Amarrados pela pátria: três belos poemas em português

Eu estava perdido entre as imagens e textos do Instagram, quando parei para ler o fragmento de uma canção, recortada e postada por um amigo (e também autor aqui no blog): o pesquisador Otávio Moraes, grande leitor e escritor exemplar de nossas belas letras. A foto dele era a reprodução de um trecho de “Língua”, famigerada música de Caetano Veloso, que deixo aqui, para servir de ruído de fundo às palavras suscitadas pela publicação de Otávio.

A proposta principal deste post é apresentar três poemas amarrados pelo signo da pátria: tema tão delicado a nós que vivemos essa lenta catástrofe do mundo contemporâneo – o mundo dos embargos e das diásporas, o mundo que definha cada dia um pouco mais, nas mãos de presidentes, facções e bancos. Mas antes de passar aos poemas propriamente escritos, gostaria de fazer uma breve contação (entre ficção e fato), para dar tempo não só de terminar a reprodução da canção, como também para contextualizar meu encontro com os versos que vou colocar adiante.

Pois bem, começo destacando que – à parte o relato pessoal de Otávio, que serve de legenda à foto postada em seu perfil – o trecho emprestado de Caetano é o seguinte:

E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua

O que me fisgou foram justamente os últimos versos: “E deixe os Portugais morrerem à míngua / Minha pátria é minha língua”, que, martelando em minha memória, fizeram de mim um inseto preso àquela teia de informações que a aranha da vida acabou tecendo, depois de tanto tempo aqui dentro da cabeça vazia. De repente, eu estava ali, diante dessa aranha, que amarrava outro verso àqueles últimos que li:

A pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações

E lá se foi uma manhã inteira, mastigando o tal verso, tentando adivinhar a autoria, porque têm horas que leitor é bicho orgulhoso e, contrariando a facilidade da internet, se empoleira na estante no exercício meticuloso de refazer os passos e as palavras que já leu. Sabia que era poeta de minha pátria (escrevia em português, é claro), mas quem podia ser? Perguntei à minha companheira, que também não se lembrava ou conhecia, e, daí, fui aos livros, tentando arrancar os segredos desde as lombadas.

Sempre que folheava e não encontrava nada parecido, eu me sentia exilado daquilo que restava só como algo familiar, mas pouco concreto, e quase cedi à vontade de ligar o computador e googlar aquelas poucas palavras de que me lembrava. Mas, apesar da demora do tomo a tomo, quando finalmente recuperei a possível origem daquele verso, o que encontrei foi uma surpresa feliz. Eu estava enganado: não se tratava apenas de um poema de qualquer brasileiro, na verdade, o verso se abriu em três joias raras de nossa seara lusófona, misturadas e picotadas pelo cotidiano e guardadas na forma simples que a memória encontrou: um pouco de “pátria” mais “língua” mais uns verbos mais umas nasais.

Eram três! Mário de Andrade, Rui Knopfli e Jorge de Sena… três nomes, três países, três continentes. Uma língua, uma pátria. O fato de serem poetas de lugares distintos reforçava a ideia que se fazia presente nos seus poemas e versos: o idioma como uma camisa, como a própria identidade (nacional e pessoal). Daí, o que antes era “a pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações” se tornou:

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der (Mário de Andrade – Brasileiro)
Pátria é só a língua em que me digo (Rui Knopfli – Moçambicano)
A pátria é a língua que escrevo por acaso de gerações (Jorge de Sena – Português)

Cada um deles pediria uma análise atenta e pausada, a que não me proponho nesta publicação. Por isso, faço só uma pequena consideração final, porque, ainda que me sinta compatriota de tão belos versos e poetas, tento não esquecer o lugar que ocupa essa nossa língua, o português (língua de colonizadores), que traz consigo toda uma tradição altissonante ocidental, e muitas vezes bárbara, construída a preço de muitas e muitas “outras pátrias”.

É isso… Contada a anedota e desenovelada essa divagação curta, deixo vocês na companhia dos poemas, dos poetas, da pátria que pode e que quer ser língua.

O poeta come amendoim, de Mário de Andrade

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurús conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...

Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
Pátria, de Rui Knopfli

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.
Em Creta, com o Minotauro, de Jorge de Sena 

I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.



III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.

Lirismo enquanto doença

Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.

– Giorgio Agamben, em Estâncias  

No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.

Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:

Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.

O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.

O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”.  Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.  

A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.   

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima.

“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.

O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma.  É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,

Nuvens 
Uma chance 
Desver a lua  
Clouds - 
a chance to dodge 
moonviewing. (Poema disponível aqui)

A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.

De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo.  “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.

A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta.

O que é ficção científica? – Live do projeto “Em um mês, um conto”

No sábado passado, dia 17 de abril, nossa editora e autora Isadora Urbano participou de uma live que teve como objetivo principal definir (ou pelo menos tentar) o que é ficção científica. A live foi feita como parte da terceira edição do projeto Em um mês, um conto, criado por Paloma Bernardino e por Luca Creido (Lucas Nunes). Aos que não foram apresentados, Em um mês, um conto é uma iniciativa que busca fomentar a produção literária de autores independentes, conhecidos ou ainda desconhecidos. A ideia toda do projeto, como o próprio nome sugere, está ligada à confecção de uma narrativa autoral relativamente curta, que deve ser feita no período de um mês e que fará parte de uma antologia elaborada em conjunto pelos autores.

O tema da terceira edição é justamente ficção científica e, por isso, além de tentar responder à pergunta principal: o que é ficção científica, Isadora também discutiu o lugar que esse gênero ocupa na literatura e no mundo contemporâneo, depois de tantas conquistas espaciais e o sonho não tão recente de habitar o planeta vermelho, vizinho da Terra, Marte.

Sobre o Em Um mês, um conto

Em um mês, um conto é um projeto sem fins lucrativos e de caráter colaborativo que auxilia autores na elaboração, publicação e divulgação de contos autorais. Os escritores participantes são assessorados e integram grupos digitais para trocar experiências entre si e conversar sobre temas diversos ligados à literatura. A plataforma principal do grupo é o Instagram, pelo qual os organizadores promovem lives e outras atividades suplementares à escrita literária. Em um mês, um conto já está em sua terceira edição e já publicou uma antologia de contos de terror, originada das edições anteriores.


Gosta de ficção científica?
então confira também:

Fim de partida: de Beckett à pandemia

Membros de uma família que não se suportam, convivendo 24 horas por dia. Recursos acabando na dispensa. Cenário apocalíptico no mundo exterior. Todos presos em casa, esperando acabar.

Assim se passa a peça “Fim de partida”, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, que a escreveu em 1957. Mas aposto que você pensou que eu estava falando da quarentena durante esse período em que enfrentamos o coronavírus. É nesses termos que a atualidade e a força da peça em questão nos espanta, especialmente quando nos deparamos com cenários como esse em que nos encontramos agora: medo, aprisionamento, fim do mundo. (E sabemos que ainda vem a nuvem de gafanhotos por aí.)

Em “Fim de Partida”, que muito bem poderia se passar no interior de uma casa qualquer dos nossos dias, quatro pessoas têm de se haver com uma situação extrema de confinamento. São eles Hamm, um homem perverso, cego e paralítico, cuja vida gira em torno de atormentar Clov, seu filho adotivo e renegado que não consegue se decidir se parte ou não daquela casa; além deles, temos Nagg e Nell, os idosos pais de Hamm, cujas pernas foram mutiladas em um acidente de anos antes e agora, além de amputados, estão quase cegos, quase surdos e vivem em latas de lixo, sobrevivendo à base de papa e biscoitos. Todos eles esperam, desesperadamente, que acabe logo, como Clov nos diz na sua primeira fala da peça:

“Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando.”

Assim como nós, que ficamos no aguardo de novas notícias sobre a pandemia, a quarentena, o lockdown, a invenção de vacinas, a pesquisa de medicações (eficazes!), e a segurança para poder retornar às nossas vidas fora das quatro paredes, as personagens de “Fim de partida” precisam se resguardar em seu confinamento indefinido para sobreviver.

Foto por Edwin Reichert. À esquerda, Ernst Schroeder (Hamm); no meio, de pé, Samuel Beckett; à direita Horst Bollmann (Clov). Primeira performance em 26 de setembro de 1967: SAMUEL BECKETT’S “FIN DE PARTIE”. Teatro Schiller, em Berlim.

Enquanto isso, na casa, a dinâmica familiar inclui os hábitos de contar histórias, alfinetar, rebaixar os outros e fazer exigências implausíveis. Isso da parte de Hamm, que é o centro desse pequeno núcleo. Por sua vez, Clov, Nagg e Nell ficam à mercê de suas exigências e chantagens, que não seguem a lógica do mundo comum.

Germaine de France (Nell) e Georges Adet (Nagg). Studio des Champs Elysées, 1957.

Como é de praxe nas peças de Beckett, os personagens em questão constituem duplos que ora se repetem, ora se confrontam, sendo Hamm e Clov o par principal, Nell e Nagg o par periférico. Para passar o tempo, eles se aporrinham e tiram pequenas revanches de suas implicâncias pessoais. Um pouco como nós mesmos muitas vezes nos pegamos fazendo com as pessoas de nossas convivências. Em parte, isso se deve, como podemos reconhecer, à dificuldade de lidar com a passagem do tempo quando o próprio tempo regulamentar deixa de ser importante. Coisa que, logo no começo da peça, sabemos que é o caso:

HAMM – Que horas são?
CLOV – A mesma de sempre.

Aliada a essa cena primordial no interior da casa, há ainda a apreensão quanto ao que ainda existe lá fora. Assim como hoje, no Brasil de 2020, em que contamos 55.961 mortes por coronavírus. E 100 dias de quarentena (desta que vos escreve). Na peça, isso é regido pela norma do “não existe mais”, que, ao longo dos diálogos, se repete infinitamente nas formas de “Não existe mais”… “natureza”, “não existem mais”… “biscoitos”, “bicicletas”, “calmantes”, “velhos como antigamente”, “papa”, “caramelos”, “cobertores”, nem mesmo “caixões”.

À medida que o tempo teatral vai passando, percebemos o grande estado de calamidade e melancolia em que tais seres se encontram. Ainda que busquem de diversas formas contornar o absurdo dos tempos em que vivem. De certo modo – derrisório, sarcástico, ácido e doloroso -, eles procuram encontrar um mínimo de presença na situação que vivenciam. A fala de Nell, ao relembrar junto ao marido seus infortúnios, é contundente na sua percepção terrível da vida:

“Nada é mais engraçado que a infelicidade.”

Na tentativa de sobreviver às suas limitações, as próprias e as impostas pelo mundo, as personagens fazem esforços para conseguir pequenas alegrias, passeando dentro da própria casa ou indo até debaixo das janelas apenas para tomar um pouco de sol. Nesses dias, essas talvez sejam as frestas de felicidade que ainda estão à nossa disposição.

Procurando uma boa pedida para a sessão cinema de hoje? Com vocês, Fim de partida.

* Todas as citações da peça foram traduzidas por Fábio de Souza Andrade, que assina a edição da Cosac Naify, de 2010.

Três leituras da quarentena: Vila-Matas, Mary Shelley e Garcia Márquez

Tenho visto por aí vários blogs, sites e perfis divulgando listas de leitura para a quarentena: são enormes listas de livros que pensam essa condição de aprisionamento entre quatro paredes. Nelas, aparecem nomes como Kafka, Tolstoi, Atwood, Orwell, Huxlei etc. Também, vi algumas listas de obras que nos levam em viagens divertidas, para esquecer ou nos aliviar desses problemas vividos agora: em lugares que nos encontramos com Aquiles e Diomedes, ou sentamos à mesa de um Hobbit e alguns anões.

Pensei em montar minha lista de indicações também, mas, já que têm tantas por aí, e tão diversas, preferi fazer uma coisa diferente (mas vou deixar uma listinha no final). Por isso, escolhi três livros que andei lendo nesses dias reclusos, que me passaram mensagens distintas sobre os tempos em que vivemos.

Dublinesca, de Enrique Vila-Matas

VILA-MATAS, Enrique. Dublinesca. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Dublinesca é monótono, lento e maravilhoso! Uma obra que acompanha a decadente trajetória do ex-editor Samuel Ribas, um homem de sessenta anos, que se sente fracassado por não ter encontrado para publicar – durante todos os anos de editoração – “o escritor”, o gênio literário. É um livro que tem como pilares os irlandeses James Joyce e Samuel Beckett; recheado também de referências à cultura pop e ao cenário literário contemporâneo internacional, mesclando personagens que existem com outros inventados por Vila-Matas.

O que mais me interessa nesse livro, com relação à quarentena, é a amargura de Ribas em sua condição de hikikomori, um termo japonês que se refere ao comportamento de extremo isolamento doméstico.

E nós não estamos assim durante esses tantos dias em casa?

Existem dias em que não se faz nada; o almoço não sai (ou sai tarde); o catálogo da Netflix é um saco; meu livro novo ainda não chegou; não sei o que fazer; já estou de saco cheio disso tudo… e o que antes era divertido e ajudava a passar o tempo esfriou, ficou cru, e nem podemos, como Ribas, fazer uma viagem para Dublin, virar a vida de cabeça para baixo: estamos presos, somos hikikomoris involuntariamente, acompanhando notícias terríveis sobre o número de mortos e contaminados pelo Covid-19, paralelas às declarações desbocadas e infantis e idiotas do presidente da república em exercício: Bolsonaro. Não vejo como separar toda a situação trágica de pandemia da crise política que o Brasil está enfrentando.

Frankenstein, de Mary Shelley

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Tradução de Márcia Xavier de Brito. Rio de Janeiro: Darkside, 2017.

Frankenstein é um livro que dispensa apresentações longas. O romance de Mary Shelley, escrito em 1823, conta em forma de cartas a história de Viktor Frankenstein, um jovem estudante de Filosofia Natural, que, com seu apetite ilimitado de conhecimento e transformação, dá vida a sua própria ruína.

A mudança era uma ânsia que atravessava o coração dos brasileiros desde 2013, cansados de escândalos de corrupção e desesperançados com o cenário político. Por isso, assim como Viktor Frankenstein, o desejo os cegou e conduziu à criação da Criatura, que hoje está sentada na cadeira máxima do Executivo. Em 2018, velados pela paixão descontrolada de mudança a qualquer custo, 57.797.847 brasileiros elegeram a própria ruína nacional, que está aí, como a criatura, em nossa interminável noite de núpcias com o país.

Seguimos confinados, acompanhando de perto (mas longe), ansiosos pelo próximo passo da criatura, pela próxima vítima de um sistema racista, canalha e corrupto desse monstro que ateia fogo em si mesmo e em todos nós, que votaram ou não votamos nele. Mas existe uma diferença abismal na situação da criatura e a de Bolsonaro: o ser que Viktor criou é um injustiçado, inteligente e persuasivo, ainda que se torne terrível durante a narrativa, afetado pelos próprios desejos. Enquanto isso, o 38º presidente do Brasil é desprezível, ignorante e mesquinho, e o era mesmo antes de ser eleito, só que, para a grande maioria, não parecia, ou eles preferiam que fosse mentira, apenas suposição e fofoca de uma mídia corrompida.

E isso me conduz ao próximo livro.

O veneno da madrugada, de Gabriel Garcia Márquez

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O veneno da madrugada. Rio de Janeiro: Editora Record, 1974.

Ainda estou lendo essa novela que não está entre os textos mais famosos do Gabo, e foi ela que me motivou a começar esse post e me colocou para pensar ainda mais na relação entre literatura e realidade.

O livro conta a história de um pequeno vilarejo na América do Sul e seus diversos personagens: Padre Ángel, o alcaide, Dr. Giraldo, Juiz Arcádio, Trindade, Rebeca Assis etc. que se veem confrontados quando subitamente começam a aparecer pequenos papeis que denunciam a injustiça, a infidelidade e a ganância, pregados nas portas dos casebres durante as madrugadas de chuva.

O ponto chave, que me tocou, e que também fala muito sobre nossa situação atual, tem a ver com a passagem dos problemas de esfera privada para a pública. Explico-me. Na história, todo mundo sabia que César Monteiro era traído, que sua esposa se deitava com o Pastor (cogita-se que até ele mesmo tenha sabido da infidelidade da esposa), mas é apenas quando o papel é colado em sua porta que ele passa a agir: antes, era um problema da porta de sua casa para dentro, mas, com o pasquim (como são chamados os papeis) o problema vem a público.

É como se o que antes era apenas um boato ou mera fofoca passasse a ser notícia/fato, e, aos poucos, as tensões entre as famílias e os políticos do vilarejo foram aumentando e aumentando e aumentado (ainda não cheguei ao fim do livro, então paro por aqui). Algo muito parecido acontece com a contínua tensão entre governo e mídia no Brasil, com escândalos diversos vindo à luz, associados à família Bolsonaro, que os nega e, assim como o alcaide da novela de Garcia Márquez, exige que “não se dê relevância ao que não tem”. Eu pergunto:

Não tem relevância para quem?

15 indicações

Por fim, como falei no começo, compartilho uma pequena lista de indicações literárias (e um teórico) com vocês. Mas antes, quero dizer que, para mim,

toda leitura está sendo uma leitura sobre a quarentena e sobre a situação política do país

que me ajuda a entender mais sobre estar isolado (seja pensando o que está distante, ou sobre as novidades dessa condição) e maneiras de contornar a enorme decepção com a política brasileira, que nos leva para o abismo.

Meu olhar está procurando nos livros soluções para esse cenário atípico que enfrentamos!

Por isso mesmo, leiamos!
Por isso mesmo, aqui está a lista de indicações:

  1. Outros, estranhos, de Isadora Urbano (kindle)
  2. A cor púrpura, Alice Walker
  3. A metamorfose, de Franz Kafka
  4. A câmara sangrenta, de Angela Carter
  5. Quarto de despejo, Maria Carolina de Jesus
  6. Esperando Godot, de Samuel Beckett
  7. O conto da aia, de Margaret Atwood
  8. As almas da gente negra, W. E. B. Du bois
  9. A morte de Ivan Illich, de Liev Tolstoi
  10. As alegrias da maternidade, Buchi Emecheta
  11. A redoma de vidro, de Sylvia Plath
  12. O castelo de vidro, Jeannette Walls
  13. As brumas de Avalon, de Maryon Zimmer Bradley
  14. Hibisco Roxo, Chimamanda Ngozi Adichie
  15. A queda dos heróis, de João Tomayno (kindle)

A dramática normativa e a poesia em prosa de Baudelaire

XL – O espelho

Um homem horrendo entra e se observa no vidro.
“– Por que você se olha no espelho, se não se pode se ver nele senão com desprazer?”
O homem horrendo me responde: “– Senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos; portanto eu possuo o direito de me olhar; com prazer ou desprazer, isso só diz respeito à minha consciência.”
Em nome do bom senso, eu tinha sem dúvida razão; mas, do ponto de vista da lei, ele não estava errado.

(CHARLES BAUDELAIRE, Le spleen de Paris)

Não fosse o nome do autor denunciado em suas referência acima, talvez o leitor não desconfiasse que O espelho (traduzido por mim) se trata de um poema, incluído na antologia Le spleen de Paris (1869). Isso porque seu tom fabulesco, sua forma sem rima nem métrica, seu conteúdo pouco voltado às imagens clássicas da poesia tradicional – embora, na contramão, também fale da beleza –, ou sua formatação desprovida de estrofes e de versos saltados, não correspondem às expectativas que criamos acerca do que é e de como se faz um poema, mesmo para os mais experimentados. Pausa.

1
Primavera de 1624. Em Darlane, o general Oxenstjerna recruta tropas para a campanha da Polônia. A vivandeira Anna Fierling, conhecida pelo apelido de Mãe Coragem, fica sem um de seus filhos.

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

9
Já está durando dezessete anos a grande guerra religiosa. A Alemanha perdeu mais da metade dos seus habitantes. Violentas epidemias exterminaram os que sobrevivem à morte nas batalhas. Nas regiões outrora exuberantes campeia a fome. Lobos percorrem as cidades reduzidas a escombros. No outono de 1634, encontra-se Mãe Coragem na montanha alemã de Fichtel, longe da estrada por onde passa o exército sueco. Nesse ano, o inverno veio cedo e com rigor. Os negócios vão mal, o jeito é mendigar. (…)

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

Mãe Coragem e Seus Filhos (Mutter Courage und ihre Kinder), na célebre interpretação com Helene Weigel.

Entramos agora em outro campo: excertos da peça Mãe Coragem e Seus Filhos (1939), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Bastante distante em temáticas, estéticas ou proposições, e consideravelmente distantes no tempo, as obras de Brecht e de Baudelaire, como as trazidas aqui, possuem uma séria semelhança. Alguém se arrisca?

Assim como os poemas em prosa do poeta francês não se encaixam nos moldes da poesia tal como prescrito pelas “normas” dos gêneros, tampouco os trabalhos brechtianos podem ser entendidos por e simplesmente dramas.

Relembrando, os três grandes gêneros literários: a épica, a lírica e a dramática, (muito) reduzida e simplisticamente compreendidas como narração, poesia e teatro, respectivamente. Ora, e o que acontece nos casos dos autores trazidos? Para o alemão, o próprio nome do seu teatro o anuncia: o teatro épico. Para Baudelaire, a poesia é em prosa – uma poesia épica? Uma proesia? Brinco.

À parte seus distintos propósitos em uma e outra criações, tais autores se aproximam ao mesclar não os tipos textuais, mas os gêneros em si – que embora dificilmente obteriam alcançar uma pureza completa, se afastam ainda mais dessa medida quando pensamos exemplos como estes.

Por isso mesmo, se entendemos os gêneros como matrizes para a criação artística, é indispensável reconhecer a igual importância da sua subversão. O que Brecht cria nos trechos trazidos é inconcebível para a dramática normativa, que se fixa, de acordo com Peter Szondi, autor de Teoria do Drama Moderno, no pilar da ação inter-humana transcorrida no tempo presente, resumidamente. Tempo, contudo, é o que não se faz presente em Mãe Coragem e Seus Filhos, quando muitos anos se passam através dos saltos cronológicos entre um e outro episódios. Dialógica, tampouco é a forma encontrada em tais trechos, que denunciam a narrativa nas descrições e na ausência de enunciador, o que por sua vez impede o caráter inter-humano.

Ainda que sejam exemplos apenas dos princípios dos episódios (ou atos, ou capítulos) brechtianos, e que outras partes do texto se aproximem mais dos elementos que configuram o drama tradicional, tais recursos não são lançados ao azar, como se revela na auto-teorização feita em seu Pequeno órganon para o teatro. Pelo contrário, o teatro épico tem por objetivo alcançar o efeito de distanciamento que obrigue à reflexão, ao raciocínio crítico, e que por meio dessa estranheza seja capaz de despertar o espectador do sono da alienação.

O caso de Baudelaire talvez não seja tão engajado ou mesmo tão exemplar. Sua proposta, mais estética que propriamente política, influencia uma gama de escritores da sua sucessão, inclusive vocês-sabem-quem (abaixo). Ao abrir mão dos valores regentes da construção poética, o poeta subverte ainda mais o que por si só já é anárquico – a própria poesia. Cria, em consequência, a abertura para outros fazeres e pensares artísticos que não se pretendem regra de ouro.

Na realidade, o que Baudelaire faz, seu grande mérito, não é um “manifesto da poesia em prosa”: antes, é lançar sobre a tradição um olhar que a absorve sem por ela se deixar prender. O que em muito difere de Brecht, para quem o futuro do drama é o drama épico, motor das convulsões e revoluções sociais pela arte.

Fica do texto para o leitor a proposta de aguçar a visão para notar esses fenômenos, hoje ainda mais e sempre recorrentes, que movimentam a arte contemporânea não para uma, mas para todas as direções, expandindo-se… Até onde? De presente, um poema (um poema, sim, senhor) do nosso querido itabirano:

O OPERÁRIO DO MAR

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Sentimento do Mundo)

Relação luzidia: sintonia dos versos de Waly Salomão e de Florbela Espanca

“Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo”
(Fado Tropical – Chico Buarque e Ruy Guerra)

Poetas que versam o versar, Florbela Espanca e Waly Salomão compuseram dois célebres poemas que conversam entre si num diálogo sobre o fazer poético, o sonho e sua dissolução na realidade: Vaidade e A fábrica do poema, cujas relações mais próximas tentaremos evidenciar.

I – O sonho

Ambos os poemas destacam uma grave inquietação com a própria arte poética, refletindo acerca de sua condição de poemas imperfeitos pelo viés do desejo frustrado, que os submete à humanidade de seus poetas. Cada qual buscando a perfeição, Florbela e Waly partem do sonho para a criação, sonho que os leva à fantasia de totalizar a instância da poesia por meio de seus versos:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

(FLORBELA ESPANCA, Vaidade)

Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,
Tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras.

(WALY SALOMÃO, A fábrica do poema)

É interessante notar que, no poema de Waly Salomão, a preocupação é quase inteiramente voltada à “arquitetura ideal” do poema, que se desenvolva com perfeição e coerência, ao passo que os versos de Florbela expressam uma perceptível e maior inquietude com a posição que o próprio eu-poético deseja alçar, de “Poetisa eleita” como se pode observar ainda nos versos abaixo, do mesmo poema:

Sonho que sou Alguém cá neste mundo…
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

Nesse sentido, a poetisa portuguesa nos apresenta um desejo, ou vaidade, como o título nos anuncia, de alcançar um prestígio e uma habilidades sobre-humanas, cujos poemas pudessem “reunir num verso a imensidade” e preencher toda alma capaz de ler poesia, mesmo a mais “profunda e insatisfeita”, curvando a Terra aos seus pés com seu saber vasto e profundo.

Waly, por sua vez, parece estar mais preocupado com a estrutura da própria poesia que com a condição ou estatuto do poeta, este que não é o Poeta eleito, mas mero “perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras”, posição menor cuja insatisfação vem não de um problema de auto-imagem, mas de uma tentativa de captar um poema que escapa, como vemos a seguir, no segundo movimento de ambos os escritos em análise.

II – A ruína

Acordo.
E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.

Acordo.
O prédio, pedra e cal, esvoaça
Como um leve papel solto à mercê do vento
E evola-se, cinza de um corpo esvaído
De qualquer sentido.

Acordo,
E o poema-miragem se desfaz
Desconstruído como se nunca houvera sido.

Acordo!
Os olhos chumbados
Pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
Assim é que saio dos sucessivos sonos:
Vão-se os anéis de fumo de ópio
E ficam-se os dedos estarrecidos.

Sinédoques, catacreses,
Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
Sumidos no sorvedouro.
Não deve adiantar grande coisa
Permanecer à espreita no topo fantasma
Da torre de vigia.
Nem a simulação de se afundar no sono.
Nem dormir deveras.
Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou restaurá-la daqui do poema.)

Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará?

Chama atenção que no poema de Florbela a extensão do primeiro movimento – aquele que se configura no sonho do poema/poeta ideal – é muito maior que em A fábrica do poema, tendo três estrofes se medindo com apenas três versos do poeta baiano, enquanto o segundo movimento – a derrocada – ganha muito mais relevo neste que em Vaidade.

Waly narra o processo de acordar como aquele em que o poema-miragem, com todos os seus recursos líricos (sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros) somem no sorvedouro, desconstruindo-se como se nunca houvessem existido, deixando apenas apenas anéis de ópio e fumaça em dedos estarrecidos.

Enquanto isso, o acordar do eu-poético de Florbela não evoca a perda do poema como no caso anterior, mas a obriga a uma reimaginação de si que, frente ao sonho, a leva à queda e à descoberta da sua realidade, na qual não é nada:

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho… E não sou nada!…

Observamos, assim, que os dois poemas partilham de uma forte sintonia em suas temáticas, com nuances da relação entre o sonho, a realidade e o poeta ou o poema se apresentando pelo viés da desilusão. Vaidade e A fábrica do poema crescem no ambiente onírico que lhes oferece inspiração e qualidade poética, na busca pela totalização da poesia e de seu criador, mas perdem para a vigília que os priva dessa possibilidade.

Por isso mesmo, a metarreflexão nos dois casos constrói a salvaguarda pela qual o poeta e a poetisa indicam o contraponto entre a incapacidade de se arquitetar a totalização de um poema de inspiração perfeita, ou tornar-se o poeta capaz de fazê-lo, a as possibilidades concretas por meio das quais eles podem se realizar: tanto Vaidade como A fábrica do poema afirmam, portanto, não o entrave que impede a poesia, mas a matéria dos sonhos do poeta, e a sua solubilidade.

Para mais

Adriana Calcanhoto manteve um parceria longa com Waly Salomão, parceria esta que resultou algumas grandes obras da canção popular brasileira, como o próprio A Fábrica do Poema

Já o poema de Florbela Espanca é possível ouvir nesse link, pela voz de Rubens Caribé, em leitura feita no programa Café Filosófico.

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