuais.

Como ler Homero: segredos por trás da Ilíada e da Odisseia

ÊIA, marinheiros! Têm vontade de começar uma leitura inesquecível por águas misteriosas ou terras distantes? Então você veio ao lugar certo! Abaixo eu separei algumas dicas – sem deixar de lado o bom humor – de como vocês podem começar a ler tanto a Ilíada bem como a Odisseia originais, textos de Homero, cantados alguns séculos antes de Cristo, na Grécia antiga.

Aos navegantes que preferem os manuais em outras mídias, nós fizemos uma síntese desta publicação em forma de vídeo, que pode ser acessada pelo Youtube. Além disso, se sua dúvida é sobre por onde você deve começar, oh, nobre navegante, então é melhor você tomar um outro barco, também aqui em nosso porto:

No mais, se você está certo de que quer seguir esta viagem em forma de texto, prepare-se para a aventura e vamos abordo nessas lições!

Preparando a nau

É comum que os navegantes de primeira viagem, em contato com a Ilíada ou com a Odisseia, enfrentem tormentas terríveis devido à complexidade das construções dos versos. Alguns dos navegantes naufragam, e abandonam a obra (para retomar mais tarde, talvez), mas outros seguem adiante, por mais difícil que seja, e não conseguem aproveitar a experiência por completo ao chegar ao fim da jornada.

Isso não vai acontecer com você, porque existem algumas formas de preparar melhor seu navio para velejar por essas águas misteriosas. Antes, no entanto, é bom lembrar que apesar de hoje serem obras divulgadas em papel e mídia digital, tanto a Ilíada quanto a Odisseia, em seus primórdios eram peças pertencentes à literatura oral, responsáveis por construir, entre outras coisas, um retrato cultural da sociedade grega daquele tempo. Isso quer dizer que quanto mais informações você tiver da cultura e mitologia gregas, mais pontos de reconhecimento aparecerão na hora da leitura.

Separe as provisões para a viagem

Se você já tem um repertório clássico construído, um bom primeiro passo para a leitura é começar por uma edição/tradução que não parta diretamente dos versos homéricos na forma original. As edições que comportam o estilo épico em romances e prosa são muito boas para um contato mais imediato com esses textos tão antigos.

Entre as minhas preferidas, estão a Odisseia, com apresentação de Ana Maria Machado e adaptação de Geraldine McCaughrean; e a Ilíada, em quadrinhos, adaptação feita por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, Andreza Caetano e Paulo Corrêa, com ilustrações de Piero Bagnariol. Mas existem muitas outras edições e com os níveis mais variados; as que estou indicando, tornam a experiência de leitura bem divertida, não só por terem imagens, mas por darem atenção especial às narrativas e brincarem um pouco com a forma clássica de escrita.

Mas o que seria essa forma clássica? Vamos descobrir no próximo tópico!

Coloque seu barco na água. Veja a maré

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Agora, que você já tem conhecimento das histórias de Homero e leu uma versão simplificada, pode partir para as traduções que têm como matriz os versos homéricos diretos do grego. É bom atentar para o fato de que, para a composição dos cantos clássicos, os gregos cantadores (aedos) desenvolveram várias técnicas (jogos e estruturas pré-elaboradas) que pudessem ser utilizados na composição das passagens cantadas.

O símile, as cenas típicas e os epítetos, somados à estrutura versificada em hexâmetro datílico, compõem o grupo de recursos aos quais os aedos lançam mão para incrementarem seu repertório.

Hexâmetro datílico

Analisemos, então, cada uma dessas técnicas citadas. Vou utilizar, para isso, o Canto XIX da Ilíada, com tradução de Carlos Alberto Nunes, tradutor que respeita a metrificação dos versos de Homero, que, como citado no parágrafo anterior, são escritos em hexâmetro datílico, verso que possui a estrutura breve-breve-longa ( – – u ).

Uma dica que facilita sua identificação é estabelecer um ritmo para cantá-lo
como faz Leonardo Antunes, neste vídeo:

Tendo isso feito, vamos à escanção do primeiro verso da Ilíada, que ilustra visualmente a métrica:

CAN – ta – me(a) – – le – ra(ó) – DEU – sa – fu – NES – ta – de(A) – QUI – les – pe – LI [da]

Todos os versos tanto da Ilíada como da Odisseia possuem essa estrutura, que contribui para a poeticidade e continuidade dos cantos, apesar de não interferirem diretamente no sentido da história, diferentemente dos outros elementos, que possuem um impacto direto na narrativa.

Içar velas! Remem!

Antes de entrarmos nesses outros elementos, façamos um breve resumo do que acontece no Canto XIX: Aquiles, após saber da morte de Pátroclo e ter em mãos seu cadáver, recebe de Tétis, sua mãe, uma nova armadura, que é vestida por ele para que pudesse guerrear. Em seguida, o grande herói volta para a batalha após uma reunião com os chefes gregos. No canto aparecem seis símiles, alguns objetos significantes, uma cena típica de vestimenta e vários epítetos que recheiam a fábula cantada; além disso, alguns traços da cultura grega, como a relação particular com a morte, também estão presentes.

Símile

Podemos caracterizá-lo como uma comparação feita, geralmente, entre um fenômeno e uma ação ou traço, e que não tem tamanho delimitado, podendo ser extenso ou frasal. Outro traço importante desse recurso é seu uso, que está atrelado à importância ou beleza do que é narrado. Por isso mesmo, o símile é muito importante e auxilia na caracterização das passagens:

Tal como chega no mar, até os nautas aflitos o brilho
que, da fogueira acendida no cimo de um monte, se espalha
em solitária paragem, enquanto nas ondas piscosas
a tempestade a afastarem-se os força dos caros parentes:
do mesmo modo até o éter atinge o esplendor que do escudo
belo de Aquiles se expande. […] (XIX, 375-380, Homero)

Nesse trecho, vemos a comparação entre o escudo de Aquiles e o brilho de um farol (uma fogueira em cima de um monte), o que realça ainda mais o guerreiro grego, que, como uma luz no fim do túnel, volta a guerrear contra os troianos, depois de tantos dias afastado.

Por fim, o símile também pode ter relação com uma fábula, conhecimento comum e frase informativa, o que faz com que obtenha em certas horas um caráter didático, ensinando costumes, tradições e histórias a partir de uma unidade menor.

Epítetos

Os epítetos (construções que acompanham um nome próprio) também possuem essa característica de serem elementos pequenos que carregam muitas qualidades. Para além de uma adjetivação qualquer, os epítetos são capazes de construir metáforas complexas, como no caso de “Atenas, a de olhos de coruja” ou carregar informações relevantes, como no caso de “Aquiles Pelida”, em que Pelida significa filho de Peleu.

Ring composition (‘composição em anéis’ ou ‘corrente’)

Como dito no breve resumo do canto, é nesse capítulo que Aquiles receberá a nova armadura, feita por Hefesto, de sua mãe, Tétis. Essa armadura, da qual um escudo é o item significativo, tem uma descrição que toma grande parte do Canto XVIII. A importância desse objeto de destaque está relacionada ao ring composition da obra, em que Aquiles enfrentará Heitor, que veste a antiga armadura daquele, e que não pode ser inferior à deste. Ambos são portadores de uma armadura única e de grande valor, a de Heitor usada outrora pelo Pelida, ou seja, a luta entre os dois personagens será uma luta espelhada, esta que acontece no Canto XXII, e completa o anel, quando Aquiles, ao matar Heitor, acaba por matar a si mesmo.

A cena típica ou tipificada

Geralmente, o aedo descreve sucintamente como é vestida a armadura, o que configura uma cena tipificada para tal gesto; além de vestir, pode ser também que o personagem esteja se despindo e, em qualquer uma das duas situações, cria um efeito cinematográfico para o evento narrado. No Canto XIX, os versos em que Aquiles coloca seu novo equipamento vão do 369 até o 399 e são utilizados símiles para melhor caracterizar a vestimenta.

Essas descrições são responsáveis por dar consistência a toda a obra, pois o narrado passa para um plano paralelo ao como é narrado. Tal característica, entretanto, não diminui a qualidade da história que está sendo contada se em relação com sua forma, haja vista a atenção que o aedo dá para a veracidade – as realidades – da guerra. Ainda neste canto, por exemplo, Odisseu orienta Aquiles e Agamenon a alimentarem o exército que há dias lutava na pugna sem descanso; a ideia de saciar-se para a batalha, para manter o vigor, dá um tom realístico para a cena e em muito a enriquece.

Sendo assim, pode-se dizer que a forma e o conteúdo entram em sintonia nas composições épicas de Homero. A técnica, aliada ao contexto, não aparece apenas no Canto XIX, utilizado como exemplo no parágrafo anterior, é um traço que perpassa toda a obra. Esse cotejo é justamente o responsável pelo encanto da narrativa, pois, se de um lado temos as construções estéticas de grande valor, do outro temos os ensinamentos de toda uma cultura que já não mais nos pertence, mas, apesar disso, entra em sintonia com a nossa.

De náufrago a capitão

Uma coisa que pode ajudá-lo nessa jornada por esses textos clássicos é viajar com uma frota! Não se acanhe! Monte sua tripulação: convide colegas; procure grupos de leitura coletiva; vídeos de explicação dos capítulos e das obras em geral; chame sua mãe, pai, avós, tios, primos, namorados ou irmãos para ouvi-lo, enquanto você lê as obras em voz alta. Enfim, compartilhe essa experiência! As trocas de impressão ajudam bastante a clarear o texto, e vocês poderão se emocionar juntos a cada novo oceano vencido.

No Youtube existem vários vídeos e até cursos inteiros sobre a Ilíada e sobre a Odisseia e eles são ótimos remos para a sua novíssima embarcação. Lembre-se: as obras homéricas são um Triângulo das Bermudas, ou seja, se você for sem conhecer aquelas águas corre grandes riscos de naufragar ou ser pego por monstros! Procure, então, um capitão experiente, que já fez o trajeto antes e que pode orientá-lo!

Entre os meus cursos favoritos está o de Fundamentos de Literatura Grega, do professor Rafael Silva, do departamento de Letras Clássicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Rafael, no vídeo abaixo, sobre a Ilíada, se atenta de forma mais aprofundada aos elementos citados neste texto e vai muito além em sua análise, trazendo referências do original em grego, explicando contextos e passagens, e fazendo pontes entre as obras de Homero e outras obras clássicas.

Terra à vista!

Espero que este texto sirva de motivação para você começar (ou retomar) sua jornada meio aos versos homéricos! Não precisa ter pressa na leitura; leia um canto por vez, pesquise se não estiver entendendo os pontos chave, e não se martirize com suas dificuldades, pois os textos são complexos apesar de prazerosos e, afinal de contas, nós precisamos começar de algum lugar e de alguma forma, mesmo que seja tropeçando ou naufragando.

Texto atualizado em 26/04/2023.

Como ler Henrik Ibsen: desvendando o teatro realista

Texto por Isadora Urbano

Henrik Ibsen nasceu na Noruega em 1828. Tornou-se um dos maiores dramaturgos do seu tempo, e nem por isso foi menos controverso em relação aos seus pares. Autor de vinte e oito peças (nem tanto, nem tão pouco, se comparado a Shakespeare ou James Joyce), Ibsen deu corpo a três fases estéticas de sua produção: a primeira, que se estende de Catilina (1850) a Imperador e Galileu (1873), é parte do romantismoem seguida, de Os pilares da sociedade (1877) a Hedda Gabler (1890), entra na fase realista; por fim, de Solness, o Construtor (1892) a Quando despertarmos de entre os mortos (1899), adere ao simbolismo.

Uma de suas peças mais célebres é sem dúvidas Casa de Bonecas (1879), da fase realista. Como esperado, ela retrata a impostura que está na base fundadora da sociedade burguesa contemporânea ao dramaturgo, centralizando o papel social da mulher nesse meio e as condições carcerárias do casamento.

Ibsen foi considerado, por suas obras, o “pai do realismo”, ao lado de autores como Anton Tchekhov e August Strindberg, igualmente consagrados. Diferentemente da composição tradicional da sua época, a peça bem-feita, a dramaturgia ibseniana apresenta o perfil das problem plays (“peças problema”), nas quais o personagem está em conflito com uma instituição, enfrentando problemas contemporâneos a ele. É o caso das tensões sociais e das aporias éticas que são próprias do seu tempo. Por isso mesmo, são peças muito propícias a tematizar a luta pelos direitos de minorias, as injustiças e as incoerências da sociedade.

Nesse sentido, a oposição a seus precursores é clara. Peter Szondi, autor de Teoria do Drama Moderno (1959), é um dos maiores nomes para se discutir o tema. Segundo o teórico, o drama fechado (aquele da peça bem-feita) segue parâmetros bastante rígidos de composição e estrutura: caracteriza-se, paucas palabris, por ser a representação de um conflito (ou ação: drama) inter-humano que se passa no tempo presente, desencadeando-se a partir da forma do diálogo.

Em Ibsen, contudo, a figura muda, e o tempo que era presente se torna passado. Pense bem: em uma peça de teatro, os eventos se desenrolam frente ao seu espectador, como se estivessem acontecendo naquele exato tempo em que o vemos. Isso é o tempo presente a que Szondi se refere. No caso do norueguês, embora a ação aconteça nesse tempo, como exige o teatro, é recorrente a presença de um passado desconhecido do espectador, e que motiva e reverbera na ação, influindo um alto grau de interioridade às peças.

Significa dizer que as peças ibsenianas fogem ao padrão do drama absoluto porque inserem, gradativamente, o elemento épico em sua estrutura. Conhecendo o teatro clássico, sabemos que esse elemento já está presente desde milênios atrás na tragédia grega. Isso porque, para Szondi, o drama absoluto é aquele que se passa entre o Renascimento (à exceção de Shakespeare e do Século de Ouro espanhol) e meados do século XIX, e é nesse sentido que os autores dessa geração instauram o começo de uma crise do drama.

Cabe apontar que hoje outros teóricos, como Jean-Pierre Sarrazac, questionam a crise do drama como um movimento de superação da forma dramática, enquadrando-a, antes, como um transbordamento das formas – como também acontece com a literatura e as artes plásticas.

O drama ibseniano, por isso, cria uma atmosfera interiorizada, questionadora e reverberante, muito contundente para expor as problemáticas do seu tempo. O indivíduo está a um só tempo em luta consigo mesmo, e em confronto aberto com as hipocrisias sociais. Por isso, a interioridade é o carro-chefe da sua literatura, motivando as decisões e o desenvolvimento da trama.

Para dramaturgos e teóricos que o sucederam, Ibsen ainda é um ponto conflituoso: se por um lado se reconhece a sua posição avant-garde, por outro, é também taxado de moralista e obsoleto. Segundo Moi:

Para Brecht e Artaud, e para todos os críticos que os seguiram, Ibsen era burguês, era prolixo, tinha tramas conservadoras, e suas preocupações eram inevitavelmente passé.

MOI, T. Henrik Ibsen and the Birth of Modernism: Art, Theater, Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 26. (Tradução livre)

Raymond Williams, mais comedido, propõe um contraponto justo:

Ibsen era um grande artista, trabalhando em uma tradição que era agudamente inimiga da arte. (…) Devemos lembrar, ao fazer qualquer ato de valoração final, que somos convocados a avaliação algo de que ainda fazemos parte; algo que, mais que qualquer outro homem, Ibsen criou: a consciência do drama moderno europeu.

WILLIAMS, R. Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus, 1961, p. 97. (Tradução livre)

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