Os poemas do “Rubaiyat”, de Omar Caiam

No post de hoje, trazemos para vocês três facetas temáticas que aparecem com frequência nas quadras do livro Rubaiyat, de Omar Caiam – ou Khayyam –, um matemático e astrônomo persa interessado em colecionar e criar pequenos poemas conhecidos como rubai. Os temas são: o xadrez, o vinho e o amor. Além disso, vamos falar um pouco sobre esse tal rubai, poesia antiga feita na Pérsia, diretamente ligado ao nome de Caiam, que foi responsável por por compilar mais de duzentas dessas pequenas pílulas poéticas que compõem os inúmeros Rubaiyat.

Para começo de conversa, rubai pode ser traduzido como “quadra”, tendo seu plural em rubaiyat – quadras –, palavra que dá nome ao livro de Omar Caiam em sua versão traduzida para o inglês, no século XIX, por Edward FitzGerald, que tornou célebre a obra do poeta persa no ocidente. Para aqueles quem não estão familiarizados com esse tipo de texto, uma boa forma de entender o rubai é aproximá-lo de alguns jogos infantis ou cantigas populares que temos na língua portuguesa; assim, apesar de não conhecer quaisquer dos rubaiyat, com toda certeza vocês se lembram daquelas velhas quadrinhas, tantas vezes repetidas na infância:

Batatinha quando nasce
esparrama pelo chão.
Mamãezinha quando dorme
põe a mão no coração.
Borboletinha tá na cozinha
Fazendo chocolates para a madrinha.
Poti-poti, perna de pau,
Olho de vidro e nariz de pica-pau.

Contudo, diferente de “Batatinha quando nasce”, em que as rimas aparecem no segundo e no quarto verso e que a métrica tem sete sílabas poéticas, a forma do rubai implica rimas entre o primeiro, o segundo e o quarto verso ou então entre todos eles. Além disso, os versos costumam ter a mesma medida em sílabas poéticas, variando de acordo com a tradução, uma vez que a contagem das sílabas se modifica bastante na passagem do persa para outras línguas. Para exemplificar como seriam dois rubaiyat, em português, temos:

I
Luz: é chama da vela que morreu,  à medida em que a esperança nasceu. Mas, se a chama da vela nascer e  a esperança morrer: luz, não! É breu.
II
Por que lamentas de maneira ingrata
o pecado que da vida fez amada?
Calma! porque na morte só se acha
ou a grande misericórdia ou Nada.

Essas duas adaptações – feitas por Gabriel Reis Martins, a partir das traduções produzidas por Manuel Bandeira e por Eugênio Amado – procuram preservar tanto o esquema das rimas e a métrica dos versos, quanto a ideia geral dos poemas escritos ou guardados por Caiam.

Agora, quando tratamos das traduções de Manuel Bandeira ou das feitas por Eugênio Amado, observamos quase uma completa liberdade de composição em relação aos paradigmas técnicos. Chegamos ao ponto de poder dizer que a semelhança que guardam com os poemas de Caiam está no uso da quadra para a estrofação e nos temas evocados pelos seus versos. Isso talvez esteja ligado ao fato de que ambos os tradutores se inspiraram não no texto original em persa, mas na versão francesa do Rubaiyat, feita por Franz Toussaint, livro que por si só já é bastante singular, pois traz a obra de Omar Caiam escrita em forma de prosa e sem rimas.

Apesar dessa distância, o tratamento é sublime e a poesia tocante, seja na mão de Bandeira, seja na de Amado. Por isso mesmo, sem mais delongas, fiquemos com alguns de seus versos sobre o xadrez, sobre o vinho e sobre o amor.

Xadrez

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Somos marionetes movidas pelo Céu
(E não me vá pensar que se trate de metáforas).
Atuamos no palco da vida e, logo após,
Somos postos na caixa do atroz esquecimento.
Eis a única verdade:
Somos os peões no xadrez
Que Deus joga. Ele desloca-nos
Para diante, para trás,

Detém-nos, de novo, impele-nos,
Lança-nos um contra outro...
Depois um a um nos mete
Todos na caixa do Nada.

Vinho

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Se desperdiço minha juventude
Sorvendo o vinho, essa bebida amarga,
Não me repreendas, porque minha vida
É tão amarga quanto essa bebida.
Bebe vinho! Receberás
Com ele a vida eterna. Vinho!
Único filtro que te pode
Restituir a mocidade.

Mocidade! A estação divina 
Das rosas e dos vinhos e dos
Amigos sinceros! Desfruta
Esse instante fugaz que é a vida.

Amor

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Não é porque eu seja pobre que não bebo vinho;
Não é por temer vexame que não me embriago;
Bebi para iluminar meu coração – outrora;
Hoje que tenho você, não preciso beber.
Um pedaço de pão, um pouco de água,
Fresca, à sombra de uma árvore e os teus olhos!
Nenhum sultão é mais feliz do que eu.
Nem mendigo nenhum mais melancólico 

Uma última curiosidade sobre o Rubaiyat de Caiam é que ele inspirou muitos dos grandes poetas modernos do ocidente, sendo possível encontrar poemas com a estrutura dos rubai na obra de Fernando Pessoa e também na Robert Frost, poeta que já ganhou um post aqui no Duras Letras. Vamos conferi-lo?

Omar Khayyam

Omar Caiam foi um matemático e astrônomo persa que durante sua vida, vivida aproximadamente entre os anos 1030-1123 dC, demonstrou grande interesse pela poesia e mais especificamente por “rubai”, uma quadra de versos, com estrutura fixa, que circulava na região da Pérsia naquele período. Estima-se que o autor tenha reunido mais duzentas dessas pequenas pílulas poéticas, às quais somou outras de sua própria autoria, tornando o trabalho genético de sua produção uma tarefa infindável e de difícil resolução, como o caso de Gregório de Matos, no Brasil.

“The pasture” de Robert Frost

THE PASTURE
(O pasto)

I’m going out to clean the pasture spring;
I’ll only stop to rake the leaves away
(And wait to watch the water clear, I may):
I sha’n’t be gone long.—You come too.

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.
I sha’n’t be gone long.—You come too.

Eu vou sair: limpar o novo pasto;
é só varrer, nenhuma folha fica
(e posso ver a água clara e rica):
não vou demorar. — Vem também.

Eu vou sair: pegar o bezerrinho
que fica junto à mãe. Recém-nascido,
tropeça quando seu corpo é lambido.
Não vou demorar. — Vem também.

Tradução: Gabriel Reis Martins


Análise

Publicado pela primeira vez por Robert Frost (1874-1963) no livro North of Boston (1914), “The pasture” é um poema composto por apenas oito versos, que apresentam imagens precisas, sintetizando e demonstrando de maneira clara alguns aspectos temáticos e estilístico utilizados com frequência pelo poeta americano ao longo de sua vasta obra.

Com métrica e estrutura muito bem determinadas e diegeticamente pastoril e sazonal, “The pasture” não propõe uma mistura tão intensa entre as formas literárias lírica, épica e dramática – diferente do que acontece, por exemplo, em “The death of the hired man” e na maior parte dos outros poemas de North of Boston. Além disso, ele é o menor dentre os textos que compõem essa coletânea, atravessada por poemas longos, que chegam a passar as cinco páginas de extensão.

Em síntese, trata-se de um texto pequeno, direto e preciso; de fato, uma entrada muito bem armada para o conjunto poético ao qual pertence. E, já que não acredito na possibilidade de estar à altura do original (abaixo e à esquerda), espero que essa humilde tradução que elaborei seja também uma boa vitrine, para que você corra atrás de outras cabeças que correm soltas pelo pasto de Robert Frost.

Sobre o som

Dividido em duas quadras, o poema foi feito a partir de uma estrutura fixa que se repete, o que sugere um espelhamento dos dois únicos blocos do poema. Essa estrutura é composta por um verso branco, por dois versos rimados e por um refrão (o verso final de cada quadra), que coincide em forma e em sentido em cada uma delas. Enquanto esse se trata de um octossílabo, os outros três primeiros versos de cada quadra foram compostos como decassílabos, montando um esquema simples 10-10-10-8, que acontece duas vezes.

Se por um lado essa estrutura rígida auxilia a tradução, delimitando um espaço adequado à recriação do texto em português; por outro, cria algumas dificuldades, uma vez que o inglês, diferente de nossa língua, apresenta uma maior maleabilidade das sílabas poéticas, com palavras que se aglutinam e preservam uma gama lexical variada, perdida na transição de uma língua à outra.

Outro ponto de difícil tradução são as paronomásias (principalmente, rimas e aliterações) escolhidas por Frost. Observamos, a título de exemplo, uma repetição constante de fonemas e de vogais, como nas plosivas do primeiro verso (t e p); as alveolares do segundo (l e r); do som da vogal w, no terceiro; e da nasal (on), presente em sha’n’t, gone, long e come, do verso refrão. Quanto às rimas, ambas relacionam palavras de classe gramatical diferente e de difícil aproximação em português: a primeira, away (para longe, advérbio) e may (posso, verbo); e a segunda, young (jovem, predicativo) e tongue (língua, adjunto adverbial).

Um detalhe que se soma a esses, e que torna ainda mais interessante a forma desse poema, é o movimento de “versar”, de ir e voltar, presente em quebras de sentido (como na passagem do quinto para o sexto verso), mas também na antecipação dos fonemas principais, feita pela palavra final de cada frase, em relação ao verso seguinte.

Sobre o sentido

Para fazer uma análise mais atenta de cada verso, vou propor uma tradução literal de seu sentido, tentando com isso esclarecer ao mesmo tempo o poema em inglês e a proposta de tradução mostrada antes. Primeiro, vou analisar todos os versos decassílabos do poema, para só então trabalhar com o refrão. “O pasto” (a essa altura já podemos tratá-lo com nome traduzido), como vimos, começa com a seguinte sentença:

I’m going out to clean the pasture spring

Eu estou saindo para limpar o pasto primaveril

Nessa abertura, temos a exposição de uma tarefa a ser cumprida, tendo chegado uma nova estação, a primavera: limpar o pasto. Porém, sob o significado restrito desse trabalho, parece se esconder a ideia do renascimento, da atmosfera cíclica da natureza, expressa sobretudo na palavra spring (primavera/primaveril), uma das chaves de leitura para todo o conjunto de textos de North of Boston. Essa estação, subsequente ao inverno – que é tempo de reclusão, melancolia e descanso – pode ser lida como signo de nova vida, da chegada de outro tempo e de novos trabalhos.

Mas, se você voltar à tradução que propus (a não literal), vai perceber que suprimi essa palavra quase essencial de minha versão do poema. Justifico essa ausência lembrando que, em um país como o Brasil, cujas estações não possuem diferenças tão claras, a palavra primavera ou primaveril, além de tomar um número antipático de sílabas, não causaria o mesmo impacto que possui no texto original, demandando uma nota de rodapé ou algo similar a isso que a justificasse. Tomei a liberdade de usar o adjetivo novo, que não traz a mesma precisão da palavra primavera, mas que deixa o texto mais compatível com um cenário brasileiro.

I’ll only stop to rake the leaves away

Só vou parar para varrer as folhas

Aqui percebo uma guinada mais objetiva, passando para uma explicação precisa do que será feito pelo eu do poema, seu trabalho, agora nomeado. Limpar o pasto significa, principalmente, varrer suas folhas, gesto que é contraposto no verso seguinte, no qual se complementa e expande o sentido do ofício na fazenda a uma dimensão também de descanso e contemplação:

(And wait to watch the water clear, I may):

(E posso esperar para ver a água clara)

Trabalha-se, mas pode-se também desfrutar da beleza da natureza, e o próprio uso dos parênteses reforça esse outro lado dos ofícios campestres, esse bônus para o ônus de varrer as folhas. O mesmo se dá nos três primeiros versos que abrem a segunda quadra:

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.

Eu estou saindo para pegar o pequeno bezerro
Que está parado perto da mãe. É tão jovem,
Cambaleia quando ela o lambe com a língua

O trabalho de sair para ater o garrote é cortado pela admiração da cena matrimonial animal, interrupção que hoje pode até mesmo ser encarada a partir de uma lógica crítica aos trabalhos do campo e ao carnismo. Anacronismos à parte, essa mudança da instância do trabalho para a do lazer/prazer também acontece de alguma maneira em nível formal, sendo o padrão de rimas um de seus índices, levando de pasture spring e little calf até away/may e young/tongue.

Agora, o último verso, repetido no fim de cada uma das quadras, nos traz/faz um apelo, para que acompanhemos o eu do poema em seu jogo entre trabalho e prazer, entre produzir e desfrutar no pasto. A repetição funciona como sugestão do espelhamento dos dois blocos que compõem o texto e, apesar de parecer um convite despretensioso, é também uma confirmação da companhia, uma vez que a frase não é feita em forma de pergunta, mas de afirmação:

I sha’n’t be gone long.—You come too.

Não ficarei fora por muito tempo. – Você vem também.

A possível agressividade do pedido de companhia se dissolve ao longo dos versos anteriores a ela. Parece não haver dúvidas de que se trata não apenas de um bom companheiro (esse que convida), mas também de que será uma visita agradável ao universo do eu do poema e, metapoeticamente, do autor. A isso, somo o tom coloquial que Frost empresta a seus versos, criando joias a partir das pedras e dos cactos, dos cacos da língua, truncado nossas tentativas de captar ao mesmo tempo o som e o sentido.

Seria possível traduzir com precisão todos os elementos e também a narrativa? Ou estaria Frost certo, ao colocar que a poesia é o que se perde na tradução? Bom, alguma coisa realmente se perdeu em minha tradução (seja a literal, seja a literária), uma vez que a estrutura construída pelo poeta corrobora o contexto apresentado no poema, em uma relação simbiótica difícil de contornar e reproduzir. Porém, onde velhas relações desaparecem, as novas tomam seu lugar, e onde se lia spring, se tem novo, o que, se não servir como correspondente ideal, pelo menos traz um gostinho do molho da baiana, para o prato do Tio Sam.


Como já mencionamos em outro post, Robert Frost (1874-1963) não é um autor com grande circulação editorial no Brasil, tendo sido publicado em apenas uma edição, de 1969: Poemas escolhidos de Robert Frost; além de ter o livro A Boy’s Will (1913), disponibilizado integralmente na internet, sob o título de Ímpeto de menino (2012), traduzido por Ana Cristina Gambarotto, em sua dissertação.

A poesia nonsense além de Alice: desvendando os Limericks de Edward Lear

Quando se trata de poesia nonsense, o primeiro nome que vem à mente é, sem dúvida, Lewis Carroll, com os muitos poemas que recheiam tanto Alice no país das maravilhas como Alice através do espelho. Mas há outro grande e importante autor da poesia nonsense que, sobretudo fora da Inglaterra, por vezes é deixado de lado – ou você já conhece os limericks de Edward Lear?

Conterrâneo e contemporâneo a Carroll, Lear publicou o célebre A book of nonsense (algo como “Um livro de abobrinhas”) em 1846, cujo conteúdo era uma divertida poesia convivial que ganhou grande popularidade entre os ingleses da época, os quais brincavam de fazer versos de improviso e competir na maestria dessa habilidade.
Como os limericks seguem uma forma muito regular, tanto no que diz respeito ao ritmo e às rimas, como no conteúdo que cada verso deveria apresentar (como veremos daqui a pouco), o desafio era não somente criar versos engraçados e mordazes, mas também colocá-los dentro de uma “fôrma” como essa usada nos poemas de Lear.

Vejamos um exemplo de limerick:

Traduzidos muito ao pé da letra, os versos são assim:

"Havia um velho homem de Whitehaven,
Que dançava uma quadrilha com um corvo;
Mas eles disseram 'É absurdo
Encorajar esse pássaro!'
E esmagaram o velho homem de Whitehaven."

A tradução, nesse caso, não permite uma equivalência com o ritmo e com as rimas do original (mea culpa), mas possibilita, pelo menos, apresentar a sequência dos conteúdos que se pode esperar encontrar em um limerick:

  1. O primeiro verso introduz o protagonista: “Havia um(a) velho(a)/jovem fulano de tal lugar”;
  2. O segundo apresenta a situação inicial: “Que fazia (alguma coisa incomum, normalmente)”;
  3. O terceiro e quarto introduzem a ação;
  4. O verso final conclui e/ou comenta o que se sucedeu no fim da breve narrativa.

Como se pode notar, o limerick substitui o discurso coerente e articulado em privilégio da concisão, inclusive por ser uma grande aliada na obtenção do humor (como já havia dito Shakespeare, ‘Brevity is the soul of wit’, ou, “A brevidade é a alma do chiste”). Também é muito em função desse caráter inventivo e bem-humorado que o limerick se apoia em formas muito fixas: a novidade da informação, em rimas muitas vezes inusitadas ou disparatadas, contribui para a “não-sensidade” da historieta, e o desafio de rimas e manter a métrica enquanto se inventa uma narrativa coloca em posição desfavorável a linguagem lógica e coesa da vida cotidiana.

Tomemos mais um limerick como exemplo; neste, tentei fazer uma tradução (na verdade, transcriação) que preservasse mais da sonoridade original. Vejamos:

“Havia uma velha da França,
que ensinava a uns patinhos a dança;
Se ela diz ‘Tique-taque’
– eles fazem ‘Quack!’
Afligindo a velha da França.”

A partir desse poema, podemos exemplificar o esquema de métrica e rimas, que tende a obedecer o seguinte padrão: o primeiro, o segundo e o quinto versos, com três pés (ou três “batidas”); o terceiro e o quarto, mais curtos, com dois pés. Também as rimas aparecem assim: o primeiro, o segundo e o último rimando entre si (França/dança/França), enquanto o terceiro e o quarto possuem outro tipo de rima (Tique-taque/Quack), ou seja, seguindo a ordem AABBA.
Visualmente, podemos esquematizar o formato de um limerick desta forma:

— — — (A)
— — — (A)
♥ ♥ (B)
♥ ♥ (B)
— — — (A)

Quanto aos temas e situações apresentados nos poemas desse tipo, há uma grande recorrência de assuntos ligados à comida e aos animais: as inversões, aqui, são de mão única, uma vez que os humanos, nos limericks, se assemelham a animais (vale prestar atenção também às ilustrações de Lear, que era desenhista!), mas os animais não são antropomorfizados, embora façam coisas típicas de seres humanos (como dançar, nos dois exemplos anteriores).

Também verificamos nos limericks uma desproporção sempre inconsistente entre as ações iniciais e a reação popular: por pouca coisa, às vezes eles espancam, esmagam ou matam (!) uma pessoa; outras vezes, por mais grave que tenha sido seu crime, há uma resposta branda (até irrazoável) da parte ofendida, como no exemplo a seguir:

“Havia um velho de Chester,
a quem várias crianças atormentavam;
Elas jogaram grandes pedras,
que quebraram a maior parte de seus ossos,
E desagradaram o velho de Chester.”

No caso de velho de Chester, é de se espantar que a reação a tamanha violência por parte das crianças tenha sido um mero “desagrado”, enquanto que, no primeiro exemplo, a população esmagou o velho de Whitehaven simplesmente por ele dançar com um corvo (o que, pelo menos num primeiro momento, não apresenta mal algum).
Se há algo de constante, no entanto, com relação a esses comportamentos, é que a fuga da normalidade tende a ser muito mal recebida, de maneira a haver um embate entre o singular e o coletivo, em que o singular geralmente sai perdendo.

Só para não passar batido…

Não se sabe qual é a origem precisa do limerick, porém, a estimativa mais aceita é que tenha vindo da Irlanda (o que se especula pelo tipo de ritmo, comum da música folclórica irlandesa, e pelo nome, que remete ao Condado de Limerick, na região de Munster, ao sul do país).

Além disso, há a informação acerca de dois outros livros muito importantes nessa história – anônimos, History of sixteen wonderful old women (“História de dezesseis maravilhosas velhas”) e Anecdotes and adventures of fifteen gentlemen (“Anedotas e aventuras de quinze cavalheiros”) foram editados entre 1820 e 1822, e serviram de modelo aos limericks do próprio Lear. Por sorte, graças à digitalização e divulgação científica, hoje podemos acessar esses conteúdos sem grandes dificuldades, como este que trago logo abaixo:

“Veio uma senhora da França,
Que ensinava a crianças grandes a dança.
Mas eles eram tão duros,
[Que] ela os mandou para casa irritada;
A alegre senhora da França.”

Para bom entendedor, meia palavra basta – e para quem leu todos os exemplos até aqui, a referência é mais do que clara. Quack! 😉

Para quem acompanha a série The Crown, da Netflix, há na terceira temporada um episódio em que a princesa Margaret e o presidente Johnson iniciam uma disputa de limericks que ganha um caráter bastante pornográfico (como de fato passou a ocorrer, nos meios mais elevados). Assistindo à cena, dá pra perceber bem a estrutura que apontamos aqui – e rir um pouquinho da obscenidade da realeza! Rs.

E para fechar…

É bom lembrar que, por mais que seja uma tradição muito distante da nossa, também nós temos nossas brincadeiras, como os versos improvisados no formato do “Vampiro doidão” e de “Se a Perpétua cheirasse…”, repentes e jogos envolvendo sagacidade, inventividade e humor ácido. Dá até pra brincar de “limeriques” – mas não é bem essa a questão, né?

Para quem se interessou e quer saber mais sobre o tema, a recomendação é o livro que usei como referência para esse post, que é Rima e Solução (1996), de Myriam Ávila. Além disso, é possível encontrar Adeus, ponta do meu nariz (tradução de Marcos Maffei) e Conversando com varejeiras azuis e Viagem numa peneira (traduções de Dirce Waltrick do Amarante), também de Edward Lear, traduzidos para o português e a preços bem acessíveis – pelo menos, até a presente data. Do futuro, yo qué sé? O A book of nonsense, por outro lado, não é nada fácil de se achar em português (eu, pelo menos, não consegui), mas pelo menos em inglês é bem fácil de se encontrar (para quem se vira bem no inglês, uma opção com bom custo-benefício é o The complete nonsense of Edward Lear). Quem sabe algum tradutor bem animado não encontre por aqui um último estímulo que faltava? Rs. Não deixem de me avisar!

Aos queridos e queridas que chegaram até aqui, espero que tenham gostado e que esse material tenha sido fonte de um doce deleite. ♥

Três poemas de Edimilson de Almeida Pereira

A voz de Edimilson Pereira já figura entre os leitores de poesia como uma das mais precisas, ásperas e poderosas que os últimos tempos produziram. Com publicações que vêm se colocando paulatinamente desde 1985, o poeta, nascido em Juiz de Fora, produz uma poesia que, dialogando com suas andanças de pesquisador pelo interior mineiro, subverte a ordem natural da linguagem e cria uma fala que – para emprestar a expressão de João Cabral – se fala dolorosa aos olhos e aos ouvidos do leitor.

Os três poemas a seguir foram retirados do livro Qvasi (“como se”, em latim), lançado pela Editora 34, em 2017. Nesta obra, o poeta repete algumas experimentações de poetas anteriores, despersonalizando sua poesia e dando voz aos objetos ou indivíduos marginalizados, além de encontrar, nas margens e limites desses procedimentos, o espaço necessário para colocar sua própria voz e seu estilo.

CORTE

O trigo não tem a cabeça
alta
depois que a foice passeia.

Quem está no campo,
a essa hora,
não volta com a notícia.

Quem fica à espera,
embora
creia no arco da mudança,

quando muito, vai à porta
e nutre,
em vão, a própria saúde.

Se há beleza em tal obra
(e existe,
no outro lado, uma

janela com as bandeiras
em eclipse),
em ruínas se esculpe.

MALES, NÃO

A mão da cura pensa que é livre, não é. 
Essa é mão do perigo.

Não fosse a derrota da carne, seria ociosa. 

Não me deito com a doença.

A mão que me acompanha pensa igual.
Se a roupa ainda está sã,
o dono não perdeu a alegria.

Não nos foi dado galgar largos o lençol.

Pensa que é livre o cavaleiro.

Pensa, mas
ninguém é arrieiro de sua bagem.

A ferida é amiga da mão, quem pode saber?
Sua guirlanda
e seu farnel são tudo o que importa.

A mão guarda as horas demônias 

ANÚNCIO

o lazáro se apalpa, depois de tantas mudas,
não é
a pele
que o abriga.

vindo pela rua,
distrai nossa atenção de outros cadáveres.

nessa freguesia, à margem do rio
das velhas, velhas não se querem bordados
de penélope.

aviam o que se move sob a crosta,
fortuna
e miséria
para delírio dos amordaçados.

o lázaro pertence à espécie das coisas invisíveis.

nenhum de nós o conhece sem a mácula.
— vingai a mácula e a carroceria
que a transporta.

o lázaro administra esse legado e outros
disfarçados em matrimônio.

o lázaro
apazigua os carneiros com a coragem de quem
escala o monte de vênus.

no lázaro a dor se inocenta e prova a semente
prometida.

não se humilha, o lázaro.
o que se diz sobre ele, ele mesmo no que diz,
é duplo.
se o separassem, a sombra e a moça padeceriam,
obedientes às parcas.

não se deem ao lázaro.
sua funilaria deixou de funcionar, o timbre
em suas arcadas não.

Ouça o poema

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Então adquira já seu exemplar de “Qvasi”!

Três poemas de Robert Frost

Pensar em Robert Frost no Brasil é, antes de qualquer outra coisa, pensar na ausência dos poemas de Robert Frost nas estantes das livrarias, mesmo porque a vasta obra desse importante nome da poesia estadunidense encontrou pouquíssimo lugar entre as edições em português, chegando aos leitores brasileiros apenas como mais um nome dentro de algumas antologias. Acredito eu que isso esteja relacionado a dois motivos principais: uma associação feita entre a figura de Frost e um discurso conservador (fortemente combatido no meio intelectual do Brasil) e também o desinteresse editorial por um escritor já distante de nosso tempo e que é muito pouco falado em terras brasileiras, diferente de seus conterrâneos Ezra Pound, Walt Whitman ou Emily Dickinson.

Da rápida pesquisa que fiz aqui na internet, descobri que, no Brasil, a única publicação em livro que contempla com maior compromisso a obra desse poeta é Poemas escolhidos de Robert Frost (1969), com tradução para o português de Marisa Murray. O trabalho de Murray é uma joia ante a dívida com Frost, mas traz, entre alguns acertos, problemas na tradução, sejam ligados à linguagem, ou mesmo à atmosfera construída pelos poemas tão particulares. De qualquer maneira, à parte Poemas escolhidos (que não foi reeditado desde 69), não existe publicação em livro que seja exclusiva do autor.

Ainda assim, existem trabalhos acadêmicos ligados à obra de Frost, e dedico atenção especial para a dissertação de Ana Cristina Gambarotto, defendida em 2016, na qual ela disponibiliza a tradução integral de A Boy’s Will (1913), primeiro livro do poeta norte-americano:

Depois desse rápido desabafo, longe de dar conta da tarefa árdua que é traduzir a obra completa de Frost, trago para você três poemas do autor, traduzidos para o português por pesquisadores diferentes. Os poemas Into my own, Stopping by woods on a snowy evening e Mending wall foram pinçados da obra do poeta, escolhidos apenas pelo gosto pessoal desse redator que vos escreve. De qualquer maneira, eles demonstram o rigor com que Frost desenvolveu sua obra, compondo versos de métrica exemplar e consonante com nomes importantes da literatura ocidental, a exemplo de Omar Khayyam. Também, com o terceiro dos poemas, já fica claro o domínio que o autor de North of Boston (1914) tem tanto da linguagem, como da liberdade métrica.

Espero que as palavras precisas do poeta ianque despertem em você a mesma curiosidade que despertaram em mim, a ponto de procurar novos poemas e, quem sabe, uma edição completa de tão belos versos.


Poemas de Robert Frost

INTO MY OWN
(Dentro de mim)

O meu desejo é que essa selva escura,
tão fixa que a brisa mal a mistura,
não fosse a mera máscara das trevas,
mas se estendesse até o fim das eras.

E no dia em que não me deterão,
fugirei furtivo na vastidão,
sem temer jamais encontrar clareira,
ou estrada onde a roda deita a areia.

Não vejo motivos para retornar,
ou para que os saudosos ao meu lugar
não me sigam, nem me alcancem a trilha
curiosos se inda os tenho em alta estima.

Eles não me encontrarão diferente –
só mais seguro do que trago em mente.

Tradução: Ana Cristina Gambarotto

STOPPING BY WOODS ON A SNOWY EVENING
(Parando na mata numa noite de neve)

O dono dessa mata que vejo,
acho que mora além, no vilarejo,
e não me verá aqui parado
na mata, olhando a neve em cortejo.

Meu cavalo acha estranho e inusitado
parar assim sem casa ao lado
entre o lago duro e o desterro
no meio do escuro mais fechado.

Ele balança o seu cincerro
e me pergunta se há algum erro.
Só se ouve o vento a zunir
E os flocos caindo num aterro.

A mata escura e fundo a me sorrir,
mas eu tenho promessas a cumprir,
e muitas milhas antes de dormir,
e muitas milhas antes de dormir.

Tradução: Marcus Vinicius de Freitas

MENDING WALL
(O Conserto do Muro)

Existe alguma coisa que detesta os muros,
Sob eles faz inchar a terra congelada,
Ao sol derrama as pedras superiores,
E rasga brechas em que dois passam de frente.
A obra dos caçadores é outra coisa:
Tenho seguido as suas pegadas, trabalhando
Onde não deixam pedra sobre pedra
Até espantarem o coelho de sua toca
Para o agrado dos cães sempre a latir. Tais brechas
A que me referi, ninguém viu serem feitas,
Nem ouviu serem feitas, mas na primavera
Eu as encontro lá, no tempo dos consertos.
Aviso meu vizinho lá detrás do monte,
E marcamos um dia para vistoriar
E levantar de novo o muro entre nós dois.
E vamos juntos, com o muro entre nós dois.
Cada um repõe o que rolou para seu lado.
Umas pedras são pães e outras parecem bolas,
E só por mágica as mantemos no lugar:
“Até que nos viremos, fiquem onde estão!”
Os dedos criam calos ao lidar com elas.
Com um de cada lado, isto não passa
De outro jogo ao ar livre. E nada mais talvez:
Desnecessário é o muro onde se encontra:
Além há um pinheiral e aqui há macieiras.
As macieiras, digo-lhe, não vão passar
E comer seus pinhões. Mas ele secamente
Responde: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.
A primavera é a minha malvadeza, e penso
Ser capaz de enfiar-lhe ideias na cabeça:
“Mas por que fazem bons vizinhos? Não seria
Apenas onde há gado? E aqui não temos gado.
Antes de erguer um muro, sempre me pergunto
O que busco reter e o que busco deter
E a quem ofenderia, se não o fizesse.
Existe alguma coisa que detesta os muros,
E os quer ver arrasados!” Dir-lhe-ia que os “elfos”;
Mas não são elfos propriamente, e eu gostaria
Que ele mesmo o dissesse. E observo como traz
Firmemente uma pedra em cada mão, pelo alto,
Igual a um homem das cavernas bem armado.
Caminha pelas trevas, me parece,
Que não são as dos bosques ou das sombras de árvores,
E, sem nunca ir além do dito de seu pai,
Satisfeito de nele haver pensado tanto,
Repete: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.

Tradução: Paulo Vizioli


Robert Lee Frost

Robert Frost foi um poeta estadunidense que influenciou gerações de escritores posteriores a ele, considerado, portanto, como um dos principais nomes do modernismo na poesia anglo-americana. Tem entre suas obras mais conceituadas A Boy’s Will (1913) e North of Boston (1914), reconhecidas pelo bom trato de temas ligados à natureza e aos elementos que a compõem e a percepção do mundo moderno pelos olhos de um sujeito lirico fragmentado – traços que o poeta preserva até mesmo em suas últimas publicações. Além de poesias, Frost também escreveu textos para teatro.

Além dos três poemas citados acima, nós também fizemos, aqui no Duras Letras, uma tradução e uma análise do poema “The Pasture”, de Robert Frost, poema esse que abre a coletânea de textos do seu segundo livro – North of Boston –, além de ter sido escolhido como epígrafe para a obra completa do autor, publicada em 1964.

Unicórnio (Unicorn), poema de Angela Carter

*Este poema foi traduzido em abril de 2019. Caso queiram compartilhá-lo, gentileza dar os créditos de autoria e de tradução.

UNICORN, by Angela Carter

Dos manuscritos de Angela Carter.
Disponível no acervo digital da Biblioteca Britânica.

Quer saber mais sobre poesia?

Quatro poemas de Sebastião Uchoa Leite

ELOGIO DA PROSA

A prosa é uma bala. Cabala
controversa, cabala inversa.
A prosa é uma razão rasa,
sem melopeia ou centopeia.

A prosa é rara e clara, e fica,
transpondo o que a clarifica.
A prosa é uma rota ativa:
linha reta e não rotativa.

A prosa não é rosa nem glosa,
e, sem ser hasta, não é casta.
Dura, perdura, e sem ser pura,
A prosa é uma coisa ciosa.

A prosa não condiz, mas diz,
sem dicções nem condições.
Não tem emblemas, nem problemas:
A prosa é uma causa cabal.

ENCORE

por trás dos vidros como o peixe de miss moore
que me importa
a paisagem e a glória ou a linha do horizonte?
o que vejo são objetos não identificados
metáforas em língua d’oc
em que li – não sei onde –
que o mundo é uma metáfora
o ventre do universo está cheio de metáforas
que poetas escreverão sobre o kohoutec?
toneladas de versos
ainda serão despejados
no wc da (vaga) literatura
ploft!
é preciso apertar o botão da descarga
que tal essas metáforas?
“sua poesia é um fenômeno existencial”
olha aqui
o fenômeno existencial

A VERDADEIRA DIALÉTICA

aí os caçadores chegaram
mataram o lobo e abriram a barriga
e encontraram a vovozinha
toda mastigadinha
quanto a chapeuzinho vermelho
eles comeram

ENROSCADOS NO SERPENS

Eis-me: o eu-em-si
monstro
enroscado em silepses
ensimesmudo
no sono eulemental
entre as vias venenosas
de pesadelos cogumelos
apocalípticos euclípticos.
Eis-me: todos-os-eus
euscatológico
eucríptico
eu-fim.

Sebastião Uchoa Leite

Sebastião Uchoa Leite (1935-2003) nasceu em Timbaúba, em Pernambuco. Estudou direito e filosofia na Universidade Federal de Pernambuco. Foi membro de uma pequena editora chamada O Gráfico Amador, por onde publicou seu livro de estreia, Dez sonetos sem matéria (1960). Além desta obra, também escreveu outros livros de poesia, como Antilogia (1979), Isso não é aquilo (1982), Obra em obras (1989), A uma incógnita (1991), A ficção da vida (1993), A espreita (2000) e A regra secreta (2002). Uchoa Leite teve sua obra integralmente publicada pela editora CosacNaify no ano de 2015, em parceria com a Cepe Editora. Intitulado Poesia completa, o livro conta com uma apresentação de Frederico Barbosa, que explica a trajetória estética do autor pernambucano. 

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