Entre Drummond e Borges

Carlos Drummond de Andrade e Jorge Luis Borges cresceram e criaram suas literaturas em contextos muito similares: embora nunca tenham chegado a se conhecer, os dois foram escritores a presenciar as grandes mudanças da modernidade, a vida da cidade, o conturbado começo do século XX e suas grandes marcas na história. Apesar de o primeiro ter se alçado principalmente como poeta, enquanto o segundo se destaca pelos seus contos, semelhanças relevantes permeiam a literatura desses dois nomes de peso da América do Sul. O texto a seguir apresenta algumas das ligações entre os autores, a partir dos aspectos fundamentais de suas obras.

Tão complexa é a realidade (…) que um narrador onisciente poderia redigir um número indefinido, e quase infinito, de biografias de um homem.

(Jorge Luis BORGES)

A partir dessa citação, é possível observar que na obra borgeana há toda uma apropriação da realidade que assume o pressuposto da multiplicidade e do momentâneo: as muitas camadas do real se sobrepõem e através do seu recorte de imagens e de seu consecutivo desvio se delineia um “caos de aparências” que atravessa a literatura do autor.

Nesse sentido, o argentino delimita um olhar sobre a realidade em que o objetivo não é a mímeses, mas o simulacro metafórico que prescinde de referentes extratextuais. Por essa mesma razão, os personagens borgeanos não são psicologizados, e a ênfase se dá sobre a trama, motivo pelo qual a brevidade se mostra um recurso estilístico recorrente, dialogando com a tradição literária (e não apenas a argentina) em vistas de questioná-la e não enfeitar a flor, propondo mesmo uma reflexão sobre o que significa criar uma literatura argentina – o que ultrapassa em muito a inserção de elementos da cor-local.

Ainda assim, a escrita borgeana se apropria, borra, e miniaturiza toda a tradição argentina do século XIX: parte do caráter popular de seus contos tem a clara influência da literatura gauchesca (marcas de oralidade, culto à coragem, à violência, etc.), como se percebe em Hombre de la esquina rosada, de Historia universal de la infamia, a título de exemplo.

Há também uma forte marca anti-intelectualista, no sentido de que a busca da verdade nas bibliotecas e nos livros não leva a lugar algum. Ela assume, por isso, um caráter populista, escolhendo buscar a verdade na vida do homem comum, ao mesmo tempo que busca a totalização no seu cosmopolitismo, na erudição e no manejo da cultura.

Também parte dessa busca a ideia de circunscrever a realidade através do olhar alheio, o que faz com que seus contos carreguem ares de transcrição de relatos de terceiros. Por isso mesmo, Borges se apropria do outro e distorce a realidade desse outro sem referente externo, até sobrar a imagem comunicada a partir de fragmentos coordenados de forma coerente, ainda que plural. O jogo borgeano é, portanto, o jogo das máscaras e dos contrastes, em que os personagens, a um só tempo, estão e não estão desmascarados, onde o rosto e a máscara se encontram num ponto de divergências.

DRUMMOND
O poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade

Por sua vez, Drummond se apropria da realidade amparando-se na ideia de registrá-la como se dela estivesse apartado, embora não o esteja de fato, e embora o faça através da estética modernista. A essa busca por limitar-se a registrar (fatos, acontecimentos, sentimentos), contrapõe-se o desejo de criar laços com o outro, motivo pelo qual se apropria das memórias do passado de todos: assim como Borges, revela um claro anseio pela totalização, que se espelha nas muitas menções à palavra “mundo” na sua poesia, como destaca Miguel Wisnik.

Insere-se, assim, o gosto por um cotidiano expandido, alargado, que, como Borges, guarda o traço popular na sua poética. Nesse sentido, livros com o A Rosa do Povo confeccionam uma espécie de epopeia do cotidiano, em que a busca por uma verdade recai inevitavelmente na verdade do homem simples, do qual o poeta se aproxima como uma alteridade, como no poema O Medo, que dialoga com seus próprios temores e sua subjetividade solitária, a exemplo de Consolo na praia.

Nesse aspecto, o eu e o mundo se aproximam, se distanciam, se contradizem e se complementam na medida em que o eu-poético questiona as possibilidades dessa coletividade e de se fazer poesia na cidade e no mundo moderno. Tal inquietude, por certo, permeia toda a construção literária do poeta itabirano: o cosmopolitismo drummondiano, à divergência do escritor porteño, passa pelo sentimento de não pertencer a nenhum lugar ou grupo (“Itabira tornou-se apenas um retrato na parede”), marca de sua profunda solidão e seu senso de dépaysement, como se coloca na incompletude do poeta na roça e no elevador:

Explicação

Meu verso é minha consolação
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre…
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
Mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, [preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola…
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de quaquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era…
no elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

(DRUMMOND, Explicação. In: Alguma Poesia – 1915. Grifo nosso)

Nesses termos, o poeta mineiro demonstra apreender a realidade na perspectiva do objeto que escapa, como se quebrasse a própria possibilidade do fazer poético na bênção e na maldição de fazer parte do mundo moderno. Assim, indivíduo e mundo se flexionam constantemente, dando pistas da posição desse eu-poético frente a esse novo mundo: deslocado, inadequado, anacrônico, que carrega desde seu primeiro verso a profecia gauche (“Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.), mas que se força a esse espaço fronteiriço na postura de reconhecer-se enquanto falta ou sobra, como inclusão excludente, fazendo que essa poesia se insurja contra a “grande máquina” que coisifica pessoas e relações, mas também contra as palavras, colocando-se como uma arte anárquica que subverte o seu sentido. Desse modo, é como se essa procura pela poesia não se afastasse da procura do mundo, em que Drummond se coloca como condenado: ainda bem.

Este texto foi concebido como trabalho final para a disciplina Borges e Drummond, ministrada pelo prof. Roberto Said da Faculdade de Letras da UFMG.

Uma introdução à literatura comparada

Texto por Isadora Urbano

“Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos.” (Joseph Campell – O Herói de Mil Faces, 1989)

Alguns dos primeiros registros de literatura existentes atentam para a Grécia Antiga. A Ilíada, que narra a Guerra de Troia, e a Odisseia, que conta o retorno de Ulisses a Ítaca, ambas atribuídas a Homero, são os poemas épicos que deram origem à tradição literária ocidental. Assim como elas, as obras escritas na Antiguidade Clássica, que sobrevieram aos séculos, constituem a pedra fundamental para a concepção e modelo de literatura que temos e (re)criamos até hoje.

É fato que histórias de qualquer tempo e espaço possuem semelhanças e contrastes. Essas similaridades e discrepâncias podem ocorrer através dos personagens, dos recursos estilísticos dos autores, das descrições paisagísticas, do contexto histórico, geográfico, político ou social, da trama, do canal de transmissão, do público a quem se direciona, entre tantos outros fatores. São essas as relações que a Literatura Comparada tem por objeto de estudo.

No que tange, entretanto, à literatura considerada clássica, saltam aos olhos aqueles elementos que coexistem, de maneiras diversas, em todas ou quase todas as obras. Se tomamos como referências os livros canônicos – como a Ilíada, a Odisseia, Eneida, Édipo Rei, A Divina Comédia, Dom Quixote, Hamlet, O Pequeno Príncipe, Os Miseráveis, Crime e Castigo, Orgulho e Preconceito, Walden, etc., temos a rápida percepção de que todas essas histórias que sobreviveram aos seu tempo e continuam sendo lidas têm em comum o fato de tocarem questões atemporais da humanidade.

Citando Ítalo Calvino, “um clássico é um livro que nunca terminou aquilo que tinha pra dizer.” Talvez seja essa uma das razões para haver tantas releituras dessas obras, em todos os sentidos.

Dentre os clássicos, há uma categoria que se destaca pela sua influência em toda a cultura e forma de pensamento ocidentais: a mitologia. Mesmo quando não lemos os textos originais, que já não existem na cultura da oralidade, mas que foram escritos e por isso preservados, estamos sempre rodeados de suas releituras, seja na forma literária, no cinema, na pintura, escultura ou música, entre tantas outras mídias modernas.

Exemplos incontáveis se encontram na literatura pop, nos quadrinhos e no cinema hollywoodiano. Percy Jackson, a Mulher Maravilha e Hércules possuem referenciais não muito difíceis de se recuperar, enquanto algumas outras obras que se apropriaram desses referentes exigem uma investigação mais atenta. 

Na mitologia grega, Hemione é filha do rei Menelau e de Helena de Troia. Na saga, é uma das protagonistas, junto a Harry e Rony, reconhecida pela sua inteligência e sagacidade imbatíveis.

Um exemplo é a saga Harry Potter, da escritora britânica J. K. Rowling, em que encontram-se vários elementos provenientes de lendas celtas, escandinavas, irlandesas e orientais, dentre as quais a mitologia greco-romana, que inspirou desde nomes de personagens a monstros e criaturas mágicas.

Evidentemente, os elementos foram usados em contextos e com objetivos muito diferentes do que possuíam nas suas histórias de origem, mas ainda são próximos o bastante para notarmos com clareza o impacto da cultura mitológica clássica em uma das sagas de maior sucesso e difusão da literatura infanto-juvenil contemporânea.

Algumas outras referências, a título de exemplo, estão listadas abaixo:

É ao crítico de literatura comparada que cabe identificar e analisar a fundo as relações que se estabelecem entre os elementos que se aproximam e se contrastam, evidenciando as reverberações e criação de sentidos que se instauram a partir desses alinhamentos, mas para o leitor comum também pode ser um exercício de leitura instigante.

Até hoje, as relações entre influência e a ideia de talento individual se discutem, embora muito já tenha sido superado. Sabe-se que toda a literatura está inserida em um sistema que se apropria e reelabora o que já foi lido, com ou sem a intenção de fazê-lo. Contudo, o que antes se admitia apenas como plágio ou ausência de criatividade, hoje é visto sobre outro prisma.

Exemplo clássico é O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, que por longa data foi rechaçado como réplica de Madame Bovary, do francês Flaubert. Atualmente, o olhar que se lança é o da intertextualidade, que cria novos sentidos e coloca outros elementos em evidência. Assim, o escritor já não carrega o fardo de renegar a influência e combatê-la, mas, pelo contrário, lhe é permitido explorar suas potencialidades a partir de uma bagagem única.

Jorge Luis Borges (1899-1986)

Kafka e seus precursores, conto do argentino Jorge Luís Borges, é bastante usado para ilustrar a questão. Pela lógica da inversão, o conto joga luz sobre o escritor como criador de seus precursores. O exemplo é simples de ser entendido: uma vez que se tornou célebre, o estudo de Kafka levou ao exame das suas influências, que por si só não tinham grande importância até então. Por isso mesmo, o sentido da influência se questiona, dando destaque à importância da consagração e do próprio mercado na criação de grandes nomes.

Outro conto provocativo dessas questões, do mesmo escritor, é Pierre Menard, autor do Quixote. Nele, Menard decide reescrever Dom Quixote, de Cervantes, palavra por palavra, ipsis litteris, com as mesmas letras, mesmo papel e tudo exatamente igual. Depara-se, contudo, com a impossibilidade do feito, pois o tempo já não era o mesmo, o público, o contexto histórico e as referências imediatas da época já haviam se perdido.

Pierre Menard é extremamente provocatório justamente por levar à pauta da impossibilidade de se realizar o que outro já realizou, e ridiculariza a própria chance de se apropriar por completo de outra obra. É, por isso, um texto que tematiza a natureza da influência e se posiciona criticamente frente a ela, conferindo aos novos autores o reconhecimento da criatividade do mosaico e do rapsódico.

Para a literatura comparada, os laços intertextuais são virtualmente infinitos, e fontes de debates e reflexões ilimitadas. Para o leitor, fica o desafio de perceber os pontos de encontro entre as obras do seu repertório, observando entre elas os vínculos, as particularidades e seus alcances individuais.

Quatro mitos modernos

Assim como a Antiguidade Clássica, que deu à luz de Édipo à Odisseia, a modernidade também produziu sua mitologia, inserida e inspirada nos seus próprios temores e situações históricas. Este artigo se propõe a apresentar brevemente como mitos modernos quatro histórias de terror, horror e mistério: O Médico e o Monstro,  de Robert Louis Stevenson, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, e Drácula, de Bram Stoker.

O Médico e o Monstro

deixa no âmbito do não-dito um mal metafórico que se expõe através da figura do doppelgänger (o duplo), aquele que se vale de uma máscara da inocência para agir de maneira livre, mas monstruosa. O mito, pensado em seu contexto, sugere o trabalho sobre um medo que pairava pelo Império Britânico da Era Vitoriana, a terra em que “o sol nunca se põe”. Nesse período, em que a potência vem a conhecer o colonialismo, a industrialização e o avanço científico, surge um temor relativo ao próprio avanço do tempo: afinal, quanto é possível perder, e ainda permanecer humano?

O medo da modernidade e do quanto o contato com outros povos, de culturas completamente diferentes, “bárbaras”, influenciado também pelas novas ideias vindas do evolucionismo darwiniano, das correntes realista e naturalista, e do conflito de classes exposto por Marx, traz em sua sombra o receio de que essas novidades pudessem vir a corromper a suposta pureza dos ingleses, criando uma mal-estar social que aparece retratado nas figuras míticas de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, protagonistas de O Médico e o Monstro.

O Retrato de Dorian Gray

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Companhia das Letras.

O segundo mito, clássico de Oscar Wilde, dá luz ao hedonismo de Lorde Henry, que influencia o jovem Dorian, levando-o a crer que no poder absoluto da beleza. Para que ele possa mantê-la, o retrato de Dorian envelhece em seu lugar, enquanto o homem comete diversos crimes e atrocidades.

O mito também sugere algumas das inquietações dos anos 1890, depois da revolucionária teoria freudiana sobre o inconsciente, onde, muito sucintamente, se alojam desejos e necessidades recalcados. À vista disso, muitos acreditavam que a libertação dessas paixões, escondidas nesse aparato orgânico, poderia gerar barbaridades terríveis.

Questionava-se, então e finalmente, a própria validade do conhecimento científico. Afinal, as conquistas científicas, como a descoberta do inconsciente, levariam a humanidade a uma evolução moral? À época, e ainda hoje, o avanço da ciência não necessariamente anda a par do avanço social, e certamente descobertas e invenções usadas sem senso de responsabilidade e ética podem conduzir a catástrofes históricas, como foi o caso do nazismo alemão ou do imperialismo europeu.

A Ilha do Dr. Moreau

A Ilha do Dr. Moreau, à sua vez, narra a história de um náufrago, Edward Prendick, que é deixado em uma ilha com o protagonista que dá título ao livro. Edward descobre, para seu espanto, que o médico fazia experimentos de vivissecção, mas fica a dúvida se tais experimentos transformavam animais em humanos ou o contrário. Questionado, o Dr. Moreau explica que seu intento é retirar cirurgicamente a “animalidade” dos bichos da ilha.

A dor e a crueldade apresentam-se como temas em pauta, assim como a responsabilidade moral e os efeitos da interferência humana na natureza. O Dr. Moreau busca um conhecimento que é proibido, e a um só tempo é condenado e admirado por essa busca. O receio do declínio do imperialismo branco, que era pensado como modelo de moralidade, e quais seriam as consequências desse declínio para a civilização, se insurgem como ideias fundadoras para a ficção, dando vazão a um medo que era, este sim, real.

Drácula

O último mito, provavelmente o mais famoso, é Drácula, um romance epistolar de dilemas psicológicos. Sendo um vampiro, o conde que nomeia o livro é, portanto, uma criatura perversa, que se alimenta de sangue e que é imortal. Para além da fantasia, a história critica a burguesia, sendo Drácula um aristocrata que se alimenta do sangue camponês. Ela traz também o conflito entre o romântico e o racional, representado pela disputa entre o que é lendário e a “ciência”, e discute tabus, como a animalidade do homem (shape-shifter), a disputa entre homem e Deus, que se instaura na condição e busca da imortalidade, e a própria paixão feminina, que era até então negada pela sociedade.

Fica claro que além de entretenimento, os mitos modernos, assim como os antigos, podem ser analisados como tentativas ficcionais de explicar costumes, crenças, medos e instituições sociais, os quais se tornam recuperáveis através da análise comparativa entre a condição literária e o passo da história.

P.S.

JEHA, Júlio. Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

Este pequeno artigo foi inspirado em uma palestra ministrada pelo doutor e professor Júlio Jeha, da Faculdade de Letras da UFMG, no dia 13 de maio de 2016, para a disciplina de Introdução à Literatura Comparada. Jeha possui inúmeros trabalhos ligados à literatura de monstruosidade e as vastas relações que ela estabelece com o tempo moderno e mesmo o contemporâneo.

Por isso mesmo, se ficou interessado no tema, confira a obra Monstros e monstruosidades na literatura, desenvolvida por Júlio Jeha, e que traz uma análise muito mais aprofundada dos livros supracitados, além de outros que também fazem parte desse universo.

Bertolt Brecht em (im)personagens: uma proposta

Tomando como referências os escritos de Gerd Bornheim, Walter Benjamin, e Pequeno órganon para o teatro, de Brecht, a proposta brechtiana para o teatro épico pressupõe enfaticamente, para a criação de um modelo não-aristotélico, o deslocamento do sentimento de empatia. Antes de tudo, é fundamental a compreensão de que esse pressuposto não deve, de modo algum, ser tomado como uma tentativa de abandono das emoções, uma vez que, na realidade, intenta tornar compatíveis as emoções do espectador e o conhecimento que pode ser adquirido a partir do seu teatro.

Nesse sentido, Brecht direciona o público para o alcance de um domínio sobre a causalidade – reafirmando a potencialidade modificadora do homem -, que conduz a uma mudança de postura drástica do seu espectador, portando-se de forma muito mais ativa perante os dilemas da sua própria época, enquanto ser dotado de consciência histórica. Segundo Benjamin, “a arte do teatro épico consiste em provocar espanto, não empatia.” (p. 25) Assim, em lugar do horror, o desejo de saber; em lugar da compaixão, a solicitude (BORNHEIM, p. 229). Significa dizer, também, que esse domínio não se dá através de reações e sensações difusas, mas através do conhecimento e da racionalidade.

Pensa-se, assim, o teatro brechtiano como uma forte matriz para a configuração do que se entende por drama moderno. Brecht, com sua teoria e obra, impõe às teorias do teatro uma nova percepção do próprio sentido do termo “drama”: do estreito conceito pensado inicialmente por Szondi em Teoria do Drama Moderno, acepção de atividade teatral composta de ação inter-humana desenvolvida no tempo presente em torno de um conflito mediado por diálogo, para a forma expandida que é o teatro épico (SZONDI, p. 116): de saltos temporais, descontínuo, em curvas!, afastado da tensão do desenlace, despreocupado no que toca à verossimilhança e ao encadeamento das cenas, engajado em contrapor o espectador à ação ilustrada, e, sobretudo, capaz de propiciar conhecimentos ao seu público e dele exigir uma tomada de posicionamento – crítico, racional, esclarecido.

Sinteticamente, toda a proposta da composição dramatúrgica, em sentido amplo, de Brecht justifica-se através do propósito explicitado no item 35 do Pequeno órganon, no qual diz que

necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto.

Destarte, articulando sua composição a uma ideologia própria quanto à metodologia que convém para o seu teatro, Brecht minimiza as condições para a identificação e a empatia em relação aos seus personagens, em vistas de obter do público (e dos atores!) reações menos passionais, mais críticas e ponderadas – nesse caminho, Benjamin asserta: “O conceito de teatro épico (…) indica, sobretudo, que esse teatro deseja um público relaxado, que acompanha a trama com descontração. (…) Esse público, como coletivo, também se sentirá chamado a um posicionamento imediato. Porém, tal posicionamento, imagina Brecht, deve ser refletido.”(p. 23)

Justamente por esse intuito, os personagens brechtianos não são constituídos de modo a possuir grande profundidade psicológica – o que não significa que sejam personagens planos ou rudimentares -, mas são, por outro lado, perpassados por uma complexidade que se assinala, antes, a partir das vivências a que são expostos e às formas como respondem às situações que se assomam. Seguindo a mesma diretriz, no escopo de personagens do dramaturgo não há espaço para o herói, figura que, por sua vez, não raro é sobreposta pelo imaginário do sábio, o qual, mesmo assumindo tal posição, mantém-se, não obstante, um herói não trágico (com suas ressalvas), como nos lembra Benjamin (p. 24-25)

Tomemos por exemplos alguns dos protagonistas das peças de Brecht, a fim de ilustrar estrutura e a dinâmica dos personagens brechtianos de forma concreta.

No caso de Aquele que diz sim, tem-se o Menino, o qual, para buscar remédio para a mãe doente, parte em uma viagem arriscada e acaba ele mesmo em situação vulnerável. Confrontado com a sua condição, é pedido a ele que aceite ser sacrificado para que os outros prossigam a viagem, ao que ele consente, como mostra o seguinte diálogo:

O PROFESSOR – (…) E o costume exige que aquele que ficou doente responda: vocês não devem voltar.

O MENINO – Eu compreendo.

O PROFESSOR – Você exige que se volte por sua causa?

O MENINO – Vocês não devem voltar!

O PROFESSOR – Então você está de acordo em ser deixado aqui?

O MENINO – Eu quero pensar. Pausa para reflexão. Sim, eu estou de acordo.

Além de demonstrar atitude irrefletida, no sentido de se submeter a um costume obtuso pelo simples fato de ser uma tradição, a postura do Menino dificilmente pode ser tida como heróica, posto que ele não se sacrifica por um “bem maior”, mas apenas por servilismo ou sujeição. Longe de ser um mártir, o Menino morre pela manutenção dos costumes, porque disse Sim.

Quanto à variante da peça, Aquele que diz não, a atitude do personagem põe em xeque a inevitabilidade da sua morte. Dizendo Não, ele não se situa como personagem egoísta numa visão simplificadora de um espectro que paira entre a heroicidade e o individualismo, mas como protótipo de raisonneur ele assume o lugar do sábio, do questionador, daquele que desafia o silogismo sofista:

O MENINO – A resposta que eu dei foi falsa, mas a sua pergunta, mais falsa ainda. Aquele que diz a, não tem que dizer b. Ele também pode reconhecer que a era falso.

Em O Círculo de Giz Caucasiano, por outro lado, a análise da protagonista Grucha é mais escorregadia. Como reconhecido pelo próprio Brecht, a personagem propicia uma empatia que ultrapassa o ideal do distanciamento no teatro épico. Por todas as situações a que é submetida, a protagonista ganha a complexidade que supre sua deficiência com relação à profundidade psicológica (prevista e meditada pelo dramaturgo), porém, o grande impasse é que Grucha apenas a custo poderia ser compreendida como síntese de uma classe – as características que pretendiam ser destacadas, isto é, alienação, ignorância, docilidade, são obscurecidas pela natureza “bondosa” com que tendemos a enxergá-la.

Azdak, em contrapartida, é pleno em contradições: em seus julgamentos, donde sua índole se revela, corresponde, em certos casos, às expectativas que se depositam sobre ele – tomar o partido dos desfavorecidos -, conquanto noutros atende apenas às próprias ambições, em prova de ignorância de classe e de consciência histórica. No confronto entre os dois protagonistas, suas atitudes como juiz seguem ambivalentes: por um lado, ele subjuga e multa Grucha por sua humildade; por outro, concede a ela o resultado favorável:

AZDAK  – E com isto averiguou o Tribunal quem é a verdadeira mãe. A Grucha. Toma teu filho e vai-te embora com ele.

Não obstante, é dele, também, a conclusão:

AZDAK – Pois eu dispo a toga, que já começa a me queimar a pele. Não aspiro a ser herói.

Mãe Coragem, espetáculo da Berliner Ensemble

De outra natureza, pensada em relação ao momento histórico do autor, isto é, pleno domínio hitleriano, Mãe Coragem é uma das mais provocativas peças do dramaturgo, evocando a passividade e a falta de julgamento da população. A protagonista condensa em sua estrutura o arquétipo de uma classe pequeno-burguesa, avassaladoramente alienada, incapaz de perceber os resultados de suas ações como consequências lógicas das mesmas – é, portanto, profundamente marcada pela contradição. Coragem, à leitura de Sarrazac em Poética do Drama Moderno, figura como uma espécie de Medeia acidental: negociando com a guerra, causa, indiretamente, a morte de seus três filhos, e ao final continua levando sua carroça tal qual o início propõe.

Sua única filha, Kattrin, delineia a personagem de maior complexidade na peça. Sendo muda e por isso desprezada durante toda a trama, é ela quem toca os tambores que salvam a cidade dos soldados inimigos. A ação, todavia, é controversa: se, por um lado, pode ser pensada como atitude nobre (heróica?), por outro, a condição subserviente que a personagem mostra durante o desenrolar da história não sustenta seu caráter de heroína. Cabe ao leitor-espectador relativizar o conceito – ou não.

Numa última peça para pensar a composição de personagens em Brecht, A Vida de Galileu, Brecht dá luz ao homem por trás da figura “mítica” do cientista – um bon vivant, glutão e covarde, que ao ver confrontadas sua integridade física e sua convicção científica, não titubeia quanto à escolha da primeira. Por vaidade, contudo, prossegue, às escondidas, a elaboração dos discorsi.

Brecht, também neste caso, cria em torno do ícone uma dubiedade que desconstrói o herói cientificista: Galileu, além das questionáveis facetas de personalidade, é também corrupto, alegando ser sua uma invenção que veio da Holanda, a luneta. Não se contentando em apontar apenas as incoerências do personagem, a peça também propõe um questionamento que ainda nos dias de hoje reverbera: para que serve a ciência? E metalinguisticamente: para que serve a arte?

GALILEU – (…) Vocês trabalham para quê? Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana. E se os cientistas, intimidados pela prepotência dos poderosos, acham que basta amontoar saber, por amor do saber, a ciência pode ser transformada em aleijão, e as suas novas máquinas serão novas aflições, nada mais.

Com Brecht, o drama moderno aprende a se pensar: Quem sou? Qual o meu lugar? Como agir sobre a realidade?, são questões ainda em aberto, mas que são colocadas em evidência pelo dramaturgo e levadas a cabo por uma proposta estética e ideológica que, se não obteve completo êxito, tem grande mérito pela nobreza da tentativa.

Mães e mulheres de Dublin sob a lente de James Joyce

Sobre um tal de James Joyce

James Joyce (1882-1941) foi um escritor irlandês que continua a assombrar a literatura universal e que permanece como uma ferida aberta na tradição literária que o sucedeu devido a complexidade de obras como Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Reconhecido por mesclar ficção e biografia, o autor propõe grandes dificuldades para a leitura de seus textos, pois, além das inúmeras referências internas e externas à cultura, sociedade e política da Irlanda, é importante que também se conheça a vida do escritor, pois isso joga luz sobre diversos aspectos que uma leitura desavisada ignora.

Exemplo disso aparece na relação com os familiares, com a fé cristã e com a língua inglesa, três pontos capitais que Stephen Dedalus – alter-ego e personagem de Joyce – tenta contornar em Retrato de um artista quando jovem (1916); os mesmos que o escritor problematizará em seus textos. 

“Eu e meus dublinenses”

Apesar de pouco produtivo quantitativamente (Joyce escreveu pouco mais que cinco obras completas), o autor irlandês captou, ao longo de sua escrita, inúmeros retratos da sociedade de Dublin, destilados eles sob a linguagem estilisticamente pessoal e bem trabalhada. Frases que a primeira vista são simples, ganham dimensões profundas nas palavras do narrador joyceano, como no caso da frase que abre o quarto conto de Dublinenses, Eveline:

She sat at the window watching the evening invade avenue

A sonoridade dessa sentença é nítida e dificílima de se traduzir para o português, por conta do excesso das consoantes S, W, V e T nas palavras, que se perdem quando passadas para o português. Ainda assim, se por um lado temos esse trabalho lindo e complexo com os termos de Joyce, por outro há um de fácil adaptação e tradução: o conteúdo das histórias.

Mesmo tratando-se de experiências vividas ao longo da primeira metade do século XX, os contos de Dubliners (1914) ainda possuem forte ressonância com acontecimentos do dia a dia nas cidades contemporâneas. A solidão, a paralisia, a morte e o suicídio, os abusos e o medo e as questões familiares são temas que orientam os pequenos contos da coletânea escrita por Joyce, e é sobre questões familiares que figuram, mais especificamente, em dois contos que falarei agora.

Entre mães e filhas

Casa de Pensão e Uma mãe (The Boarding House e A Mother, títulos originais) são duas das quinze estórias que compõem o livro Dublinenses. A relação entre mãe e filha é protagonista dos conflitos em ambos, e, de forma sutil, Joyce evidencia traços obscuros da convivência das personagens na sociedade da qual fazem parte.

Apesar de apresentarem desfechos diferentes, em ambos os contos, o “motor” que coloca o conflito principal para funcionar é o plano que as mães de Polly e Kathleen traçam para a vida das filhas. Matriarcas obstinadas, essas mães descritas por Joyce mostram-se como personagens-autoridade. As filhas, contudo, e também os outros personagens que aparecem ao longo das narrativas, configuram-se como submissas e omissas.

Tanto a Sra. Mooney, mãe de Polly, bem como a Sra. Kearney, mãe de Kathleen, casaram-se não pelos sentimentos que tinham com o cônjuge, mas pelos negócios da família. Ambas querem o bem estar próprio, tomando atitudes que não prejudiquem a imagem de madame que construíram e valorizam. Elas tratam a vida e as relações pessoais como mercadoria; além de apresentarem uma crença de que imagem e status são mais importantes que o sentimentalismo, pois dariam conta de solucionar os problemas pessoais.

Por outro lado, as filhas passam uma imagem de graça e classe e não se preocupam com a própria vida. Polly, em Casa de Pensão, escuta e executa as exigências da mãe, mesmo tendo consciência de que está sendo manipulada por ela. Kathleen, por sua vez, sempre foi tratada como um objeto de status: a mãe a preparara mandando-a jovem para um convento onde aprendeu música e francês, além de ter feito tudo para que o nome da filha fosse reconhecido por todos. Assim, as duas filhas se anulam frente a vontade de suas mães e não expressam seus desejos; seguem os planos estipulados pelas “chefes” e muitas vezes apresentam uma cumplicidade cega.

É para orientar nosso olhar, suscitando essas conclusões sobre as personagens, que o irlandês coloca pequenas passagens – pontos de singularidade – em seu texto. Esses pontos condensam muito da complexidade dos personagens, e acabam por definir o seu comportamento. No caso da Sra. Mooney, Joyce pontua que ela:

“lidava com questões morais da mesma forma como um cutelo lida com a carne”

Em outras palavras, de forma objetiva e fria, precisa e apática.

A pensão e o concerto, cenários dos respectivos contos, são um microcosmo da sociedade daquela época: ou as personagens são duras – tratando de questões morais feito o facão cortando a carne – ou seriam elas o pedaço de carne a ser cortado. Assim, apresenta-se um lado cruel existente não só na forma familiar, em que não há espaço para a boa convivência entre os pares, como também na sociedade em que essas famílias existem. A culpa de tamanha crueza está no peso social, o fardo, carregado pelas mães dos contos: a açougueira que deve manter a imagem de dama, e a senhora que luta pelos direitos da filha e pelos próprios direitos.

Em uma leitura contemporânea dessas histórias, Joyce constata para nós leitores e leitoras o fato de que a mulher precisava ser forte e calculista ou a sociedade as destruiria. Mas essas são as impressões do escritor: um homem! As personagens por si só não podem falar, pois só existem nas histórias; já vocês podem muito bem extrair, da melhor forma, as próprias sobre o mundo observado por Joyce: lendo sua obra!

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