Poemas de amor: de Catulo para Lésbia e outros amantes

Caio Valério Catulo (c. 87-c. 54 a.C.) foi um poeta latino muito inventivo, apaixonado e de quem sabemos pouco. Dizem que nasceu em Verona e que viveu boa parte de sua vida em Roma, transitando entre personalidades importantes da política e da arte da época, em um período conturbado da história. Simultaneamente adolescente e maduro, Catulo amou a Clódia (sua Lésbia), uma mulher de família tradicional, com quem viveu encontros amorosos e a quem dedicou uma série de poemas de amor, mas também de escárnio, zombaria e de baixaria.

Como restaram apenas fragmentos da maior parte de seus antecessores e contemporâneos também poetas, alguns pesquisadores consideram que estes poemas escritos por Catulo para Lésbia e outros amores fazem parte da primeira obra consistente de poesia lírica latina – compõem o Liber Catulli (O livro de Catulo) –, que é uma possível antologia antiga, reunindo os poemas supostamente escritos pelo poeta de Verona.

Agora, fora toda essa lenga lenga histórica e contextual, para mim, Catulo é meu motivo latino, meu convite a conhecer sua língua (a da boca?) e uma de minhas paixões anacrônicas: é um poeta de meu cânone pessoal. Foi por esse motivo que decidi trazer um pequeno compilado com sete de seus poemas, especificamente aqueles em que o amor, às vezes debochado e violento, está em primeiro plano. As traduções são de João Angelo Oliva Neto, de sua versão integral da obra de Catulo: O livro de Catulo, publicado pela Edusp.

Espero que vocês aproveitem a leitura! ♥


5.

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos mais severos,
a todos, voz nem vez daremos. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim mais cem – então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
p’ra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tantos souber, tão longos beijos.
7.

Perguntas, Lésbia, quantos beijos teus
bastam p'ra mim, e quantos são demais.
Quantos sejam os grãos de areia Líbica
a jazer em Círene, em láser fértil,
entre o templo de Júpiter ardente
e de Bato vetusto o sacro túmulo;
quantas estrelas dos homens testemunham
(furtivos), tantos beijos tu beijares
basta a Catulo, insano, e é demais.
Assim os curiosos não consigam 
computar nem más línguas pôr quebranto.
87.

Mulher alguma pode se dizer bastante 
amada quanto amada é por mim Lésbia.
Em pacto algum jamais houve tanta confiança
quanto a que em mim se viu em teu amor.
109.

Minha Vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.
Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
que sincera e de coração o diga
e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.
14b.

Se acaso vós leitores sois
das minhas inépcias e as mãos
não vos repugnar ao tocar-nos, 
AFASTAI A SEVERIDADE
POIS VERSOS VIRÃO MAIS PICANTES

⚠️ Os poemas abaixo possuem linguagem sexual e obscena ⚠️

15.

A ti eu me confio e meus amores,
Aurélio, e de pudor eu peço vênia
pois se já desejaste algo em teu ânimo
que mantivesses casto e inteirinho, 
preserves em pudor este menino,
não digo das pessoas – delas nada
temo a passar na praça aqui e ali
com suas próprias coisas ocupadas.
Minha paúra és tu, e é o teu pau, 
fatal aos bons, fatal aos maus meninos;
por onde queiras, como queiras, leva-o,
quando saíres, pronto para tudo.
Só ele excluo, sim, pudicamente,
pois se uma ideia má ou louca fúria 
te impelir, pérfido, a tamanho crime 
de contra ele investir, outro eu,
então, ah!, infeliz e malfadado, 
pelos pés arrastado, por teu rabo
aberto vão passar mugens e rábãos.
32.

Peço minha, boa, doce Hipsitila, 
minhas delícias, meus encantos, pede 
que eu vá dormir a sesta junto a ti.
E se pedires cuida disto: que outro
não introduza entraves na portinha
nem queiras tu sair por aí fora.
Mas fica em casa e vai te preparando
para umas nove contínuas trepadas.
E se é que vais chamar-me, chama logo,
que almoçado, deitado, e satisfeito,
tanto a túnica eu furo quanto o manto.

Lirismo enquanto doença

Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.

– Giorgio Agamben, em Estâncias  

No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.

Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:

Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.

O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.

O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”.  Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.  

A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.   

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima.

“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.

O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma.  É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,

Nuvens 
Uma chance 
Desver a lua  
Clouds - 
a chance to dodge 
moonviewing. (Poema disponível aqui)

A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.

De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo.  “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.

A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta.

5 poemas de amor para o Dia dos Namorados

Ah, o Amor! Um dos temas mais explorados pela literatura e pelas outras artes – que vem nos acompanhando desde os tempos mais antigos, não deixando de alcançar também as inventivas ficções futuristas – sem jamais esgotar-se, contudo. No post de hoje, dedicado ao Dia dos Namorados, nós do Duras Letras separamos cinco poemas que trabalham o Amor, lhe dando cara e cabelo, nome e brilho, voz e silêncio. A seleção é composta apenas por poetas brasileiras e brasileiros, alguns do século XIX, outros do século XX. E sabemos, é claro, que muitas joias preciosas poderiam ter entrado nessa lista, sendo ela, como qualquer outra, incapaz de dar conta de uma temática tão vasta ou mesmo de apreender toda a chama do Amor, que devora os corações. De qualquer modo, esperamos que os poemas abaixo, se não servirem de chama, pelo menos despertem uma fagulha.

Poema sem título, de Álvares de Azevedo (1831-1852)

Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era a mais bela! Seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Poema Os cisnes, de Júlio Salusse (1878-1948)

A vida, manso lago azul algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós constantemente
um lago azul sem ondas, sem espumas.

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
matinais, rompe um sol vermelho e quente,
nós dois vagamos indolentemente,
como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo:
quando chegar esse momento incerto,
no lago, onde talvez a água se tisne,

que o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nade nunca ao lado de outro cisne!

Poema V, de Hilda Hilst (1930-2004)

Aos amantes é lícito a voz desvanecida. 
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido: 
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora, 
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês 
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo 
Ronda escurecida? 

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento 
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor 
Quando tudo anoitece? Antes lamenta 
Essa teia de seda que a garganta tece. 

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito 
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome 
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido 
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.

Poema Eros II, de Orides Fontela (1940-1998)

O amor não
vê

o amor não
ouve

o amor não 
age

o amor
não.

Poema Escritura, de Armando Freitas Filho (1940- )

No escuro eu não apuro 
o que de você existe entrelaçado 
neste muro: no escuro o que procuro
é a cruz do seu corpo, a cicatriz,
o punho, a palma no instante
da abertura, o espaço tão vazio
onde situo, a perda, a rutura,
a veia degolada, e gota a gota
o inútil rumo do meu sangue: 
– um derrame de ramos feito de sussurros –
e esta ferida que não cessa,
e que tanto me custa descrevê-la,
e quanto mais eu grito, mais ela fura:
– sanha, descostura de mim, – amor,
eu sangro aqui, sob a lâmina
da sua fala, assim, punhal,
palavra que não seguro e se enterra
até o fundo, até o cabo, em toda a treva, 
e na esplanada de areia da memória 
o que escrevo é somente um risco,
um corte que a lembrança recorda, 
ou este acorde que suas garras tocam.

“Azul” – seis poemas inéditos de Daniele Gomez

Ouriço – de Bruna Emanuele

É muito comum ouvir por aí que os diários trazem inúmeros benefícios à vida cotidiana: ajudam contra a ansiedade, preservam a memória, esclarecem sentimentos conturbados, dão destino ao que parece inútil etc. Coisa parecida costuma ser dita sobre a poesia, que, além de fonte de enorme prazer, fornece repertório simbólico, ajuda na interpretação do que parece imapeável, intangível, e que até nos aproxima do Divino.

A lírica de Daniele Gomez encontra um caminho entre ambos, diário e poesia, traço que salta aos olhos quando nos detemos sobre os poemas de “Azul”, livro ainda em fase germinal, que não deixa de pegar também outros percursos – tocando a prosa, a confissão, a canção, o relato – para construir uma narrativa entre fagulhas líricas.

Hoje, no Duras Letras, apresentamos com muita alegria estes seis poemas inéditos de “Azul”, de Daniele Gomez.

Espelho

Zonza, um estardalhaço entreabriu meus olhos. A essa hora, já entrava Sol pra cacete pela janela e me deu um mal-estar terrível na cabeça. Entendi, depois de uns poucos segundos, que fora o meu espelho comprido se estilhaçando no chão do quarto. Três horas da tarde (seria uma merda limpar a bagunça). “Um gosto de asfalto na boca.”

Poemas sem título

Faz dois dias que o espelho se quebrou no chão do quarto. Não sei que movimento, ou que vento fez com que se atirasse. Faz dois dias que amontoei seus cacos perto do baú. Mas não catei, sem ânimo. Faz dois dias que estou zonza; desde o estardalhaço, não parei de estar. Começo a culpar aquela ressaca de quarta-feira de cinzas, ou tudo antes dela.
Esta tarde catei, finalmente, os cacos. Já está me dando nos nervos isso dos enjoos e de me doerem as pernas. Pensei que limpar a sujeira me tiraria o mal-estar; que era sem motivo, parecia coisa da minha cabeça. Estou com um pressentimento. Talvez eu atire fora o que restou do espelho.
Este caderno cheio de memória. E aquela parede azul do quarto anterior. E eu estava olhando a parede desbotada do quarto novo e o espelho jogado num canto e estes pássaros de papel preto colados nas paredes. Pingou um pouco mais daquele azul na calcinha. Corri para a toalete, abaixei as calças depois de desabotoá-las. Desceu devagar, denso, da vagina. E o chão, azul.

coloque os fones para ouvir rebel rebel, david bowie

https://durasletras.com/wp-content/uploads/2022/08/david-bowie-rebel-rebel.mp3
Eu não sei porque, mas gostaria de me sentar no chão do banheiro e escrever infinitamente. Para ler depois. Para lerem qualquer loucura que eu exalo. Colocada aqui, no piso branco, azulejo sujo de azul. Tinha fumado um baseado e acho… pirei na mancha de menstruação, nas gotas. São bastante viscosas e espessas. Tem um certo gosto. Ouvi uma voz amigável me dizer: “Não me lembro de ter comido nada azul na vida.”
Parece ter descoberto o perigo de andar por aí aberta. De poder ser com ele e de me ajudar a carregar meus cacos de uma casa à outra. Ele sacou meus impulsos. Perdeu a paciência com minhas impaciências. “Não me dê atenção, mas obrigado por pensar em mim.”
Estávamos rindo há três minutos atrás, contudo, brigamos explosivamente e o silêncio veio e se derramou. Só aí eu pude enxergar o quanto eu estava fodida por termos virado a noite acordados, cheirando o pó bom do hotel. Cerrei as pálpebras; desabei-corpo e dei voz-fala ao pino.
Pingou! Uma gota de catarro-lágrima na blusa. Funguei um pouco. Ele me olhou pelo reflexo do espelho. Partido. Ela não veio quando eu quis. Achei o meu desejo estúpido pra caralho. Xinguei um palavrão, pra piorar. Eu fodi com a nossa noite de insônia.

SINOPSE de “AZUL”, de Daniele Gomez

D. é uma jovem artista de 22 anos que vive desesperadamente. Considerada cult, suburbana, devassa e sísmica, em sextas-feiras veste-se de roxo como aquela mulher do abismo. Leva um caderno azul e várias canetas, entra e sai como um sopro. Aluga uma kitnet onde tem formigas, facas cegas, um gato sobre o colchão, dois cinzeiros, 45 metros quadrados, privada colada no chuveiro, etc. etc. Azul é o seu dia a dia.

Azul ainda não tem data de publicação, mas participa atualmente da seleção de originais da Editora Urutau. As ilustrações e a preparação do livro foram feitos por Bruna Emanuele, da Edições Mariposa.

Daniele Gomes (foto de Juliana Moreira)
Bruna Emanuele, artista visual e profissional do texto

Sobre a autora

Daniele Gomez nasceu no verão de 1993, em Belo Horizonte, cidade onde vive e atua como redatora e mestre de sarau na iniciativa de jornalismo cultural feminista, Entre a Liberdade e o Paraíso. É formada em Letras, pela Universidade Federal de Minas Gerais, como Bacharel em Estudos Literários. É escritora, multiartista, arte-educadora; integra o coletivo Geração Perdida de Minas Gerais. “Passeios” é seu primeiro livro publicado.

4 poemas inéditos de “Lua Vespertina”, de Marina Naves

Lua Vespertina, da poeta mineira Marina Naves, é, antes de tudo, a história da vida de uma pessoa qualquer contada por meio da poesia. Seu protagonista se chama Azevedo, e seus caminhos são contados pelas páginas do livro desde a tenra infância – até o momento de sua morte. Eventos detalhados não são abordados, mas sim as impressões e sensações que se tem sobre elementos comuns à vida de qualquer ser humano: a curiosidade, o crescimento, o advento da maturidade, o amor, a melancolia, a tristeza e o medo. As fases da vida do protagonista acompanham as fases da Lua (começando, portanto, no nascimento – a Lua Nova – , e culminando na morte – a Lua Minguante).*

* Texto fornecido pela autora.

Agora, com vocês, quatro poemas de Lua Vespertina. 🌗🌘🌑🌒🌓

SÍSIFO

Hoje escrevi na lama um verso
todo bucólico de pastorinhas.
Falei do orvalho e da neblina,
e das ovelhas brancas de algodão.

Logo apareceu um desses gatos
e nas letras pisou, todo incutido.
Fiquei bravo, fui jogar bola,
e o poeminha ficou todo sujo.

É fácil não ser arrogante,
e mais fácil ainda é se esquecer.
Hoje lembrei enquanto dormia:
sonhar é bom, em sonhos nada perco.

Mas eu me acordo e tudo já se esvai,
tal como versinhos no barro.
Bom seria não fazer nada disso,
igual a mamãe, o papai e o pastor.

HECATOMBE
(de cem suspiros)

“daí, suor me poreja de alto a baixo, então
tremuras me tomam toda, orvalhada fico, mais
que a relva, com pouco lassa, morta” (Safo)

Quisera Zéfiro, com seu carinho,
beijar a relva macia com o
mesmo encanto com que tu me beijas;

quisera Penélope tecer linho
com maior saudade e maior dor
do que as minhas, quando o imo me aleijas

Quiçá tampouco Apolo luminoso
tanto amor não louvou, quando em jardim
transformou o corpo&sangue derramado
de Jacinto; não, nem sequer o Febo
tamanho zelo conseguiu louvar

Pois é maior do que qualquer colosso
o que em minh’alma de campos sem fim
eu carrego; e nem vinho libado,
nem corpo ungido d’um herói mancebo,
são tão benditos por mim em meu altar

quanto tu.

OFÉLIA
(a uma donzela morta)

“Et qu’il a vu sur l’eau, couchée en ses longs voiles,
la blanche Ophélia flotter, comme un grand lys”
(A. Rimbaud)

Sua face, mais que o brilho da Aurora
resplandece — e a tez pálida e gelada
dorme em mimosos gypsos adornada,
enquanto lhe nina a própria Flora!

Fronte graciosa, ainda quente, ali ora
e ostenta a Beleza que lhe foi dada!
Voz meiga de anjo, pura, imaculada,
estrela alguma me ofusca a senhora!

O seu semblante morno dorme e cora,
espero-a volver-me o olhar agitada!
Espero-a; o tempo passa e ali demora…

Não acorda! Esta víbora, vil espada
corta-me a alma como cortou-lhe outrora;
como a amarei morta, desanimada?

OBSESSÃO

“Mais les ténèbres sont elles-mêmes des toiles
où vivent, jaillissant de mon oeil par milliers,
des êtres disparus aux regards familiers”
(Charles Baudelaire)

Tudo que vivo era, que respirava
no ar o seu perfume dissimulado,
sentia na alma a traiçoeira clava
de em si próprio amar mortal pecado.

Um inferno inteiro transmutado em
lábios róseos, luxúria e asco;
eram seus negros olhos, seu desdém,
o machado profano do carrasco.

“Cruel esfinge dos austeros vitrais,
teu corpo ‒- serva me, servabo te,
suplica-lhe misericórdia entre ais…”

“Isto é tudo que aqui se vê ou sente…”
— replicara ao seu rosto nos cristais —
“…sê tu vassalo da tua mente.”

O livro de Marina Naves está à pela editora Margem.
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Aproveite para ler também

Três poemas de “Claro Enigma”, de Carlos Drummond de Andrade

Nesta segunda semana de março, especificamente no dia 10/03/2021, o livro Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, completa 70 anos desde sua publicação. Publicado em 1951, pela editora José Olympio, esse livro é entendido por alguns críticos como a obra prima de Drummond – alcançando inclusive a alcunha de melhor reunião de poemas já publicada no Brasil, dentre tantas da poesia nacional –, sendo também um dos fatídicos “livros de virada” do autor itabirano.

No post de hoje, você vai conferir três dos poemas que figuram em Claro Enigma, poemas estes que foram escolhidos de forma a escapar levemente dos dois que talvez sejam os mais conhecidos do livro: “A máquina do mundo” e “Os bens e o sangue”.

Mas, antes de lermos os poemas, vamos a algumas detalhes sobre essa obra prima da poesia brasileira.

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Após passar por duas fazes célebres aos olhos da crítica literária – uma modernista, sob a qual vieram os poemas de Alguma Poesia (1930) e de Brejo das Almas (1934); e uma segunda engajada e social, na qual estão livros como A rosa do povo (1945) –, a chegada de Claro Enigma é, na trajetória de Drummond, o assumir definitivo de uma nova máscara.

Recuperando elementos caros à tradição lírica ocidental, como o verso metrificado e o soneto, o autor confronta sua faceta imediatamente anterior, agindo/escrevendo a partir de uma postura antihistórica e antipolítica (em sentido restrito, é claro). O livro está dividido em seis partes que juntas compõem uma suíte interessantíssima, que se digladia com a disposição relativamente simples das obras anteriores e constrói um sentido caleidoscópico, do vocabulário às temáticas. O distanciamento do presente, enquanto lugar concreto e social, é bem representado desde a epígrafe que Drummond escolheu para o livro: Les événements m’ennuient (em tradução rápida: “os acontecimentos me aborrecem”), uma frase emprestada de Paul Valéry, que coloca o autor brasileiro alinhado com um legado interessado em mergulhar na linguagem e na técnica, tendo por primeiro plano o mar da língua (la mer), e não sua espuma (l’écume) – para fechar aqui com outra menção a Valéry.

Sabendo disso, desfrutemos, abaixo, dos três poemas exemplares do que observamos acima, essas características tão maturadas pelo Carlos Drummond de Andrade que nasceu (ou cresceu) na década de 1950, com a publicação de Claro Enigma.

O livro – e seu autor –, em mais um novo ano, presenteiam e marcam a nossa trágicômica história nacional.

Sonetilho do falso Fernando Pessoa

Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui, 
mas não sou eu, nem isto.

O chamado

Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.

Oficina irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

“Eu não sei. Acho que viajo muito.” – Entrevista e poemas de Marina Naves

Conversamos hoje com a poeta Marina Naves, que está em vias de lançar seu primeiro livro de poemas, Voyager (editora Escaleras). Marina (21), é poeta, tradutora e pesquisadora. Seu caminho na poesia começou ainda na infância, quando passou a se interessar pelos poemas do seu avô, João Naves de Melo. Cecília Meireles também foi de grande importância para o seu despertar literário. Na adolescência, com a leitura de poetas ultrarromânticos, Marina começou a criar gosto pela rima e pela métrica. Já na Universidade Federal de Minas Gerais, onde se formou bacharela em Estudos Literários, a autora conheceu suas duas grandes inspirações: o irlandês W. B. Yeats e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Atualmente, Marina estuda e desenvolve pesquisa nas áreas de Literatura Portuguesa, Intertextualidade e Recepção dos Clássicos.

Isadora – Marina, obrigada por conversar com a gente hoje! Vamos começar com a criação: como é seu processo criativo? E como nasceu o Voyager?

Marina – O prazer em ter essa conversa é todo meu, Isadora! Sobre o meu processo criativo, gosto de dizer que tenho apreço em construir versos e estrofes a partir de imagens que me aparecem (às vezes claras, às vezes mais obscuras). A intertextualidade com outros autores também me ajuda bastante a me destravar de qualquer bloqueio criativo em que eu possa me encontrar em algum momento! Assim, posso partir para a segunda pergunta: Voyager nasceu do propósito de fazer uma espécie de “diário de viagens” que narrasse as jornadas que já fiz para diversos lugares. Mas, claro, tal conceito foi mudando e tornando-se mais abstrato, dando espaço para viagens mais estáticas e conceituais – que não nos tiram do lugar físico em que nos encontramos, mas que nos levam a pensar e conhecer novos horizontes.

Isadora – Muitos dos seus poemas trazem referências da cultura clássica, por meio de menções a personagens e mitos, por exemplo. Como você enxerga a sua relação com essa tradição e de que maneira seus poemas dialogam com ela?

Marina – Minha relação com os mitos clássicos é bem forte por diversos motivos. O primeiro deles, talvez, seja puro gosto. Tenho imensa curiosidade e afeição pela cultura greco-romana, o que até me levou a pesquisá-la com mais afinco enquanto estudante de Letras. Um segundo motivo para construir diálogos com a tradição em meus poemas, seria o fato de que eu acredito fortemente que os clássicos são inesgotáveis em tema e em forma. Podemos aproveitá-los para tratar de quase qualquer assunto. Os mitos gregos, por exemplo, até hoje podem ser abordados com temáticas reavivadas. Assim, eu diria que o arcabouço criativo que a tradição nos dispõe é algo tão valioso que não pode ser ignorado.

Isadora – Outro ponto que me chamou muita atenção na leitura de Voyager foi a presença marcante de alguns lugares que inspiram vários dos poemas do livro, como Montes Claros, Curitiba e Dublin, por exemplo. Como foi a escolha desses locais? O que são esses lugares para você?

Marina – Esses lugares foram escolhidos e receberam tanto destaque por causa de uma grande memória afetiva que tenho por eles: por exemplo, morei anos em Montes Claros, sonhei desde a infância em visitar a Irlanda… as imagens, ou lembranças, que eu tinha deles eram fortes e vívidas, então pensei em começar a escrita bruta do livro por esses lugares.

Isadora – E quanto à ordem dos poemas? Como foi essa curadoria?

Marina – A ordem dos poemas foi pensada para seguir uma trilha. A intenção é dar ao leitor a sensação de que está fazendo uma viagem dentro do próprio livro, seguindo pelo mundo greco-romano, depois por um ambiente de verão, depois pelo rio São Francisco e por aí vai. Tive também a ideia de fazer com que o livro terminasse num tom cíclico, como se a viagem pela vida não acabasse senão na morte.

Isadora – Obrigada, Marina! Gostaria de acrescentar alguma mensagem para os leitores de Voyager?

Marina – Eu que agradeço, Isadora! Acho que gostaria de falar mais algumas coisinhas sobre Voyager. Este pequeno livro de poemas trata de várias questões ligadas ao mundo das viagens (sejam estas introspectivas – ocorrendo no âmago de quem narra –, metalinguísticas – passando pela própria linguagem – ou concretas – ou seja, que ocorreram de fato). Os poemas selecionados para compor esta obra são reflexo de lembranças de viagens passadas, desejos de viagens vindouras e elucubrações que são, antes de tudo, viagens dentro da própria alma e da própria mente. Os poemas mais empíricos não deixam de trazer temas mais amplos, mesmo que tratando de eventos vividos por mim: tudo é construído tendo como base sensações e impressões.


Com vocês, três poemas de Voyager, por Marina Naves.

Dublin, 2014

“Dublin made me and no little town
with the country closing in on its streets”
(Donagh MacDonagh)

Por muitos anos sonhei conhecer-te,
ver em tuas vias fadas voarem…
sentir teu ar encantado e ancestral
invadir-me os poros, narinas virgens.

Mas tudo foi diferente. Contigo
aprendi algo do futuro também.
Nas tuas estradas de alvos casebres
caminhavam juntos cabras e carros.

Leprechauns escondidos em Dame Street
ouvem Brigid em igrejas cristãs;
eu também ouço, e ouço mais: Oisin

tocando sua harpa em Saint Stephen’s Green.
Há tradições nestas ruas — ocultas —
que não perecem com o andar dos anos.

Lua

Alvo corpo de Ártemis destemida,
minhas mãos buscam tua branca pedra.
Que minhas cinzas sejam em ti, vida —
expostas como as mentiras de Fedra.

Com um vestido pesado e robusto
(que me seja leve como o universo
— tão macio como o materno busto)
Quero visitar-te em sonhos imerso.

Em uma feliz cadeira de praia
quero descansar sobre tua carne,
observando a doce dança de Gaia.

Que teu irmão, Febo Apolo, não me encare;
que sua flecha-luz em mim não caia,
pois só no escuro brilha tua face.

Via-Láctea

“Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”
(Olavo Bilac)

O som das letrinhas dessa palavra
me lembra o amor: é leite na tigela
com cereal — e o cereal tem a cor
dos cabelinhos amarelos dela.

Ou pelo menos era isso que eu achava
quando tinha uns sete anos. Hoje apenas
me intrigam as estrelas; tão pesadas
mas tão macias — leves como penas.

Pensando bem, igualmente intrigantes
são as flores. Tão cedo nascem e
logo morrem. O que é melhor então

prometer a galáxia fria e eterna
ou as rubras rosas quentes e perenes?
Eu não sei. Acho que viajo muito.
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